COMENTÁRIO LITÚRGICO – 10º DOMINGO
COMUM – SENHOR DA VIDA – 05.06.2016
Caros Leitores,
As leituras deste décimo domingo do
tempo comum trazem duas passagens bíblicas sobre o tema do
renascimento e uma comovente autobiografia. O primeiro episódio,
contado no 1º livro dos Reis (17, 17), narra o milagre operado por
Elias, ressuscitando o filho da viúva de Sarepta, dona da casa onde
ele estava hospedado, durante a grande seca naquela região. O
segundo episódio, narrado por Lucas (7, 11), fala de Jesus
ressuscitando o filho de outra viúva, a de Nahim. Na segunda
leitura, o apóstolo Paulo narra aos Gálatas como ele também
renasceu após o seu encontro com Cristo, transformando-se de
perseguidor em pregador. (Gal 1, 11).
Numa coincidência
interessante, os dois casos envolvem mulheres viúvas e ambas haviam
perdido seu único filho. No primeiro caso, protagonizado pelo
profeta Elias, este não foi o único milagre operado por ele em
favor daquela viúva que o hospedava. Embora a leitura litúrgica não
contenha o milagre anterior, este é um episódio também muito
conhecido. O profeta estava em missão na região norte da Palestina
e, ao chegar na cidade de Sarepta, pediu hospedagem a uma mulher, que
colhia lenha no mato. Ela não recusou, porém avisou a ele que não
podia oferecer-lhe uma refeição, porque tudo que ela possuía era
uma pequena porção de trigo e de óleo, com a qual faria o último
pão para alimentação dela e do filho e depois iriam aguardar a
morte. Foi quando o profeta lhe disse: dá-me este pão e nunca
faltará farinha na tua vasilha. E assim aconteceu. Porém, algum
tempo depois, o filho da sua anfitriã contraiu grave enfermidade e
veio a falecer. Então, a mãe se queixou para Elias: por que vieste
aqui trazer a morte, eu que te forneci hospedagem. E Elias ficou
deveras desapontado e cobrou de Javeh uma atitude: por que vens
afligir a viúva da casa onde habito, atingindo o seu filho? Rogo-te
que devolvas a vida a essa criança. E assim Elias operou o segundo
milagre em favor daquela mulher. O episódio demonstra que Javeh é o
Senhor da vida, porque só quem tem tal poder é capaz de criá-la e
de restitui-la.
No outro caso, narrado
no evangelho de Lucas, não houve nenhum pedido, o próprio Jesus
tomou a iniciativa de ressuscitar o filho da outra viúva, sabendo
tratar-se de seu filho único. E aquela notícia se espalhou por toda
a região: um grande profeta está entre nós. Obviamente, isso
causara um terrível ódio nos fariseus, que acompanhavam os passos
de Jesus. Tal como no episódio do profeta Elias, Jesus demonstrava à
multidão que o seguia que ele também era Senhor da vida, para
embaraço dos fariseus que não acreditavam ser ele o filho de Deus.
Nos dois episódios, destaca-se claramente que o Pai e o Filho são
ambos o Deus da vida. Isso deve ser entendido tanto no sentido
literal quanto no sentido figurado. O nosso Deus é maior do que a
morte, Ele pode fazer os mortos ressuscitarem. O exemplo que ocorreu
com esses dois jovens é o prenúncio do que acontecerá com todos os
mortais. Se até para os não crentes, como é o caso dos jovens
beneficiados com os milagres de Elias e de Cristo, a ressurreição
ocorreu, quanto mais isso ocorrerá para aqueles que acreditam.
E vejam que estamos
falando de ressurreição, não de salvação. A ressurreição virá
para todos; a salvação, para os que praticam o evangelho de Cristo.
E o que é o evangelho de Cristo? É o amor, que está resumido
naqueles dois mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas e ao
próximo como a si mesmo. No domingo passado, falamos sobre o sermão
do Papa Francisco, no qual ele afirmou que até os ateus, que fazem o
bem, serão salvos. O batismo e a pertença à Igreja são caminhos
que nós temos para alcançar a salvação, mas não são exclusivos.
Os exemplos das leituras de hoje, envolvendo dois jovens desengajados
reforçam o que foi dito no domingo passado, acerca do milagre
praticado por Cristo na pessoa do servo do centurião, também um não
crente. O Papa não estava trazendo nenhuma novidade ao afirmar
aquilo, apenas recordando que os não crentes também terão o seu
prêmio, se praticarem a caridade de Cristo. E os crentes, do mesmo
modo, pois não basta ter atestado de batismo. Jesus disse mais de
uma vez: não é aquele que diz: Senhor, Senhor... que entrará no
céu, mas o que cumpre a palavra de Deus. Esta é uma verdade
simples, preciosa e muito esquecida. A salvação não se alcança
pelo número de terços rezados, pelo número de missas assistidas,
pelo número de comunhões recebidas, pela quantidade de sinais da
cruz praticados. Tudo isso é valioso e importante, mas se não for
conjugado com o cumprimento do mandamento de Cristo, não terá
valor.
