COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA
PÁSCOA – TRIPLA CONFISSÃO – 10.04.2016
Caros Leitores,
Na liturgia deste terceiro domingo da
Páscoa, temos três leituras do Novo Testamento, sendo duas delas
escritas por João: a segunda leitura, retirada do Apocalipse, e o
evangelho. Neste, relembramos o episódio em que Cristo fez Pedro
confessar seu amor por ele três vezes, talvez como uma forma de
compensar a tripla negação que ele fizera naquela noite em que
Jesus foi preso. Vemos ainda, na primeira leitura, o relato de Lucas,
nos Atos dos Apóstolos, sobre a pressão recebida por eles naqueles
dias que sucederam a paixão de Cristo, sendo perseguidos pelos
chefes dos sacerdotes e açoitados, para que não pregassem em nome
de Jesus.
Relata o escritor Lucas, em Atos (5,
27), que os Apóstolos foram levados ao Sinédrio, para se
apresentarem ao Sumo Sacerdote, que os interrogou sobre o porquê de
estarem pregando em nome de Jesus, se haviam sido proibidos de fazer
isso. Estavam os sacerdotes ainda mais irritados porque os Apóstolos
punham nos judeus a culpa pela morte de Jesus. Mas não podendo
manter os Apóstolos presos, por causa do receio da revolta popular,
limitaram-se a mandar açoitá-los e depois os soltaram, renovando a
proibição. E estes saíram do Sinédrio muito contentes, porque
tinham sido insultados por causa do nome de Jesus, mas isso não
impediu que eles continuassem a sua missão de disseminar o
cristianismo em Jerusalém. Apenas para deixar referenciado, a pena
de açoites era utilizada naquela época para delitos pequenos,
aquilo que atualmente o Direito chama de delitos de menor potencial
ofensivo. Por ocasião do julgamento de Jesus, Pilatos também mandou
açoitá-lo, tentando aplacar os judeus, pois tinha a intenção de
libertar Jesus depois da surra, mas não deu certo a estratégia No
caso dos Apóstolos, deu certo e até funcionou como um incentivo
para eles.
A segunda leitura é um trecho do
Apocalipse. Todos sabem que essa palavra significa revelação, pois
o texto relata várias visões que João teve quando estava
desterrado na ilha de Patmos. Numa dessas visões, ele recebeu uma
ordem: o que estás vendo, escreve num livro. Trata-se do texto mais
enigmático da Bíblia, pelo fato de usar uma linguagem
excessivamente cifrada e metafórica, dando azo a múltiplas
interpretações. Outro fato importante a ser registrado é que,
embora este seja o último livro do cânon bíblico, ele foi escrito
por João antes das cartas e do evangelho, que foram escritas após
ele ter sido libertado. De acordo com a tradição, após a morte de
Maria, mãe de Jesus, que vivia sob os cuidados de João, ele foi
viver em Éfeso, onde foi bispo daquela comunidade até a sua morte.
O pequeno trecho do Apocalipse (5,
11-14) lido na missa de hoje mostra que grande parte da arte sacra
produzida na Idade Média e no Renascimento tem como fonte de
inspiração a Revelação de João. Assim como alguns trechos fixos
da liturgia são também retirados desse mesmo livro. Dizendo, por
exemplo, que o Pai estava sentado no trono e, ao seu lado, o Cordeiro
que fora imolado e, em volta do trono, milhões de anjos, esta é uma
descrição que se vê representada nos quadros de diversos artistas,
cada um interpretando à sua maneira. E mais: as imagens dos anciãos
que se prostram e dos quatro seres vivos que diziam amém também
tiveram inúmeras reproduções. Há suposições de estudiosos que
afirmam que o Apocalipse era um texto bem mais longo, do qual foram
retirados alguns trechos mais complexos, de modo que o livro do
Apocalipse, que está na Bíblia, apresenta fragmentos do texto
original, que teria sido perdido. Daí existirem certos lapsos de
sequência, que suscitam as mais diferentes interpretações.
Trata-se, portanto, de um texto complexo e é assustador observar que
alguns leitores bíblicos banalizam as visões de João com
interpretações fundamentalistas e rasteiras.
O texto do evangelho, também de João,
relata a terceira aparição de Jesus aos discípulos, após a
ressurreição, desta vez na margem do lago de Tiberíades ou mar da
Galiléia. Eu fico imaginando a emoção de João ao escrever o seu
evangelho, quando já era bastante idoso, com mais de 90 anos,
recordando os fatos de sua juventude, de sua convivência com Jesus.
