COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DA PÁSCOA – SOMOS UM – 17.04.2016
Caros Leitores,
A liturgia do 4º domingo da Páscoa
celebra a imagem do Bom Pastor, que conhece as suas ovelhas (Jo 10,
27). E com essa celebração, recordamos também a figura da Divina
Pastora, devoção divulgada pelo beato capuchino espanhol Diego de
Cadiz, trazida para o Brasil pelas mãos dos frades capuchinhos
italianos. Mas o detalhe que eu gostaria de destacar na leitura do
evangelho de hoje é a afirmação de João, pronunciada por Jesus:
“eu e o Pai somos um”. Algumas dezenas de anos depois, João vem
recordar uma importante revelação trazida por Cristo e, sem a qual,
a mente humana jamais imaginaria a existencia do Deus trino.
A primeira leitura, dos Atos dos
Apóstolos (13, 14ss), relata a missão de Paulo e Barnabé, em
Antioquia, onde havia muitos judeus simpatizantes do cristianismo, no
entanto, a presença
dos Apóstolos atiçou a
ira dos chefes dos sacerdotes
judeus, que não queriam ouvir falar no nome de Jesus. Obtendo apoio
das mulheres ricas e dos homens influentes do lugar, os chefes dos
judeus puseram toda a cidade contra Paulo e Barnabé, forçando-os a
fugirem para outro local. Foi quando Paulo lançou-lhes o anátema:
“'Era
preciso anunciar a palavra de Deus primeiro a vós. Mas, como a
rejeitais e vos considerais indignos da vida eterna, sabei que vamos
dirigir-nos aos pagãos.”
(At 13, 46) Vê-se, nesse relato, a mesma imagem das ovelhas que não
reconhecem o pastor e o expulsam. Então, os Apóstolos deixaram de
insistir com os judeus pela sua conversão ao cristianismo e passaram
a pregar a Palavra aos gentios, donde foi atribuído a Paulo o título
de Apóstolos dos gentios.
Esse é realmente um detalhe
interessante dessa narrativa (At 14, 50), quando Lucas relata que os
judeus instigaram as
mulheres ricas e religiosas, bem como os homens influentes da cidade
para buscarem apoio a fim de expulsarem Paulo e Barnabé dali. Há
duas observações que quero fazer aqui. Primeiro, a menção das
mulheres ricas. Sabe-se que, naquela época, as mulheres eram
submissas aos maridos e, por elas mesmas, não tinham força para se
projetarem socialmente. Será que os homens influentes, referidos
pelo escritor sagrado, eram os maridos dessas mulheres ricas? Talvez
o objetivo do texto seja estabelecer um confronto entre as classes
sociais daquele tempo, querendo destacar que as primeiras comunidades
cristãs eram compostas por pessoas simples e mais pobres, como que a
denunciar que as elites judaicas e gregas rejeitaram o cristianismo.
Isso mesmo havia acontecido com a pregação de Cristo, que sempre se
dirigia à classe popular. São raros os relatos de pessoas ricas que
buscavam ouvi-lo e segui-lo, como foi o caso de Nicodemos e de José
de Arimatéia. Esse fato explica também o motivo de Paulo ter-se
dedicado integralmente à pregação do evangelho nas comunidades
gregas, porque percebera que era inútil trabalhar para a conversão
dos judeus. E talvez esse fato também explique um certo ranço de
distanciamento que se verificava tradicionalmente entre cristãos e
judeus, chegando ao ponto de haver, na Semana Santa, uma oração
especial pelos “pérfidos judeus”. Esse ritual somente foi
substituído após o Concílio Vaticano II, quando o Papa Paulo VI
iniciou um movimento de aproximação com as igrejas católicas
orientais (consideradas cismáticas) e com as comunidades judaicas.
Sabemos, pelos escritos de Paulo, que
outros judeus, residentes em cidades gregas, aderiram mais facilmente
ao cristianismo, pois não tinham a influência negativa dos
fariseus. Estes até quiseram ter uma 'prioridade' em relação aos
novos cristãos de origem grega, considerando-se eles os primeiros a
quem a Palavra fora dirigida, e assim eles deveriam ter um tratamento
diferenciado. Paulo opôs-se veementemente a isso, afirmando que,
após a nova aliança celebrada por Cristo, já não há mais
diferença entre judeu e grego, porque agora todos estão incluídos
no mesmo rebanho e são conduzidos pelo mesmo Bom Pastor. Convém
sempre lembrar que foi em decorrência desse novo direcionamento da
catequese dos Apóstolos, voltada para os não judeus, que nós
brasileiros, latino americanos, tivemos o acesso à Boa Nova cristã,
na continuidade da ação apostólica de Paulo, que chegou até nós
por intermédio dos seus seguidores, discípulos de Inácio de
Loyola.
