COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO
DA PÁSCOA – DEUS MISERICÓRDIA – 03.04.2016
Caros Leitores,
Neste
segundo domingo da Páscoa, a liturgia celebra o “domingo da
misericórdia”, neste ano santo da misericórdia, declarado pelo
Papa Francisco, no final do ano passado. O segundo domingo da páscoa
é o dia consagrado a essa festa, que é nova no devocionismo
católico, pois só passou a ser prestigiada no final do pontificado
do Papa São João Paulo II. A exaltação da misericórdia divina é
o reconhecimento das revelações particulares recebidas por Santa
Faustina Kowalska, uma freira polonesa, falecida aos 33 anos, em
1938, e que deixou registradas, no seu diário, inúmeras visões em
que Cristo aparece a ela com raios fulgindo do coração e
pedindo-lhe a divulgação da sua misericórdia pela humanidade. A
própria palavra “misericórdia” resume outras duas palavras
latinas: miserere (ter compaixão) e cordis (do coração). O Papa
Francisco, no sermão deste domingo aos peregrinos, no Vaticano,
assim definiu essa virtude: “A misericórdia é, antes de mais
nada, a proximidade de Deus ao seu povo. Uma proximidade que se
manifesta principalmente como ajuda e proteção.” Foi em virtude
de sua misericórdia que Deus se fez um de nós, concluiu o Papa, o
que torna esta solenidade totalmente alinhada com as festividades
pascais.
Na primeira leitura, dos Atos dos
Apóstolos (At 5, 12-16), lemos diversos testemunhos narrados por
Lucas (autor do texto) da grande adesão de novos cristãos, mediante
a pregação dos Apóstolos e os milagres realizados por eles.
Inicialmente, escondidos e trancados em casa por medo do que lhes
poderia acontecer depois da morte de Cristo, no entanto, após a
ressurreição, houve uma transformação no seu comportamento e no
seu modo de agir. Diz o texto que acorriam multidões das cidades
próximas de Jerusalém, para ouvir a pregação dos Apóstolos e
traziam seus doentes para serem curados. Colocavam os doentes nos
locais por onde eles deviam passar e esperavam que ao menos a sua
sombra os atingisse, porque isso era garantia de cura. Com efeito,
pelos relatos de Atos, os Apóstolos fizeram grande quantidade de
milagres, os quais não foram todos conservados nas narrações, até
porque isso seria impossível, dada a sua profusão. Os milagres
feitos por intermédio dos Apóstolos tinham uma força probante
muito eficiente, porque demonstravam nas pessoas destes o poder e a
divindade de Jesus. O poder de convencimento que os Apóstolos
exerciam eram fortíssimo, ocasionando grande quantidade de
conversões em Jerusalém e nas cidades próximas.
Na segunda leitura, lemos um trecho do
Apocalipse de João, na qual ele relata algo que passou, quando
esteve exilado na ilha de Patmos, e declara que alguém, semelhante
ao filho do Homem, afirmou para ele que havia morrido, mas agora está
vivo para sempre, mandando ainda que ele escrevesse a visão que
estava presenciando. O testemunho de João é valiosíssimo, porque
ele convivera com Cristo em vida terrestre e O viu depois de
ressuscitado, por diversas vezes. Associando-se isso ao fato de que
João foi o Apóstolo que viveu mais tempo e, portanto, acompanhou
todo o desenvolvimento do cristianismo nascente, tinha um
conhecimento privilegiado de todos esses fatos e por isso a sua
reflexão tinha aquela grande autoridade de cofundador do
cristianismo. Um outro aspecto interessante do escrito de João é
que podemos perceber ali (Ap 1, 11) um conceito da inspiração dos
livros sagrados: o agiógrafo observa os fatos e os relata, de acordo
com a sua percepção. Não podemos, pois, pensar que a palavra de
Deus escrita, isto é, a Bíblia, tenha sido uma espécie de “ditado”
ou um texto psicografado, como em algumas épocas anteriores se
afirmava, para dar maior credibilidade aos textos. A mensagem é
divina, mas a escrita é humana e a palavra de Deus é uma síntese
dessas duas realidades, que nos compete interpretar.
O trecho do evangelho de hoje (Jo 20,
19-31) é o conhecido episódio da incredulidade de Tomé, um dos
textos mais conhecidos do cristianismo antigo, porque ali João usava
a imagem do apóstolo reticente para reforçar na fé os novos
cristãos, ao dizer: bem-aventurados os que creram sem terem visto
Jesus. E observemos que, embora Tomé tivesse dito antes que só
acreditaria se pusesse o dedo nos locais das feridas de Jesus, quando
se viu frente a frente com ele, ficou tão envergonhado de sua falta
de fé que não teve outra iniciativa, senão a de prostrar-se e
confessar soluçante a sua crença: Meu Senhor e meu Deus!. Podemos
imaginar a cena em que Tomé teve sua arrogância inicial de
incrédulo totalmente desmontada pelo chamado de Jesus: vem aqui e
olha essas feridas… põe o dedo… ora, Jesus sabia do que Tomé
havia dito e nem havia falado com ele antes. Desmoronou por completo
a sua dúvida. E podemos concluir daí também que João narrou esse
episódio com riqueza de detalhes exatamente porque, em algumas
comunidades primitivas, ainda havia incertezas e interrogações
acerca da humanidade real de Jesus, acerca da sua paixão e
ressurreição, e João fora testemunha ocular de tudo aquilo, o que
lhe garantia uma confiabilidade total nas suas narrativas. Certamente
por isso é que esse episódio da incredulidade de Tomé foi narrado
apenas pelo evangelista João, não se encontrando nos demais
evangelhos. João tinha conhecimento do fato por experiência
própria, por ter sido um dos que estavam presentes no momento,
enquanto os outros autores dos evangelhos escreveram apenas pelo que
ouviram ou leram a respeito. E João ainda diz mais que Jesus havia
realizado muitas outras maravilhas, que não foram escritas naquele
livro, as que estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que
Ele havia feito.
Quero fazer uma referência, neste
contexto, a outro trecho dos Atos dos Apóstolos que foi lido na
liturgia de ontem, sábado, acerca da pregação dos Apóstolos e da
adesão em massa dos judeus ao cristianismo, preocupando os chefes
dos Sacerdotes e os anciãos do povo. Estes sabiam que aqueles
Apóstolos eram os mesmos que haviam seguido Jesus e sabiam que eles
eram homens de pouca instrução, daí não conseguirem entender o
motivo de eles terem ficado tão sábios e eloquentes da noite para o
dia, fazendo milagres que eles não podiam negar, eles mesmos
presenciaram os fatos. (At 4, 14). Mandaram prendê-los, mas logo
depois os soltaram, com receio de uma reação por parte da multidão,
que os estimava e defendia. E ficaram a discutir sobre o que fazer
para frear o avanço do cristianismo nascente, para que “a coisa
não se espalhe ainda mais entre o povo” (At 4. 17). Então,
chamaram Pedro e João e os proibiram de ensinar e pregar o nome de
Jesus, ameaçando-os. Eles simplesmente disseram que não obedeceriam
aquela ordem e os fariseus não puderam fazer nada, por causa do
grande apoio popular que os Apóstolos tinham.
Observa-se, meus amigos, como foi
impactante o resultado da pedagogia de Cristo usada durante a sua
missão de pregador, quando lemos sobre os fatos ocorridos após a
sua morte. Os fariseus e os sumos sacerdotes fizeram uma manobra
política para conseguir a condenação de Jesus à morte, na
expectativa de que, com isso, seus discípulos se dispersassem e a
coisa se acabasse por ali. Assim já havia acontecido com outros
“revolucionários” e havia dado certo, pensavam eles que seria a
mesma coisa. Só que com Jesus a situação foi outra, porque Ele
ressuscitou, isso fez toda a diferença. Desse modo, a grande massa
ao ver os milagres operados pelos Apóstolos, em nome de Jesus,
tiveram a certeza do seu poder e da sua origem divina, contrariando
os prognósticos dos sacerdotes. O resultado disso é que a adesão à
nova fé entre os judeus se apresentou em tal profusão que os
sacerdotes ficaram sem saber o que fazer. Aquela estratégia
imaginada com a sua condenação estava surtindo o efeito contrário
do pretendido, ou seja, Jesus morto, mas ressuscitado, se tornara
ainda mais poderoso do que antes de morrer. Essa é a grande mágica
da loucura da cruz, de que fala o apóstolo Paulo (1 Cor 1, 18):
“Porque a palavra da cruz é
loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o
poder de Deus.” Os chefes dos sacerdotes, ao apresentarem Jesus
como um
louco perante a multidão e o submeterem ao máximo suplício,
pensavam que haviam exterminado a sua pregação e a sua influência.
Não demorou nada e aquela suposta loucura estava se transformando em
extraordinário poder, contra o qual os seus algozes não tinham mais
nenhum controle.
Meus amigos, neste período pascal,
acompanhemos as homilias do Papa Francisco, que a cada dia destaca
aspectos novos e interessantes da misericórdia divina, demonstrando
que a misericórdia é a nova imagem pela qual se apresenta a face de
Jesus ressuscitado.
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