domingo, 24 de abril de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA PÁSCOA - NOVO MANDAMENTO - 24.04.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA PÁSCOA – NOVO MANDAMENTO 24.04.2016

Caros Leitores,

Na liturgia deste 5º domingo da Páscoa, o apóstolo João nos traz um tema que é central para todo o cristianismo: o novo mandamento de Jesus – amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O povo hebreu já conhecia os mandamentos desde Moisés, mas João ensina que Jesus veio aperfeiçoar os antigos mandamentos e resumi-los em um só: o mandamento do amor. Com isso, aquela imagem do Javeh vingativo e possessivo, irado e violento, que era transmitida na Torah de Moisés, transmudou-se no Deus Amor, aquele que está sempre pronto para perdoar.

Na primeira leitura, lemos o testemunho de Paulo e Barnabé, em viagem missionária pelas cidades da Capadócia, pregando aos pagãos e voltando anunciar que Deus abrira a porta da fé a eles, já que os judeus recusaram-se a aceitar. No domingo anterior, vimos como Paulo e Barnabé foram maltratados em Antioquia e proibidos de pregar o nome de Jesus. Então, partiram para pregar a palavra de Cristo aos gentios. E assim, eles viajaram por várias cidades da região da Frigia e Capadócia (Listra, Icônio, Pisídia, Panfília, Perge, Atália) e retornaram a Antioquia, onde anunciaram à comunidade de cristãos como os pagãos tinham sido receptivos à pregação do evangelho e tinham-se engajado com entusiasmo, produzindo bons frutos. Estas cidades situam-se, geograficamente, na região que hoje corresponde ao territorio da Turquia, sendo as mais famosas Antioquia da Síria (hoje chama-se Antakya) e Antioquia da Pisídia. Esta última é a cidade referida na leitura dos Atos do domingo anterior, onde Paulo e Barnabé foram perseguidos e expulsos. Esta foi também a primeira viagem missionária de Paulo, houve ainda outras duas, nas quais ele chegou a pregar o cristianismo em outras comunidades gregas, aventurando-se até em Roma.

É importante lembrar que nem sempre Paulo e Barnabé eram bem recebidos quando chegavam para a sua pregação, no entanto, eles eram insistentes. Em Listra, por exemplo, na primeira vez em que estiveram lá, pelos milagres que realizavam, eles foram confundidos como personificações de Júpiter, o deus principal da religião do lugar, e até chegaram a ser homenageados por isso. Quando Paulo e Barnabé perceberam que os listrenses estavam entendendo tudo errado do que eles pregaram, afastaram-se das homenagens e foram explicar. Então, os judeus de Antioquia haviam chegado à cidade em perseguição à dupla e começaram a espalhar boatos contra eles. A população os perseguiu e os apedrejou, arrastando-os até fora da cidade. Para eles, Paulo havia sido dado como morto, talvez tivesse desmaiado, perdido os sentidos, pois depois se recuperou. Mas, apesar das perseguições, eles conseguiram obter muitas adesões nestas cidades. E conforme está escrito em Atos 14, 23, eles fundavam as comunidades, designavam presbíteros (ou sejam, ordenavam sacerdotes os lideres da comunidade) e seguiam adiante para continuar sua missão em outras cidades.

A segunda leitura, do livro do Apocalipse (21, 1-5), contém uma das passagens bíblicas mais conhecidas e interpretadas: a imagem da Nova Jerusalém, que desce do céu, de junto de Deus. Isso aconteceu depois que o céu e a terra, assim como o mar, foram destruídos, e apareceu um novo céu e uma nova terra. A Nova Jerusalém era a própria morada de Deus entre os homens. A Nova Jerusalém é interpretada na teologia como a Igreja de Cristo. Ao longo do tempo, esta imagem foi explorada com um certo ar triunfalismo desde os teólogos medievais, dando origem a uma espécie de empoderamento com que os membros da hierarquia eclesiástica se viram durante muito tempo (alguns ainda hoje assim se veem), ou seja, interpretando esta imagem como um tipo de reino temporal ou poder político, nos moldes como isso existia naquela época histórica. Esqueceram, esses cristãos triunfalistas, da exortação de Paulo, contida na primeira leitura de hoje (At 14, 22): 'É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus'. Apesar da nova corrente interpretariva, que passou a ser estimulada a partir do Concílio Vaticano II e, sobretudo a partir da Conferência de Puebla, em 1979, acerca da opção preferencial da Igreja pelos pobres, muitos eclesiásticos e leigos ainda continuam a entender a Igreja de Cristo como um reino temporal, muitos Bispos e Padres vivem e agem como verdadeiros monarcas em seus territórios, em total oposição com o que Cristo ensinou. Um exemplo disso é o modo como certos grupos católicos tradicionalistas desdenham do nosso atual Papa, comparando-o com a figura do papa emérito Bento, a quem consideram o papa verdadeiro. Na verdade, o papa Francisco tenta restaurar o modelo original da Igreja de Cristo: igreja dos pobres para os pobres. E para não ficar apenas no discurso, recentemente, ele mandou construir na Praça de São Pedro banheiros públicos para uso dos moradores de rua do Vaticano, dando-lhe mais condições humanas e dignidade.