A pregação do cristianismo aos
gentios está também representada no texto da segunda leitura,
retirada do Apocalipse de João: “Eu,
João, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos,
povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante
do trono e do Cordeiro.”
(Ap 7, 9) Embora João tenha se mantido em território habitado por
judeus e mesmo não tendo seguido Paulo em suas pregações pelos
domínios gregos, no entanto, ele teve a mesma intuição de que o
cristianismo obteria mais sucesso entre os gentios do que entre os
judeus. E prossegue João: “Esses
são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as
suas roupas no sangue do Cordeiro.
” (Ap 7, 14) Com outras palavras, João repete o mesmo ensinamento
de Paulo a respeito da questão dos judaizantes: todos os que foram
lavados no sangue do Cordeiro pertencem ao mesmo rebanho, sem
distinção de origem. Todos passaram pela 'grande tribulação' e
saíram vitoriosos. João estava, certamente, se lembrando da
promessa de Cristo de que eles iriam ser perseguidos por causa do
nome d'Ele, mas que, ao final, sairiam vitoriosos. João foi um
exemplo de alguém que sofreu na pele inúmeras provações por causa
da pregação do evangelho. Mas ele tinha certeza de que, depois
daquela tribulação, o sangue do Cordeiro o habilitaria a receber a
recompensa. Após a provação pelo sofrimento, todos “nunca
mais terão fome, nem sede, nem os molestará o sol, nem algum calor
ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu
pastor e os conduzirá às fontes da água da vida.
” (Ap 7, 16-17)
Na parábola do bom pastor, aludida no
texto do evangelho de João, podemos vislumbrar novamente a vocação
dos gentios para terem prioridade na pregação dos Apóstolos.
Quando João reproduz as palavras de Jesus: “As
minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem.
” (Jo 10, 27), esta frase nos deixa a cogitar no porquê de não
terem os judeus escutado a voz do Bom Pastor e não o terem seguido.
Eles não eram Suas ovelhas? Ora, mas foi para eles, o povo da
promessa, que a Palavra divina foi dirigida em primeiro lugar, como
não seriam eles Suas ovelhas? Parece, meus amigos, que o problema
está em ouvir a palavra sem escutá-la. Embora estes dois verbos
sejam gramaticalmente sinônimos, se observarmos bem, quantas vezes,
nós ouvimos algo e não conseguimos mentalizar aquilo? Seja porque
estamos distraídos, seja porque nos faltou interesse, seja porque
estávamos ocupados com outras coisas mais importantes naquele
momento. Deve ter sido algo semelhante que aconteceu com os judeus:
ouviram a pregação de João Batista e não a escutaram; ouviram a
pregação de Cristo e não a escutaram; ouviram a pregação dos
apóstolos e não a escutaram. Talvez estivessem com os ouvidos
ocupados com outras coisas “mais importantes”.
No final desse trecho do evangelho (Jo
10, 30), o evangelista faz uma breve afirmação, que contém um
imenso significado. Depois de dizer que não irá perder aquelas
ovelhas, porque foi o Pai quem havia lhe dado, Jesus arremata:
“porque eu e o Pai somos um”. O grande diferencial do evangelho
joanino, em relação aos outros, está nessas inserções teológicas
que João faz. Ele não se limita a narrar o fato, mas trata de
mesclar com ensinamentos doutrinários. Dizer que “eu e o Pai somos
um” significa que Jesus também é Deus, mas não um “outro”
Deus, e sim o mesmo Deus que é o Pai. Com outras palavras, aqui está
a mesma afirmação que ele colocou no prólogo do seu evangelho: no
princípio…, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus… tudo que
existe foi feito por ele e sem ele nada foi feito. Com poucas
palavras e belas imagens, João sintetiza a doutrina teológica da
trindade.
Essa verdade teológica do Deus Trino
não se encontra em nenhuma outra religião, bem como também não
está presente no Antigo Testamento. Nenhum profeta anteviu isso,
nenhum escriba antigo mencionou nada parecido. Somente a revelação
neotestamentária veio trazer essa novidade, somente a pregação de
Cristo trouxe a lume tal complexa figura. O motivo pelo qual uma tal
afirmação só veio a aparecer nos textos de João significa que
somente muitos anos após a morte de Cristo, com o desenvolvimento
doutrinário da revelação contida no evangelho, foi que os líderes
cristãos começaram a entender isso. E o contato e a influência da
filosofia grega foi um recurso de grande importância para a
construção desses esclarecimentos conceituais.
Que a Santíssima Trindade conduza os
destinos do povo brasileiro, sobretudo nesse penoso conflito político
pelo qual passamos.
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