COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO
COMUM – A JUSTIÇA E A LEI – 12.06.2016
Caros Leitores,
Neste 11º domingo comum, destaco um
tema das leituras para a nossa reflexão: a lição de Paulo aos
Gálatas (2, 16) - fomos
justificados pela fé em Cristo, não pela prática da Lei.
Este tema está presente ainda no evangelho de Lucas (7, 36-50), no
conhecido episódio da pecadora que lavou os pés de Cristo com suas
lágrimas. Neste ano jubilar da Misericórdia, o Papa Francisco tem
repetidamente insistido no elevado significado do perdão, tanto para
aquele que perdoa quanto para quem é perdoado. Em um sermão
recente, ele exortou os ouvintes a deixarem-se “misericordiar”
por Deus, em todos os aspectos da vida e a serem misericordiosos com
os outros em todas as atividade. “Ser misericordioso não é apenas
'um modo de ser', mas 'o modo de ser'.”
Acerca do tema da justificação, lemos
na carta de Paulo aos Gálatas (2, 16) uma lição taxativa e
fundamental: não é pela prática da lei que somos salvos, mas pela
adesão ao compromisso proposto por Cristo. A expressão
“justificados pela fé em Cristo” não deve ser entendida ao pé
da letra, como se a fé fosse bastante, como se não houvesse
necessidade de praticar aquilo em que se crê. Esse foi o equívoco
de Lutero, quando afirmou que “sola fides” (a fé sozinha)
garante a salvação. A prática da lei que não salva, no dizer de
Paulo, é a religião meramente exteriorizada, que não provém de
uma convicção interna nem se concretiza em gestos concretos de
caridade. Praticar a lei sem uma motivação interior, apenas pelo
cumprimento da obrigação, não é ato de misericórdia. A
verdadeira fé deve evoluir espontaneamente para a prática da
caridade com os irmãos.
Para entendermos melhor a catequese de
Paulo aos Gálatas, devemos recordar um fato já abordado no domingo
anterior, a respeito do que aconteceu naquela cidade. Depois que
Paulo havia pregado o evangelho para eles, havia conferido o batismo
e fundado a comunidade local, saiu para pregar o evangelho em outras
cidades. Então chegaram à Galácia os judaizantes, ou seja, um
grupo de judeus convertidos, que deram muito trabalho a Paulo,
defendendo a necessidade de continuar cumprindo a Lei de Moisés,
para que a mensagem de Cristo tivesse efetividade. Desse modo, era
necessário manter a circuncisão, os jejuns públicos, as práticas
exteriores tão do gosto dos fariseus, mesmo depois de haverem
aderido ao cristianismo. E Paulo dizia a eles que o ensinamento de
Cristo havia deixado tudo isso pra trás. Sobre si próprio, Paulo
diz: “foi
em virtude da Lei que eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus.”
(Gl 2, 19), isto é, depois do evangelho de Cristo, a Lei de Moisés
cumpriu o seu objetivo e caducou. Em seguida, Paulo faz a afirmação
de maior força e peso: se o cumprimento da lei é que nos garante a
salvação, então o sacrifício de Cristo foi vão. E complementa:
“ ninguém
é justificado por observar a Lei de Moisés, mas por crer em Jesus
Cristo, nós também abraçamos a fé em Jesus Cristo.”
Trata-se, como podemos observar, do conflito entre a lei e a justiça.
Não é a lei que salva, mas a justiça de Deus. E esta justiça vem
a nós através da fé em Cristo, não pelo cumprimento formalista da
lei.
Na leitura do evangelho (Lc 7, 36-50),
temos a muito conhecida cena da pecadora lavando os pés de Cristo,
na casa do fariseu Simão. Vamos tentar imaginar a cena. Um fariseu
convida Jesus para almoçar com ele. Ora, esse convite tinha tudo
para ser mais uma cilada a fim de apanhar Jesus em algum flagra
desrespeitando a lei, como era comum nas atitudes dos fariseus
daquele tempo, para assim poderem denunciá-lo formalmente. Na casa
de um fariseu, certamente estariam presentes vários outros fariseus,
assim a cena teria inúmeras testemunhas. Observem que Lucas, embora
seja um escritor muito detalhista, não fez comentários sobre esse
aspecto da visita, porque para ele o mais importante era narrar a
atitude de Jesus na ocasião. Mas nós podemos fazer um cenário
mental da situação. Na minha opinião, foi algo parecido com aquele
episódio em que perguntaram a Jesus se era devido pagar o tributo ao
imperador romano, ou seja, o objetivo era colocá-lo numa sinuca.
Neste caso da pecadora, Jesus sabia que algo estava sendo tramado dos
bastidores, mas ele não poderia perder aquela oportunidade de,
novamente, dar uma lição nos fariseus.