Então, a Nova Jerusalém, que surge dentro do contexto de um novo céu e uma nova terra, a morada de Deus entre os homens, onde Ele enxugará toda lágrima, a morte, a tristeza, a dor desaparecerão, conforme a visão de João em Patmos, sempre cheia de metáforas e enigmas, deve mesmo ser entendida como a imagem da Igreja de Cristo? Eu diria que sim e não. Sim, porque a comunidade fundada por Cristo, a partir da catequese distribuída aos doze apóstolos e, através deles, para todos os crentes em todos os lugares, efetivamente desceu do céu, de junto de Deus, formando um novo céu e uma nova terra. Não, ou ainda não, porque essa comunidade, que forma a Igreja de Cristo, é por enquanto só o prenúncio da “Jerusalém” verdadeira, a morada de Deus na eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, a Nova Jerusalém para onde nós seremos conduzidos, após passarmos pelos muitos sofrimentos, conforme Paulo e Barnabé exortaram os antioquienses (At 14, 22). Quando eu estudava teologia, no Seminário da Prainha, o Padre Antonio Sidra (que foi capuchinho, com o nome de Frei Casemiro de Grajaú), professor de teologia fundamental, dizia uma expressão que é clássica na doutrina: a Igreja realiza o reino de Deus dentro da dialética do “já e ainda não”. Desse modo, à luz da fé, a Nova Jerusalém relatada por João no Apocalipse, já está aqui, porém, de fato, ela ainda não está, pois nós chegaremos lá somente quando passarmos para a dimensão da eternidade. A Igreja de Cristo antecipa, pela fé, as promessas que Ele fez e nos deu como garantia o seu sublime sacrifício. Mas esta antecipação é em termos, ou seja, na fé e na esperança, e para alcançá-la, nós precisamos praticar a caridade, o exemplo, a solidariedade, a justiça, a união, a fraternidade... isto é, o novo mandamento que Jesus ensinou e praticou. Como disse o apóstolo Paulo em I Cor 13, 12: agora vemos de maneira confusa, como num espelho embaçado, mas depois o veremos face a face. É isso o já e ainda não, o modo como a Igreja de Cristo prefigura a Nova Jerusalém.

No evangelho de João (13, 31), lemos a conversa que Jesus teve com os apóstolos no final da Santa Ceia, após aquele momento traumático em que Judas se rebelou e se retirou da recinto. Os outros discípulos ficaram atônitos e sem reação. Jesus foi acalmá-los, dizendo: chegou o momento em que o Pai será glorificado e isso logo acontecerá. E acrescentou: “por um pouco de tempo, ainda estou com vocês. Lembrem-se do novo mandamento que vos dei: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.” Aqui está a grande novidade que Jesus veio ensinar aos seus seguidores: o mandamento do amor mútuo, sem reserva. Aquela figura do Javeh odioso e vingativo ficou para trás, ela foi substituída pela figura do Pai amoroso, que não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva. Todo o evangelho de João é um grande testemunho deste amor sem medidas, o qual está presente em todas as narrativas. Diferentemente dos demais evangelhos, em que os fatos são o destaque, nos escritos de João (cartas e evangelho), os fatos são apenas o pretexto para o amor de Deus se manifestar. A própria terminologia usada no texto reflete essa temática, como vemos em Jo 13, 33: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco.” Nenhum dos outros evangelistas utiliza essa linguagem intimista e afetuosa de chamar os apóstolos de “filhinhos”. O evangelho de João transpira o amor de Deus, revelado no amor de Cristo.

Aqui está o nosso desafio cotidiano: cumprir o novo mandamento de Cristo, para assim testemunhar perante a comunidade que vivemos agora o “já e ainda não” da Nova Jerusalém, que é a nossa futura e definitiva morada.

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segunda-feira, 18 de abril de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - TRIPLA CONFISSÃO - 10.04.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – TRIPLA CONFISSÃO – 10.04.2016

Caros Leitores,

Na liturgia deste terceiro domingo da Páscoa, temos três leituras do Novo Testamento, sendo duas delas escritas por João: a segunda leitura, retirada do Apocalipse, e o evangelho. Neste, relembramos o episódio em que Cristo fez Pedro confessar seu amor por ele três vezes, talvez como uma forma de compensar a tripla negação que ele fizera naquela noite em que Jesus foi preso. Vemos ainda, na primeira leitura, o relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, sobre a pressão recebida por eles naqueles dias que sucederam a paixão de Cristo, sendo perseguidos pelos chefes dos sacerdotes e açoitados, para que não pregassem em nome de Jesus.

Relata o escritor Lucas, em Atos (5, 27), que os Apóstolos foram levados ao Sinédrio, para se apresentarem ao Sumo Sacerdote, que os interrogou sobre o porquê de estarem pregando em nome de Jesus, se haviam sido proibidos de fazer isso. Estavam os sacerdotes ainda mais irritados porque os Apóstolos punham nos judeus a culpa pela morte de Jesus. Mas não podendo manter os Apóstolos presos, por causa do receio da revolta popular, limitaram-se a mandar açoitá-los e depois os soltaram, renovando a proibição. E estes saíram do Sinédrio muito contentes, porque tinham sido insultados por causa do nome de Jesus, mas isso não impediu que eles continuassem a sua missão de disseminar o cristianismo em Jerusalém. Apenas para deixar referenciado, a pena de açoites era utilizada naquela época para delitos pequenos, aquilo que atualmente o Direito chama de delitos de menor potencial ofensivo. Por ocasião do julgamento de Jesus, Pilatos também mandou açoitá-lo, tentando aplacar os judeus, pois tinha a intenção de libertar Jesus depois da surra, mas não deu certo a estratégia No caso dos Apóstolos, deu certo e até funcionou como um incentivo para eles.

A segunda leitura é um trecho do Apocalipse. Todos sabem que essa palavra significa revelação, pois o texto relata várias visões que João teve quando estava desterrado na ilha de Patmos. Numa dessas visões, ele recebeu uma ordem: o que estás vendo, escreve num livro. Trata-se do texto mais enigmático da Bíblia, pelo fato de usar uma linguagem excessivamente cifrada e metafórica, dando azo a múltiplas interpretações. Outro fato importante a ser registrado é que, embora este seja o último livro do cânon bíblico, ele foi escrito por João antes das cartas e do evangelho, que foram escritas após ele ter sido libertado. De acordo com a tradição, após a morte de Maria, mãe de Jesus, que vivia sob os cuidados de João, ele foi viver em Éfeso, onde foi bispo daquela comunidade até a sua morte.

O pequeno trecho do Apocalipse (5, 11-14) lido na missa de hoje mostra que grande parte da arte sacra produzida na Idade Média e no Renascimento tem como fonte de inspiração a Revelação de João. Assim como alguns trechos fixos da liturgia são também retirados desse mesmo livro. Dizendo, por exemplo, que o Pai estava sentado no trono e, ao seu lado, o Cordeiro que fora imolado e, em volta do trono, milhões de anjos, esta é uma descrição que se vê representada nos quadros de diversos artistas, cada um interpretando à sua maneira. E mais: as imagens dos anciãos que se prostram e dos quatro seres vivos que diziam amém também tiveram inúmeras reproduções. Há suposições de estudiosos que afirmam que o Apocalipse era um texto bem mais longo, do qual foram retirados alguns trechos mais complexos, de modo que o livro do Apocalipse, que está na Bíblia, apresenta fragmentos do texto original, que teria sido perdido. Daí existirem certos lapsos de sequência, que suscitam as mais diferentes interpretações. Trata-se, portanto, de um texto complexo e é assustador observar que alguns leitores bíblicos banalizam as visões de João com interpretações fundamentalistas e rasteiras.

O texto do evangelho, também de João, relata a terceira aparição de Jesus aos discípulos, após a ressurreição, desta vez na margem do lago de Tiberíades ou mar da Galiléia. Eu fico imaginando a emoção de João ao escrever o seu evangelho, quando já era bastante idoso, com mais de 90 anos, recordando os fatos de sua juventude, de sua convivência com Jesus. Consta que João teria escrito o seu evangelho por volta do ano 100 d.C., vindo a falecer pouco tempo depois, no ano 103. Pelo fato de ter sido escrito bem tardiamente, o texto de João traz muitos aperfeiçoamentos doutrinários, diferente dos outros evangelhos, que apenas relatam fatos. Além disso, o fato de João ter sido testemunha ocular dos acontecimentos, enquanto os outros evangelistas sabiam apenas por ouvir dizer, faz grande diferença. Sem deixar de mencionar que, na ocasião, os outros evangelhos já eram do conhecimento das comunidades cristãs e João, certamente, conhecia os seus textos. Por isso, o evangelho de João é bem mais reflexivo e teológico.

Pois bem. João relata que alguns dos discípulos, inclusive ele próprio, estavam na sua faina comum da pescaria, quando Jesus apareceu. Essa narrativa denota que, após a ressurreição de Cristo, os Apóstolos retornaram aos seus afazeres profissionais, pescadores que eram e precisavam trabalhar para ter o que comer. Então, Jesus foi procurá-los no seu ambiente de trabalho, para continuar a sua catequese de preparação para a missão de pregadores, confirmando o que ele havia ensinado antes. Depois de passarem a noite em tentativas, sem conseguir apanhar peixes, Jesus apareceu-lhes e mandou que eles retornassem e jogassem a rede à direita do barco, ocorrendo aí a pesca milagrosa. De início, eles não identificaram Jesus. Foi João que percebeu e disse a Pedro: é o Senhor. Chegados à praia, já havia fogo aceso, no qual foram assados pães e peixes, que Jesus repartiu com eles. João não diz que Jesus comeu junto com eles. Também nessa narrativa podemos observar que Jesus celebrou à beira mar uma 'missa' sem fazer uso do vinho, mas apenas com pão e peixe.

Na sequência dessa refeição, João passa a relatar o episódio da tripla confissão de Pedro. Jesus perguntou a Pedro, por três vezes seguida, se este O amava. Pedro, na terceira vez, já estava sem jeito com a insistência de Jesus, parecia que Ele não acreditava. Mas o objetivo de João, ao narrar este fato, parece bastante nítido: através da tríplice pergunta, Jesus queria resgatar a confiança de Pedro, após ter ele negado por três vezes, na noite que antecedera a Paixão. Jesus havia predito que Pedro o negaria por três vezes, antes que o galo cantasse. Naquela ocasião, Jesus deu a Pedro a chance de desfazer aquele equívoco e confessar a sua lealdade. A outra finalidade buscada por João, ao que parece, era a de reforçar a confiança de Cristo na liderança de Pedro sobre os demais Apóstolos. João foi o grande baluarte de Pedro durante as pregações, sempre o acompanhava e o assistia, porque havia entendido que o Mestre tinha expressado a escolha de Pedro para ser o líder do grupo. A ordem de “apascentar as ovelhas” foi desse modo entendida por João e assim ele repassava para as comunidades primitivas o valor dessa liderança, que era contestada por alguns.

Nos tempos iniciais do cristianismo, o foco da pregação ainda estava no entorno de Jerusalém, pois os Apóstolos tiveram como primeira meta a conquista da adesão das comunidades de judeus. Somente algum tempo depois, com a conversão de Paulo, teve início a pregação do evangelho nas cidades de língua grega, onde também ocorria a dominação romana, progredindo aos poucos até chegar a Roma, a grande capital do império. Depois de estabelecer comunidades também em Roma, dada a importância política e estratégica do local, Paulo levou Pedro para ser o lider dos cristãos romanos, pois Paulo havia compreendido o desejo de Cristo no mesmo sentido que João também ensinava, ou seja, que embora fosse ele (João) o discípulo amado, no entanto, a 'chefia' do grupo fora delegada a Pedro. A prova de que esse entendimento não era consensual é que, anos mais tarde, os bispos das cidades gregas não aceitaram submeter-se à autoridade do Bispo de Roma, surgindo daí o grande cisma do ocidente, em 1054, quando as igrejas católicas gregas formalmente romperam com a Igreja Romana. Após mais de 900 anos, em 1964, o Papa Paulo VI teve o primeiro encontro amistoso com o Patriarca de Constantinopla, dando início a negociações para reunificação do catolicismo, o que vem sendo continuado pelos Pontífices seguintes, tarefa ainda não concluída.

Pois bem, meus amigos. Esses testemunhos de João e de Paulo são muito importantes e nos ajudam a compreender os rumos que a Igreja de Cristo seguiu nos primeiros séculos. E eu vejo, com muita esperança, as últimas tratativas para a reunião das igrejas católicas oriental e ocidental, levadas a efeito pelos últimos Papas. Em 2013, comemorou-se o aniversário de 1.700 anos do Edito de Milão, pelo qual o imperador Constantino deu a liberdade religiosa dos cristãos. A festa foi realizada em Constantinopla, com a participação dos representantes do Vaticano, fato bastante promissor para o avanço da união de toda a cristandade.