É oportuno destacar
também que o nosso Deus tem uma predileção pelos mais
necessitados. Imaginemos a situação de uma viúva, ou seja, uma
mulher que já havia perdido o marido e que depois perde também o
seu único filho. Numa época em que as mulheres eram consideradas
economicamente inativas, como elas iriam sobreviver? Cristo, que não
veio negar a lei antiga, mas cumpri-la com perfeição, repetiu o
mesmo gesto do profeta Elias, que vivera cerca de mil anos antes
d'Ele, restituindo a vida ao filho único de uma viúva. Apenas para
esclarecer, a situação das mulheres viúvas, na antiguidade, era
desesperadora, pois devido à prevalência da linhagem masculina
(patriarcalismo), a herança do falecido era distribuída entre os
filhos e estes não tinham obrigação de sustentar a viúva, que
muitas vezes nem era a mãe deles e também porque tinham as próprias
famílias. Resultado: a viúva ficava numa situação deplorável.
Somente na época do imperador Justiniano (século VI depois de
Cristo) esta situação mudou, quando este sábio governante
determinou que 25% dos bens do falecido seriam destinados à viúva.
Na época de Cristo, as viúvas faziam parte daquela parcela da
população mais necessitada e para esses Cristo tinha uma especial
predileção. Tanto assim que ressuscitou o filho da viúva sem que
ela Lhe pedisse, para mostrar aos seus seguidores que ele, assim como
o Pai, são Senhores da vida.
A autobiografia ou o
renascimento de Paulo, narrado na epístola aos Gálatas (1, 11-19),
é ainda mais comovente, porque é narrado em primeira pessoa. Paulo
fala de si próprio, de como perseguia com todas as forças o
cristianismo e ganhava pontos no farisaísmo com isso. Mas depois que
Cristo o chamou, aquele Paulo perseguidor morreu e surgiu um novo
Paulo evangelizador. Faz pouco tempo, eu li numa reportagem que
aquela luz incandescente que derrubou Paulo do cavalo, no caminho de
Damasco, teria sido um a queda de um meteorito naquele local. Não
sei por que certas pessoas se esforçam para descaracterizar os fatos
miraculosos, tentando relacionar com causas naturais. Mas ainda que
assim o fosse, naquela ocasião específica e com o resultado que
operou, aquela luz foi direcionada por Cristo, para selecionar uma
pessoa de cultura, a fim de pregar o evangelho, pois Ele sabia que os
seus apóstolos galileus não seriam escutados, quando fossem encarar
o mundo da cultura greco-romana. Ademais, Paulo declara expressamente
o que ele viu: o evangelho que eu prego a vocês, eu não recebi de
homem algum, mas por revelação de Cristo (Gal 1, 12). Somente três
anos depois, ele foi encontrar-se com Pedro, em Jerusalém, antes de
iniciar suas viagens pelo mundo grego. Sobre o seu renascimento, ele
assim relatou: “Quando,
porém, aquele que me separou desde o ventre materno e me chamou por
sua graça se dignou revelar-me o seu Filho, para que eu o pregasse
entre os pagãos, não consultei carne nem sangue nem subi, logo, a
Jerusalém para estar com os que eram apóstolos antes de mim.”
(Gal 1, 15-17) Foi um verdadeiro batismo de luz, pelo qual Paulo
recebeu toda a revelação diretamente de Cristo, nem precisou que os
outros apóstolos lhe repassassem o que haviam aprendido. Os
evangelistas escreveram a tradição popular do que se contava a
respeito de Jesus, seus ensinamentos, seus milagres. Mas Paulo
escreveu na verdade uma primeira reflexão teológica, unindo o
conhecimento que recebeu de Cristo com a sua formação na cultura
grega, surgindo daí as primeiras lições da teologia cristã, que
veio a se desenvolver também no evangelho de João e depois, com os
Padres gregos dos primeiros séculos (a chamada Patrística). O
cristianismo é fruto dessa conjugação entre a mensagem cristã e o
pensamento culto grego, daí porque Sto Tomás de Aquino, anos mais
tarde, adotou o pensamento de Aristóteles como suporte teórico para
desenvolver a Summa Theológica. A matriz grega, que estava presente
na doutrina cristã desde o início, combinou perfeitamente com a
filosofia aristotélica predominante na Idade Média.
Meus amigos, vejam
isso: Paulo utilizou a cultura grega para ensinar o cristianismo aos
povos gregos e romanos. Sto Tomás utilizou a filosofia medieval para
ensinar o cristianismo na Europa. Para ensinar o cristianismo na
nossa cultura, é preciso que saibamos compreender a mensagem de
Cristo dentro do nosso meio cultural. Este é o nosso desafio como
pessoas cultas: transmitir a mensagem de Cristo de acordo com a nossa
cultura. Fazer teologia não é repetir simplesmente o pensamento de
Sto Tomás, como se nós fôssemos europeus e vivêssemos na Idade
Média. Muitos católicos (inclusive membros da hierarquia
eclesiástica), infelizmente, não compreendem isso.
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