COMENTÁRIO LITÚRGICO 20º DOMINGO
COMUM – O FOGO DA DISCÓRDIA – 14.08.2016
Caros Leitores,
Neste domingo, o 20º do tempo comum, a
liturgia nos põe diante de leituras intrigantes, enigmáticas,
daquelas que destoam dos temas geralmente tratados, relacionados com
a paz e a concórdia. Os textos litúrgicos escolhidos, ao invés,
falam sobre discórdias e desuniões, conflitos e conturbações. Num
momento de azedume, Jesus pergunta aos discípulos: vocês pensam que
eu vim trazer paz à terra? Pois não foi, vim trazer a desunião. A
Bíblia nos coloca, algumas vezes, em dilemas sobre como compreender
palavras tão duras, em total contraste com o ensinamento rotineiro
de Cristo. Como devemos entender a mensagem de Cristo, quando ele diz
que vai promover o fogo da discórdia?
Na primeira leitura, temos um episódio
dramático envolvendo o profeta Jeremias em tempos difíceis vividos
pelo reino de Judá, coagido de um lado pelo faraó do Egito e de
outro lado, pelo rei da Babilônia. Jerusalém ficou sitiada por mais
de um ano, com o povo vivendo agruras. O rei de Judá, de nome
Zedequias (ou Sedecias ou Matatias, são outros nomes que ele tinha),
não procedia bem aos olhos do Senhor e quando o profeta Jeremias foi
interpelá-lo, transmitindo a mensagem de repúdio a mando de Javeh,
o rei deixou-se influenciar por seus conselheiros e mandou prender
Jeremias num calabouço lodento, a fim de que morresse de fome. Visto
que Javeh não desampara os seus profetas, e Jeremias foi aquele que
disse um dia que possuía um fogo queimando dentro dele, de modo que
ele não conseguia ficar sem profetizar, um servo do rei (o texto
fala de Ebed Melech, mas este não é nome próprio, significa
literalmente “servo do rei”) de origem etíope foi inspirado por
Javeh para fazer um recurso em favor de Jeremias. Ele se arriscou
demasiadamente, porque no palácio real, todos eram inimigos de
Jeremias e quem falasse a favor dele corria sério risco de ir parar
no mesmo local onde estava o profeta, no calabouço lamacento. Porém,
de forma imprevista, o rei Zedequias acedeu ao recurso de Ebed Melech
e autorizou que ele reunisse trinta homens e juntos fossem retirar o
profeta Jeremias do calabouço. Estima-se que não seriam realmente
necessários trinta homens para retirar Jeremias do fosso, porém
esse número avantajado teria sido determinado pelo rei por medida de
precaução, porque ele sabia que os nobres e os sacerdotes estavam
contra Jeremias e poderiam tentar impedir o cumprimento da ordem
real. Em retribuição ao seu ato heroico, Ebed Melech recebeu de
Jeremias a promessa de que ele não seria apanhado quando o rei da
Babilônia invadisse Jerusalém e levasse os seus habitantes como
cativos. Assim aconteceu, cerca de um ano depois. Tanto Ebed Melec
quanto Jeremias escaparam de ser levados ao cativeiro e fugiram para
refugiar-se em terras egípcias.
Vemos, nesse episódio, uma espécie de
fogo da discórdia entre os sacerdotes e o profeta Jeremias. O
profeta aconselhava o rei para fazer um acordo com os babilônios, a
fim de evitar a acerbamento do conflito, porém os nobres e os
sacerdotes deram opinião oposta e o rei não atendeu ao profeta.
Como resultado, os babilônios invadiram Jerusalém, levaram os
tesouros do templo e carregaram a população como escravos. Por não
atender a voz de Javeh através da palavra do profeta, o rei de Judá
infligiu ao povo terrível castigo, do qual somente se livraram após
muito tempo e depois de sofrerem severas penas. Às vezes, é preciso
pagar o preço da discórdia para, enfim, descobrir a paz.
Na segunda leitura, o autor da Carta
aos Hebreus (Hb 12, 1-4) aconselha seus conterrâneos a seguirem o
exemplo de Cristo, que enfrentou a morte, não se importando com a
infâmia, para entrar no trono de Deus. Os cristãos não devem
desanimar em sua luta contra o pecado, para ao final receberem a
recompensa. “Empenhemo-nos
com perseverança no
combate que nos é proposto, com os olhos fixos em Jesus, que em nós
começa e completa a obra da fé.”
Aqui o fogo da discórdia está colocado entre o cristão e o pecado,
contra o qual deve este resistir até ao sangue, tendo como
referência o modo como Cristo resistiu na cruz. Até pouco tempo,
atribuía-se a autoria da carta aos Hebreus ao apóstolo Paulo, mas
atualmente a crítica literária descartou essa possibilidade, embora
admita que foi provavelmente escrita por um intelectual judeu de
cultura grega (assim como Paulo) possivelmente ouvinte do Apóstolo.
Há quem afirme que a autoria desta carta seja de Priscila, esposa de
Áquila, que foram os primeiros divulgadores do cristianismo em Roma.
O casal era amigo de Paulo, que fazia culto na casa deles, em suas
viagens àquela cidade. Essas mulheres sábias e heroicas daqueles
tempos não eram bem vistas na sociedade como intelectuais e
preferiam esconder seus talentos, para não sofrerem discriminação.
Na prática, Priscila era uma diaconisa.
A leitura do evangelho de Lucas (Lc 12,
49-53) é também intrigante pelas palavras ríspidas de Cristo aos
apóstolos. Nesse capítulo 12, o escritor sagrado reúne diversas
“conversas” que Jesus teve em caráter reservado com os apóstolos
e ele não “dourava a pílula”, como se diz na gíria, falava
mesmo de forma grosseira, de modo que deixava os discípulos com o
juízo embaralhado. Em certo momento (vers. 41), Pedro não se
conteve e perguntou: Senhor, dizes essa parábola só para nós ou
também para os outros? Jesus nem respondeu diretamente, mas de forma
indireta avisou: aquele que sabe a vontade do seu senhor e não a
cumpre, é merecedor de muitos açoites. Por outras palavras, ele
quer dizer: vocês serão mais exigidos do que os outros, porque
foi-lhes dado a conhecer muito mais e, portanto, serão mais cobrados
por isso. Foi nesse contexto que Jesus os deixou de orelhas quentes,
quando disse: vocês pensam que eu vim trazer paz? Pois não foi, vim
trazer a discórdia. Vim lançar fogo e estou ansioso para que ele se
acenda. Vou receber um certo batismo e fico ansioso até que isso se
cumpra.
Percebe-se que Jesus fala acerca da sua
paixão, que se aproximava, e pela sua natureza humana, tinha
dificuldade de controlar a própaia angústia. E já antevia que
aquele grupo seleto de seguidores seus iria passar por diversas
agruras, quando fossem enviados em missão. Jesus estava lançando a
faísca naquele pequeno grupo e eles seriam encarregados de
distribuir esse fogo pelo mundo afora, por onde passassem. Isso eles
não tinham ainda condições de entender. Por causa da sua doutrina,
Cristo previu que “O
pai estará dividido contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe
contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a
nora contra sua sogra.
(Lucas
12:53)”
De fato, isso aconteceu no passado e, de certo modo, continua a
acontecer ainda em nossos dias, quando se observam dissensões no
interior das famílias, por causa de divergências acerca da fé e da
prática da religião. As diversas interpretações que são dadas às
palavras bíblicas levam a que o fogo da discórdia se instale até
dentro dos ambientes religiosos. É como se Jesus estivesse nos
acautelando de que essas coisas poderiam acontecer, mas que isso não
deve nos perturbar, ao contrário, deve servir-nos de estímulo para
superá-las. Logo adiante, nesse mesmo capítulo, Jesus continua com
esse discurso ranzinza, quando diz: ao verem uma nuvem se aproximando
no céu, vocês dizem: vai chover. Pois sois hipócritas que sabem
interpretar o tempo atmosférico, mas não sabem compreender o tempo
da vida de vocês. Meus amigos, que grande visão de futuro Jesus
demonstra nessas palavras ríspidas, que os discípulos ouviam sem
compreender.
Quando vemos, nos dias de hoje, grupos
de pessoas dentro das comunidades entrando em divergência até mesmo
ao ponto de se tornarem inimigas por causa de questões religiosas,
então podemos perceber o quanto Jesus foi verídico e crítico, ao
dizer que veio trazer o fogo à terra e quer mesmo é que ele queime.
Ele sabia que, com a nossa cabeça dura, só mesmo um elemento tão
forte e temido como é o fogo seria capaz de nos impelir a enfrentar
esses pontos de discórdia. E o que lamentavelmente se constata é
que, mesmo assim, os cristãos não aprendem e continuam a cultivar
divergências e atear novos fogos de discórdia. A intolerância
religiosa é um dos grandes dramas e dilemas do mundo de hoje, e não
me refiro somente ao que acontece no choque com diferentes religiões.
Esse é, de fato, o conflito mais evidente. Mas há também um
conflito surdo e dissimulado entre membros da hierarquia, entre os
grupos que existem nas comunidades, entre as lideranças dos diversos
serviços ligados à paróquia, cada um querendo se sobressair, nem
que seja pisoteando os demais. O fogo da discórdia continua bem
aceso, porém parece que as pessoas se acostumam com as labaredas e
estas já não incomodam mais. Quando Jesus fez referência ao fogo,
penso que foi no sentido de que aquilo que arde deve nos motivar a
buscar logo um meio de apagar aquele incêndio, não para mantê-lo
em ardência permanente. Podemos assim constatar o quanto ainda
precisamos meditar com profundidade nos ensinamentos de Cristo e
colocá-los em prática.
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