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domingo, 17 de abril de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4° DOMINGO DA PÁSCOA - SOMOS UM - 17.04.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – SOMOS UM – 17.04.2016

Caros Leitores,

A liturgia do 4º domingo da Páscoa celebra a imagem do Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas (Jo 10, 27). E com essa celebração, recordamos também a figura da Divina Pastora, devoção divulgada pelo beato capuchino espanhol Diego de Cadiz, trazida para o Brasil pelas mãos dos frades capuchinhos italianos. Mas o detalhe que eu gostaria de destacar na leitura do evangelho de hoje é a afirmação de João, pronunciada por Jesus: “eu e o Pai somos um”. Algumas dezenas de anos depois, João vem recordar uma importante revelação trazida por Cristo e, sem a qual, a mente humana jamais imaginaria a existencia do Deus trino.

A primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (13, 14ss), relata a missão de Paulo e Barnabé, em Antioquia, onde havia muitos judeus simpatizantes do cristianismo, no entanto, a presença dos Apóstolos atiçou a ira dos chefes dos sacerdotes judeus, que não queriam ouvir falar no nome de Jesus. Obtendo apoio das mulheres ricas e dos homens influentes do lugar, os chefes dos judeus puseram toda a cidade contra Paulo e Barnabé, forçando-os a fugirem para outro local. Foi quando Paulo lançou-lhes o anátema: “'Era preciso anunciar a palavra de Deus primeiro a vós. Mas, como a rejeitais e vos considerais indignos da vida eterna, sabei que vamos dirigir-nos aos pagãos.” (At 13, 46) Vê-se, nesse relato, a mesma imagem das ovelhas que não reconhecem o pastor e o expulsam. Então, os Apóstolos deixaram de insistir com os judeus pela sua conversão ao cristianismo e passaram a pregar a Palavra aos gentios, donde foi atribuído a Paulo o título de Apóstolos dos gentios.

Esse é realmente um detalhe interessante dessa narrativa (At 14, 50), quando Lucas relata que os judeus instigaram as mulheres ricas e religiosas, bem como os homens influentes da cidade para buscarem apoio a fim de expulsarem Paulo e Barnabé dali. Há duas observações que quero fazer aqui. Primeiro, a menção das mulheres ricas. Sabe-se que, naquela época, as mulheres eram submissas aos maridos e, por elas mesmas, não tinham força para se projetarem socialmente. Será que os homens influentes, referidos pelo escritor sagrado, eram os maridos dessas mulheres ricas? Talvez o objetivo do texto seja estabelecer um confronto entre as classes sociais daquele tempo, querendo destacar que as primeiras comunidades cristãs eram compostas por pessoas simples e mais pobres, como que a denunciar que as elites judaicas e gregas rejeitaram o cristianismo. Isso mesmo havia acontecido com a pregação de Cristo, que sempre se dirigia à classe popular. São raros os relatos de pessoas ricas que buscavam ouvi-lo e segui-lo, como foi o caso de Nicodemos e de José de Arimatéia. Esse fato explica também o motivo de Paulo ter-se dedicado integralmente à pregação do evangelho nas comunidades gregas, porque percebera que era inútil trabalhar para a conversão dos judeus. E talvez esse fato também explique um certo ranço de distanciamento que se verificava tradicionalmente entre cristãos e judeus, chegando ao ponto de haver, na Semana Santa, uma oração especial pelos “pérfidos judeus”. Esse ritual somente foi substituído após o Concílio Vaticano II, quando o Papa Paulo VI iniciou um movimento de aproximação com as igrejas católicas orientais (consideradas cismáticas) e com as comunidades judaicas.

Sabemos, pelos escritos de Paulo, que outros judeus, residentes em cidades gregas, aderiram mais facilmente ao cristianismo, pois não tinham a influência negativa dos fariseus. Estes até quiseram ter uma 'prioridade' em relação aos novos cristãos de origem grega, considerando-se eles os primeiros a quem a Palavra fora dirigida, e assim eles deveriam ter um tratamento diferenciado. Paulo opôs-se veementemente a isso, afirmando que, após a nova aliança celebrada por Cristo, já não há mais diferença entre judeu e grego, porque agora todos estão incluídos no mesmo rebanho e são conduzidos pelo mesmo Bom Pastor. Convém sempre lembrar que foi em decorrência desse novo direcionamento da catequese dos Apóstolos, voltada para os não judeus, que nós brasileiros, latino americanos, tivemos o acesso à Boa Nova cristã, na continuidade da ação apostólica de Paulo, que chegou até nós por intermédio dos seus seguidores, discípulos de Inácio de Loyola.

A pregação do cristianismo aos gentios está também representada no texto da segunda leitura, retirada do Apocalipse de João: “Eu, João, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro.” (Ap 7, 9) Embora João tenha se mantido em território habitado por judeus e mesmo não tendo seguido Paulo em suas pregações pelos domínios gregos, no entanto, ele teve a mesma intuição de que o cristianismo obteria mais sucesso entre os gentios do que entre os judeus. E prossegue João: “Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. ” (Ap 7, 14) Com outras palavras, João repete o mesmo ensinamento de Paulo a respeito da questão dos judaizantes: todos os que foram lavados no sangue do Cordeiro pertencem ao mesmo rebanho, sem distinção de origem. Todos passaram pela 'grande tribulação' e saíram vitoriosos. João estava, certamente, se lembrando da promessa de Cristo de que eles iriam ser perseguidos por causa do nome d'Ele, mas que, ao final, sairiam vitoriosos. João foi um exemplo de alguém que sofreu na pele inúmeras provações por causa da pregação do evangelho. Mas ele tinha certeza de que, depois daquela tribulação, o sangue do Cordeiro o habilitaria a receber a recompensa. Após a provação pelo sofrimento, todos “nunca mais terão fome, nem sede, nem os molestará o sol, nem algum calor ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água da vida. ” (Ap 7, 16-17)

Na parábola do bom pastor, aludida no texto do evangelho de João, podemos vislumbrar novamente a vocação dos gentios para terem prioridade na pregação dos Apóstolos. Quando João reproduz as palavras de Jesus: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. ” (Jo 10, 27), esta frase nos deixa a cogitar no porquê de não terem os judeus escutado a voz do Bom Pastor e não o terem seguido. Eles não eram Suas ovelhas? Ora, mas foi para eles, o povo da promessa, que a Palavra divina foi dirigida em primeiro lugar, como não seriam eles Suas ovelhas? Parece, meus amigos, que o problema está em ouvir a palavra sem escutá-la. Embora estes dois verbos sejam gramaticalmente sinônimos, se observarmos bem, quantas vezes, nós ouvimos algo e não conseguimos mentalizar aquilo? Seja porque estamos distraídos, seja porque nos faltou interesse, seja porque estávamos ocupados com outras coisas mais importantes naquele momento. Deve ter sido algo semelhante que aconteceu com os judeus: ouviram a pregação de João Batista e não a escutaram; ouviram a pregação de Cristo e não a escutaram; ouviram a pregação dos apóstolos e não a escutaram. Talvez estivessem com os ouvidos ocupados com outras coisas “mais importantes”.

No final desse trecho do evangelho (Jo 10, 30), o evangelista faz uma breve afirmação, que contém um imenso significado. Depois de dizer que não irá perder aquelas ovelhas, porque foi o Pai quem havia lhe dado, Jesus arremata: “porque eu e o Pai somos um”. O grande diferencial do evangelho joanino, em relação aos outros, está nessas inserções teológicas que João faz. Ele não se limita a narrar o fato, mas trata de mesclar com ensinamentos doutrinários. Dizer que “eu e o Pai somos um” significa que Jesus também é Deus, mas não um “outro” Deus, e sim o mesmo Deus que é o Pai. Com outras palavras, aqui está a mesma afirmação que ele colocou no prólogo do seu evangelho: no princípio…, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus… tudo que existe foi feito por ele e sem ele nada foi feito. Com poucas palavras e belas imagens, João sintetiza a doutrina teológica da trindade.

Essa verdade teológica do Deus Trino não se encontra em nenhuma outra religião, bem como também não está presente no Antigo Testamento. Nenhum profeta anteviu isso, nenhum escriba antigo mencionou nada parecido. Somente a revelação neotestamentária veio trazer essa novidade, somente a pregação de Cristo trouxe a lume tal complexa figura. O motivo pelo qual uma tal afirmação só veio a aparecer nos textos de João significa que somente muitos anos após a morte de Cristo, com o desenvolvimento doutrinário da revelação contida no evangelho, foi que os líderes cristãos começaram a entender isso. E o contato e a influência da filosofia grega foi um recurso de grande importância para a construção desses esclarecimentos conceituais.

Que a Santíssima Trindade conduza os destinos do povo brasileiro, sobretudo nesse penoso conflito político pelo qual passamos.

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domingo, 3 de abril de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA PÁSCOA - DEUS MISERICÓRDIA - 03.04.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA PÁSCOA – DEUS MISERICÓRDIA – 03.04.2016

Caros Leitores,

Neste segundo domingo da Páscoa, a liturgia celebra o “domingo da misericórdia”, neste ano santo da misericórdia, declarado pelo Papa Francisco, no final do ano passado. O segundo domingo da páscoa é o dia consagrado a essa festa, que é nova no devocionismo católico, pois só passou a ser prestigiada no final do pontificado do Papa São João Paulo II. A exaltação da misericórdia divina é o reconhecimento das revelações particulares recebidas por Santa Faustina Kowalska, uma freira polonesa, falecida aos 33 anos, em 1938, e que deixou registradas, no seu diário, inúmeras visões em que Cristo aparece a ela com raios fulgindo do coração e pedindo-lhe a divulgação da sua misericórdia pela humanidade. A própria palavra “misericórdia” resume outras duas palavras latinas: miserere (ter compaixão) e cordis (do coração). O Papa Francisco, no sermão deste domingo aos peregrinos, no Vaticano, assim definiu essa virtude: “A misericórdia é, antes de mais nada, a proximidade de Deus ao seu povo. Uma proximidade que se manifesta principalmente como ajuda e proteção.” Foi em virtude de sua misericórdia que Deus se fez um de nós, concluiu o Papa, o que torna esta solenidade totalmente alinhada com as festividades pascais.

Na primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (At 5, 12-16), lemos diversos testemunhos narrados por Lucas (autor do texto) da grande adesão de novos cristãos, mediante a pregação dos Apóstolos e os milagres realizados por eles. Inicialmente, escondidos e trancados em casa por medo do que lhes poderia acontecer depois da morte de Cristo, no entanto, após a ressurreição, houve uma transformação no seu comportamento e no seu modo de agir. Diz o texto que acorriam multidões das cidades próximas de Jerusalém, para ouvir a pregação dos Apóstolos e traziam seus doentes para serem curados. Colocavam os doentes nos locais por onde eles deviam passar e esperavam que ao menos a sua sombra os atingisse, porque isso era garantia de cura. Com efeito, pelos relatos de Atos, os Apóstolos fizeram grande quantidade de milagres, os quais não foram todos conservados nas narrações, até porque isso seria impossível, dada a sua profusão. Os milagres feitos por intermédio dos Apóstolos tinham uma força probante muito eficiente, porque demonstravam nas pessoas destes o poder e a divindade de Jesus. O poder de convencimento que os Apóstolos exerciam eram fortíssimo, ocasionando grande quantidade de conversões em Jerusalém e nas cidades próximas.

Na segunda leitura, lemos um trecho do Apocalipse de João, na qual ele relata algo que passou, quando esteve exilado na ilha de Patmos, e declara que alguém, semelhante ao filho do Homem, afirmou para ele que havia morrido, mas agora está vivo para sempre, mandando ainda que ele escrevesse a visão que estava presenciando. O testemunho de João é valiosíssimo, porque ele convivera com Cristo em vida terrestre e O viu depois de ressuscitado, por diversas vezes. Associando-se isso ao fato de que João foi o Apóstolo que viveu mais tempo e, portanto, acompanhou todo o desenvolvimento do cristianismo nascente, tinha um conhecimento privilegiado de todos esses fatos e por isso a sua reflexão tinha aquela grande autoridade de cofundador do cristianismo. Um outro aspecto interessante do escrito de João é que podemos perceber ali (Ap 1, 11) um conceito da inspiração dos livros sagrados: o agiógrafo observa os fatos e os relata, de acordo com a sua percepção. Não podemos, pois, pensar que a palavra de Deus escrita, isto é, a Bíblia, tenha sido uma espécie de “ditado” ou um texto psicografado, como em algumas épocas anteriores se afirmava, para dar maior credibilidade aos textos. A mensagem é divina, mas a escrita é humana e a palavra de Deus é uma síntese dessas duas realidades, que nos compete interpretar.