Vejamos. Jesus estava numa casa cheia
de convidados, na casa de um fariseu importante na cidade,
evidentemente, só podiam entrar ali pessoas autorizadas. Como foi
que surgiu aquela pecadora ali ajoelhada diante dele, chorando a seus
pés? Obviamente, aquilo foi uma armação, uma “convidada”
especial, para colocar Jesus numa enrascada. Digamos que ela houvesse
entrado sem ser convidada, não teria sido expulsa pelos empregados
do anfitrião? Aquilo não era uma festa pública, era uma ceia
reservada para convidados. Então, a presença da pecadora, sem
dúvida, era uma provocação, uma tocaia para ver que reação Jesus
teria. Lucas até revela o que estariam os fariseus pensando naquele
momento: Se
este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando
nele, pois é uma pecadora.' Numa
tal situação, qualquer fariseu que tivesse contato físico com uma
pecadora, ficaria impuro e teria que ir, logo em seguida, fazer as
abluções recomendadas pela Lei de Moisés, assim como eles não se
aproximavam da mulher menstruada e também não sentavam na mesa da
refeição sem ter antes lavado as mãos. Ter um contato físico, por
mínimo que fosse, com uma pecadora pública, era motivo para
inúmeros procedimentos purificatórios.
Pois bem. Este devia ser o pensamento
de Simão e dos demais fariseus que se encontravam na sala, só
esperando pra ver o que Jesus faria. Se ele afastasse a pecadora,
então iria contradizer os seus próprios ensinamentos; se ele não a
afastasse, estaria descumprindo a Lei de Moisés, ou seja, de um modo
ou de outro, Jesus estaria se colocando numa tremenda “saia justa”.
Sabendo do que se passava nos pensamentos dos presentes, Jesus tomou
a iniciativa de travar um diálogo com o anfitrião sobre o credor
que perdoou os devedores. Simão facilmente concluiu o que Jesus
queria ouvir: amará mais o credor aquele que teve o perdão da
dívida maior. Apenas para recordar, a palavra “dívida”, naquele
contexto, não era somente uma obrigação a ser paga com dinheiro,
mas o devedor que não tivesse com que pagar, se tornaria escravo do
credor, até que tivesse pago toda a dívida. Isto é, o próprio
corpo do devedor passaria a ser propriedade do credor. Assim era que
os fariseus consideravam o pecador em relação a Javeh, era um
devedor inadimplente, portanto, Javeh poderia matá-lo ou
transformá-lo em escravo de alguém.
Mais uma vez, a estratégia de Jesus
foi fantástica, reverteu totalmente uma situação que, à primeira
vista, parecia ser-lhe desfavorável. E ainda ironizou na cara do
fariseu: tu não me ofereceste água para me lavar (como manda a
lei), tu não me deste o ósculo da paz (como manda a lei), tu não
me ungiste com unguento perfumado (como manda a lei), ou seja, se
havia ali alguém descumprindo a lei, era o fariseu, não Jesus. E
disse, referindo-se à pecadora: esta mulher lavou os meus pés, deu
muitos beijos, ungiu-os com perfume, tudo isso sem dizer uma palavra
sequer, apenas chorando e demonstrando arrependimento. Os fariseus
ficaram todos de queixo caído, jamais esperavam ouvir aquilo. Jesus
“passou na cara” deles que aquela pecadora, além de ter cumprido
o que prescrevia a lei, ainda fez tudo aquilo com o coração
arrependido e essa atitude interior de conversão, de confissão da
sua culpa, de demonstração da fé em Cristo era muito mais
importante do que tudo que ela havia praticado externamente. Por
isso, os muitos pecados dela tinham sido perdoados. Lucas não
continua a história, mas certamente, depois dessa bordoada, os
fariseus presentes literalmente perderam a fome.
Meus amigos, convém ainda esclarecer
um equívoco que algumas pessoas têm: essa pecadora que lavou os pés
de Jesus com lágrimas não é Maria Madalena. Uma tradição
machista, surgida logo nos primeiros tempos, divulgou essa ideia, que
os biblistas procuram esclarecer. Provavelmente, esse boato teve
origem de uma rixa que havia entre Maria Madalena e os apóstolos
Pedro e Paulo, por divergências doutrinárias, no início do
cristianismo e isso perpassou diversas gerações de leitores, sendo
dissipada com os estudos mais recentes. E uma conclusão que podemos
fazer sobre o tema da justiça e a lei é que o evangelho é superior
ao direito canônico. Existe, entre alguns padres e fiéis católicos,
uma mentalidade burocrática de seguir à risca os preceitos
canônicos. Sem tirar o valor destes preceitos, não podemos voltar a
incorrer no mesmo equívoco em que incorriam os fariseus no tempo de
Cristo. A lei existe para o favor do cristão, não é o cristão que
vive para a lei.
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário