segunda-feira, 18 de abril de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA PÁSCOA - TRIPLA CONFISSÃO - 10.04.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOM. DA PÁSCOA – TRIPLA CONFISSÃO – 10.04.2016

Caros Leitores,

Na liturgia deste terceiro domingo da Páscoa, temos três leituras do Novo Testamento, sendo duas delas escritas por João: a segunda leitura, retirada do Apocalipse, e o evangelho. Neste, relembramos o episódio em que Cristo fez Pedro confessar seu amor por ele três vezes, talvez como uma forma de compensar a tripla negação que ele fizera naquela noite em que Jesus foi preso. Vemos ainda, na primeira leitura, o relato de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, sobre a pressão recebida por eles naqueles dias que sucederam a paixão de Cristo, sendo perseguidos pelos chefes dos sacerdotes e açoitados, para que não pregassem em nome de Jesus.

Relata o escritor Lucas, em Atos (5, 27), que os Apóstolos foram levados ao Sinédrio, para se apresentarem ao Sumo Sacerdote, que os interrogou sobre o porquê de estarem pregando em nome de Jesus, se haviam sido proibidos de fazer isso. Estavam os sacerdotes ainda mais irritados porque os Apóstolos punham nos judeus a culpa pela morte de Jesus. Mas não podendo manter os Apóstolos presos, por causa do receio da revolta popular, limitaram-se a mandar açoitá-los e depois os soltaram, renovando a proibição. E estes saíram do Sinédrio muito contentes, porque tinham sido insultados por causa do nome de Jesus, mas isso não impediu que eles continuassem a sua missão de disseminar o cristianismo em Jerusalém. Apenas para deixar referenciado, a pena de açoites era utilizada naquela época para delitos pequenos, aquilo que atualmente o Direito chama de delitos de menor potencial ofensivo. Por ocasião do julgamento de Jesus, Pilatos também mandou açoitá-lo, tentando aplacar os judeus, pois tinha a intenção de libertar Jesus depois da surra, mas não deu certo a estratégia No caso dos Apóstolos, deu certo e até funcionou como um incentivo para eles.

A segunda leitura é um trecho do Apocalipse. Todos sabem que essa palavra significa revelação, pois o texto relata várias visões que João teve quando estava desterrado na ilha de Patmos. Numa dessas visões, ele recebeu uma ordem: o que estás vendo, escreve num livro. Trata-se do texto mais enigmático da Bíblia, pelo fato de usar uma linguagem excessivamente cifrada e metafórica, dando azo a múltiplas interpretações. Outro fato importante a ser registrado é que, embora este seja o último livro do cânon bíblico, ele foi escrito por João antes das cartas e do evangelho, que foram escritas após ele ter sido libertado. De acordo com a tradição, após a morte de Maria, mãe de Jesus, que vivia sob os cuidados de João, ele foi viver em Éfeso, onde foi bispo daquela comunidade até a sua morte.

O pequeno trecho do Apocalipse (5, 11-14) lido na missa de hoje mostra que grande parte da arte sacra produzida na Idade Média e no Renascimento tem como fonte de inspiração a Revelação de João. Assim como alguns trechos fixos da liturgia são também retirados desse mesmo livro. Dizendo, por exemplo, que o Pai estava sentado no trono e, ao seu lado, o Cordeiro que fora imolado e, em volta do trono, milhões de anjos, esta é uma descrição que se vê representada nos quadros de diversos artistas, cada um interpretando à sua maneira. E mais: as imagens dos anciãos que se prostram e dos quatro seres vivos que diziam amém também tiveram inúmeras reproduções. Há suposições de estudiosos que afirmam que o Apocalipse era um texto bem mais longo, do qual foram retirados alguns trechos mais complexos, de modo que o livro do Apocalipse, que está na Bíblia, apresenta fragmentos do texto original, que teria sido perdido. Daí existirem certos lapsos de sequência, que suscitam as mais diferentes interpretações. Trata-se, portanto, de um texto complexo e é assustador observar que alguns leitores bíblicos banalizam as visões de João com interpretações fundamentalistas e rasteiras.

O texto do evangelho, também de João, relata a terceira aparição de Jesus aos discípulos, após a ressurreição, desta vez na margem do lago de Tiberíades ou mar da Galiléia. Eu fico imaginando a emoção de João ao escrever o seu evangelho, quando já era bastante idoso, com mais de 90 anos, recordando os fatos de sua juventude, de sua convivência com Jesus. Consta que João teria escrito o seu evangelho por volta do ano 100 d.C., vindo a falecer pouco tempo depois, no ano 103. Pelo fato de ter sido escrito bem tardiamente, o texto de João traz muitos aperfeiçoamentos doutrinários, diferente dos outros evangelhos, que apenas relatam fatos. Além disso, o fato de João ter sido testemunha ocular dos acontecimentos, enquanto os outros evangelistas sabiam apenas por ouvir dizer, faz grande diferença. Sem deixar de mencionar que, na ocasião, os outros evangelhos já eram do conhecimento das comunidades cristãs e João, certamente, conhecia os seus textos. Por isso, o evangelho de João é bem mais reflexivo e teológico.

Pois bem. João relata que alguns dos discípulos, inclusive ele próprio, estavam na sua faina comum da pescaria, quando Jesus apareceu. Essa narrativa denota que, após a ressurreição de Cristo, os Apóstolos retornaram aos seus afazeres profissionais, pescadores que eram e precisavam trabalhar para ter o que comer. Então, Jesus foi procurá-los no seu ambiente de trabalho, para continuar a sua catequese de preparação para a missão de pregadores, confirmando o que ele havia ensinado antes. Depois de passarem a noite em tentativas, sem conseguir apanhar peixes, Jesus apareceu-lhes e mandou que eles retornassem e jogassem a rede à direita do barco, ocorrendo aí a pesca milagrosa. De início, eles não identificaram Jesus. Foi João que percebeu e disse a Pedro: é o Senhor. Chegados à praia, já havia fogo aceso, no qual foram assados pães e peixes, que Jesus repartiu com eles. João não diz que Jesus comeu junto com eles. Também nessa narrativa podemos observar que Jesus celebrou à beira mar uma 'missa' sem fazer uso do vinho, mas apenas com pão e peixe.

Na sequência dessa refeição, João passa a relatar o episódio da tripla confissão de Pedro. Jesus perguntou a Pedro, por três vezes seguida, se este O amava. Pedro, na terceira vez, já estava sem jeito com a insistência de Jesus, parecia que Ele não acreditava. Mas o objetivo de João, ao narrar este fato, parece bastante nítido: através da tríplice pergunta, Jesus queria resgatar a confiança de Pedro, após ter ele negado por três vezes, na noite que antecedera a Paixão. Jesus havia predito que Pedro o negaria por três vezes, antes que o galo cantasse. Naquela ocasião, Jesus deu a Pedro a chance de desfazer aquele equívoco e confessar a sua lealdade. A outra finalidade buscada por João, ao que parece, era a de reforçar a confiança de Cristo na liderança de Pedro sobre os demais Apóstolos. João foi o grande baluarte de Pedro durante as pregações, sempre o acompanhava e o assistia, porque havia entendido que o Mestre tinha expressado a escolha de Pedro para ser o líder do grupo. A ordem de “apascentar as ovelhas” foi desse modo entendida por João e assim ele repassava para as comunidades primitivas o valor dessa liderança, que era contestada por alguns.

Nos tempos iniciais do cristianismo, o foco da pregação ainda estava no entorno de Jerusalém, pois os Apóstolos tiveram como primeira meta a conquista da adesão das comunidades de judeus. Somente algum tempo depois, com a conversão de Paulo, teve início a pregação do evangelho nas cidades de língua grega, onde também ocorria a dominação romana, progredindo aos poucos até chegar a Roma, a grande capital do império. Depois de estabelecer comunidades também em Roma, dada a importância política e estratégica do local, Paulo levou Pedro para ser o lider dos cristãos romanos, pois Paulo havia compreendido o desejo de Cristo no mesmo sentido que João também ensinava, ou seja, que embora fosse ele (João) o discípulo amado, no entanto, a 'chefia' do grupo fora delegada a Pedro. A prova de que esse entendimento não era consensual é que, anos mais tarde, os bispos das cidades gregas não aceitaram submeter-se à autoridade do Bispo de Roma, surgindo daí o grande cisma do ocidente, em 1054, quando as igrejas católicas gregas formalmente romperam com a Igreja Romana. Após mais de 900 anos, em 1964, o Papa Paulo VI teve o primeiro encontro amistoso com o Patriarca de Constantinopla, dando início a negociações para reunificação do catolicismo, o que vem sendo continuado pelos Pontífices seguintes, tarefa ainda não concluída.

Pois bem, meus amigos. Esses testemunhos de João e de Paulo são muito importantes e nos ajudam a compreender os rumos que a Igreja de Cristo seguiu nos primeiros séculos. E eu vejo, com muita esperança, as últimas tratativas para a reunião das igrejas católicas oriental e ocidental, levadas a efeito pelos últimos Papas. Em 2013, comemorou-se o aniversário de 1.700 anos do Edito de Milão, pelo qual o imperador Constantino deu a liberdade religiosa dos cristãos. A festa foi realizada em Constantinopla, com a participação dos representantes do Vaticano, fato bastante promissor para o avanço da união de toda a cristandade.

****

Nenhum comentário:

Postar um comentário