O trecho do evangelho de hoje (Jo 20, 19-31) é o conhecido episódio da incredulidade de Tomé, um dos textos mais conhecidos do cristianismo antigo, porque ali João usava a imagem do apóstolo reticente para reforçar na fé os novos cristãos, ao dizer: bem-aventurados os que creram sem terem visto Jesus. E observemos que, embora Tomé tivesse dito antes que só acreditaria se pusesse o dedo nos locais das feridas de Jesus, quando se viu frente a frente com ele, ficou tão envergonhado de sua falta de fé que não teve outra iniciativa, senão a de prostrar-se e confessar soluçante a sua crença: Meu Senhor e meu Deus!. Podemos imaginar a cena em que Tomé teve sua arrogância inicial de incrédulo totalmente desmontada pelo chamado de Jesus: vem aqui e olha essas feridas… põe o dedo… ora, Jesus sabia do que Tomé havia dito e nem havia falado com ele antes. Desmoronou por completo a sua dúvida. E podemos concluir daí também que João narrou esse episódio com riqueza de detalhes exatamente porque, em algumas comunidades primitivas, ainda havia incertezas e interrogações acerca da humanidade real de Jesus, acerca da sua paixão e ressurreição, e João fora testemunha ocular de tudo aquilo, o que lhe garantia uma confiabilidade total nas suas narrativas. Certamente por isso é que esse episódio da incredulidade de Tomé foi narrado apenas pelo evangelista João, não se encontrando nos demais evangelhos. João tinha conhecimento do fato por experiência própria, por ter sido um dos que estavam presentes no momento, enquanto os outros autores dos evangelhos escreveram apenas pelo que ouviram ou leram a respeito. E João ainda diz mais que Jesus havia realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia feito.

Quero fazer uma referência, neste contexto, a outro trecho dos Atos dos Apóstolos que foi lido na liturgia de ontem, sábado, acerca da pregação dos Apóstolos e da adesão em massa dos judeus ao cristianismo, preocupando os chefes dos Sacerdotes e os anciãos do povo. Estes sabiam que aqueles Apóstolos eram os mesmos que haviam seguido Jesus e sabiam que eles eram homens de pouca instrução, daí não conseguirem entender o motivo de eles terem ficado tão sábios e eloquentes da noite para o dia, fazendo milagres que eles não podiam negar, eles mesmos presenciaram os fatos. (At 4, 14). Mandaram prendê-los, mas logo depois os soltaram, com receio de uma reação por parte da multidão, que os estimava e defendia. E ficaram a discutir sobre o que fazer para frear o avanço do cristianismo nascente, para que “a coisa não se espalhe ainda mais entre o povo” (At 4. 17). Então, chamaram Pedro e João e os proibiram de ensinar e pregar o nome de Jesus, ameaçando-os. Eles simplesmente disseram que não obedeceriam aquela ordem e os fariseus não puderam fazer nada, por causa do grande apoio popular que os Apóstolos tinham.

Observa-se, meus amigos, como foi impactante o resultado da pedagogia de Cristo usada durante a sua missão de pregador, quando lemos sobre os fatos ocorridos após a sua morte. Os fariseus e os sumos sacerdotes fizeram uma manobra política para conseguir a condenação de Jesus à morte, na expectativa de que, com isso, seus discípulos se dispersassem e a coisa se acabasse por ali. Assim já havia acontecido com outros “revolucionários” e havia dado certo, pensavam eles que seria a mesma coisa. Só que com Jesus a situação foi outra, porque Ele ressuscitou, isso fez toda a diferença. Desse modo, a grande massa ao ver os milagres operados pelos Apóstolos, em nome de Jesus, tiveram a certeza do seu poder e da sua origem divina, contrariando os prognósticos dos sacerdotes. O resultado disso é que a adesão à nova fé entre os judeus se apresentou em tal profusão que os sacerdotes ficaram sem saber o que fazer. Aquela estratégia imaginada com a sua condenação estava surtindo o efeito contrário do pretendido, ou seja, Jesus morto, mas ressuscitado, se tornara ainda mais poderoso do que antes de morrer. Essa é a grande mágica da loucura da cruz, de que fala o apóstolo Paulo (1 Cor 1, 18): “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.” Os chefes dos sacerdotes, ao apresentarem Jesus como um louco perante a multidão e o submeterem ao máximo suplício, pensavam que haviam exterminado a sua pregação e a sua influência. Não demorou nada e aquela suposta loucura estava se transformando em extraordinário poder, contra o qual os seus algozes não tinham mais nenhum controle.

Meus amigos, neste período pascal, acompanhemos as homilias do Papa Francisco, que a cada dia destaca aspectos novos e interessantes da misericórdia divina, demonstrando que a misericórdia é a nova imagem pela qual se apresenta a face de Jesus ressuscitado.

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