Consta que João teria escrito o seu evangelho por volta do ano 100
d.C., vindo a falecer pouco tempo depois, no ano 103. Pelo fato de
ter sido escrito bem tardiamente, o texto de João traz muitos
aperfeiçoamentos doutrinários, diferente dos outros evangelhos, que
apenas relatam fatos. Além disso, o fato de João ter sido
testemunha ocular dos acontecimentos, enquanto os outros evangelistas
sabiam apenas por ouvir dizer, faz grande diferença. Sem deixar de
mencionar que, na ocasião, os outros evangelhos já eram do
conhecimento das comunidades cristãs e João, certamente, conhecia
os seus textos. Por isso, o evangelho de João é bem mais reflexivo
e teológico.
Pois bem. João relata que alguns dos
discípulos, inclusive ele próprio, estavam na sua faina comum da
pescaria, quando Jesus apareceu. Essa narrativa denota que, após a
ressurreição de Cristo, os Apóstolos retornaram aos seus afazeres
profissionais, pescadores que eram e precisavam trabalhar para ter o
que comer. Então, Jesus foi procurá-los no seu ambiente de
trabalho, para continuar a sua catequese de preparação para a
missão de pregadores, confirmando o que ele havia ensinado antes.
Depois de passarem a noite em tentativas, sem conseguir apanhar
peixes, Jesus apareceu-lhes e mandou que eles retornassem e jogassem
a rede à direita do barco, ocorrendo aí a pesca milagrosa. De
início, eles não identificaram Jesus. Foi João que percebeu e
disse a Pedro: é o Senhor. Chegados à praia, já havia fogo aceso,
no qual foram assados pães e peixes, que Jesus repartiu com eles.
João não diz que Jesus comeu junto com eles. Também nessa
narrativa podemos observar que Jesus celebrou à beira mar uma
'missa' sem fazer uso do vinho, mas apenas com pão e peixe.
Na sequência dessa refeição, João
passa a relatar o episódio da tripla confissão de Pedro. Jesus
perguntou a Pedro, por três vezes seguida, se este O amava. Pedro,
na terceira vez, já estava sem jeito com a insistência de Jesus,
parecia que Ele não acreditava. Mas o objetivo de João, ao narrar
este fato, parece bastante nítido: através da tríplice pergunta,
Jesus queria resgatar a confiança de Pedro, após ter ele negado por
três vezes, na noite que antecedera a Paixão. Jesus havia predito
que Pedro o negaria por três vezes, antes que o galo cantasse.
Naquela ocasião, Jesus deu a Pedro a chance de desfazer aquele
equívoco e confessar a sua lealdade. A outra finalidade buscada por
João, ao que parece, era a de reforçar a confiança de Cristo na
liderança de Pedro sobre os demais Apóstolos. João foi o grande
baluarte de Pedro durante as pregações, sempre o acompanhava e o
assistia, porque havia entendido que o Mestre tinha expressado a
escolha de Pedro para ser o líder do grupo. A ordem de “apascentar
as ovelhas” foi desse modo entendida por João e assim ele
repassava para as comunidades primitivas o valor dessa liderança,
que era contestada por alguns.
Nos tempos iniciais do cristianismo, o
foco da pregação ainda estava no entorno de Jerusalém, pois os
Apóstolos tiveram como primeira meta a conquista da adesão das
comunidades de judeus. Somente algum tempo depois, com a conversão
de Paulo, teve início a pregação do evangelho nas cidades de
língua grega, onde também ocorria a dominação romana, progredindo
aos poucos até chegar a Roma, a grande capital do império. Depois
de estabelecer comunidades também em Roma, dada a importância
política e estratégica do local, Paulo levou Pedro para ser o lider
dos cristãos romanos, pois Paulo havia compreendido o desejo de
Cristo no mesmo sentido que João também ensinava, ou seja, que
embora fosse ele (João) o discípulo amado, no entanto, a 'chefia'
do grupo fora delegada a Pedro. A prova de que esse entendimento não
era consensual é que, anos mais tarde, os bispos das cidades gregas
não aceitaram submeter-se à autoridade do Bispo de Roma, surgindo
daí o grande cisma do ocidente, em 1054, quando as igrejas católicas
gregas formalmente romperam com a Igreja Romana. Após mais de 900
anos, em 1964, o Papa Paulo VI teve o primeiro encontro amistoso com
o Patriarca de Constantinopla, dando início a negociações para
reunificação do catolicismo, o que vem sendo continuado pelos
Pontífices seguintes, tarefa ainda não concluída.
Pois bem, meus amigos. Esses
testemunhos de João e de Paulo são muito importantes e nos ajudam a
compreender os rumos que a Igreja de Cristo seguiu nos primeiros
séculos. E eu vejo, com muita esperança, as últimas tratativas
para a reunião das igrejas católicas oriental e ocidental, levadas
a efeito pelos últimos Papas. Em 2013, comemorou-se o aniversário
de 1.700 anos do Edito de Milão, pelo qual o imperador Constantino
deu a liberdade religiosa dos cristãos. A festa foi realizada em
Constantinopla, com a participação dos representantes do Vaticano,
fato bastante promissor para o avanço da união de toda a
cristandade.
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