domingo, 28 de agosto de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - HUMILDADE E DESAPEGO - 28.08.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – HUMILDADE E DESAPEGO – 28.08.2016

Caros Leitores,

Neste domingo, 28 de agosto, a memória litúrgica comum é a festa de Santo Agostinho de Hipona, um dos teólogos mais importantes da antiguidade cristã. E as leituras do 22º domingo comum nos advertem a evitar a soberba, por ser esta uma atitude incompatível com a conduta do cristão. Uma das formas mais corriqueiras da pessoa soberba é querer aparecer, receber elogios, ser reconhecida em público, fazer amizade com os poderosos da sociedade. Com isso, o soberbo já recebe a sua recompensa passageira. Por outro lado, fazer o bem a quem não pode nos recompensar com favores gera um crédito na eternidade.

O oposto da soberba é a humildade. Etimologicamente, a palava humilde é a tradução do latim “humilis”, termo relacionado com o húmus, com a nossa origem do limo da terra. A imagem bíblica do homem criado por Deus a partir da lama pretende ressaltar a consciência da nossa finitude, da efemeridade da existência. Muitas pessoas vivem como se fossem permanecer no mundo para sempre e se utilizam dos bens materiais para obter prestígio e poder a todo custo, até mesmo pisoteando as outras pessoas. Quando se fala em humildade isso não significa viver como mendigo, como indigente, usar roupa esfarrapada, porque ser humilde é, antes de tudo, uma atitude do espírito. Assim como há pessoas abastadas e humildes, também há pessoas miseráveis gananciosas e soberbas. Ser humilde, pois, é antes de tudo ser pobre de espírito e isso significa desapego e generosidade, significa possuir bens sem ser escravo deles, significa acumular tesouros que a traça não consome e o ladrão não rouba (Mt 6, 19).

Na primeira leitura, extraída do Livro do Eclesiástico (3, 20), o escritor sagrado nos adverte: “Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios. ” O livro do Eclesiástico faz parte dos escritos deuterocanônicos, isto é, foi escrito em época mais recente, não compondo os livros sagrados do antigo judaísmo, portanto, não era lido nas sinagogas judaicas. Seu autor é um sábio de nome Jesus, filho de Sirac, daí porque o livro também é conhecido como Ben Sirac ou Sirácida. Os cristãos primitivos sempre consideraram este livro como sagrado, mas é um dos livros que Lutero recusou e por isso não está na bíblia protestante. Mas se compararmos o seu texto com os ensinamentos de Cristo, especialmente nas ocasiões em que Ele censura o comportamento dos fariseus, percebe-se que ambos se põem na mesma linha de raciocínio. No livro da Sabedoria, o autor expõe a tradição judaica mais autêntica e Jesus, tendo sido educado na tradição judaica, o conhecia muito bem, aproveitando-se disso para mostrar a hipocrisia dos fariseus que, como mestres da lei, não a praticavam. Semelhanças com o texto desta leitura podemos encontrar também no cântico de Maria, após ouvir a saudação do anjo (Lc 1, 52): derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes... pôs os olhos na humildade de sua serva. Não é, portanto, de se admirar que desde os primeiros tempos do cristianismo este livro tenha sido sempre prestigiado e lido nos templos.

No evangelho deste domingo, podemos identificar um verdadeiro sermão sobre a humildade, através das parábolas ditas por Cristo na casa de um dos chefes dos fariseus. Diz o evangelista Lucas (14, 1), que Jesus fora convidado para ir almoçar na casa de um importante fariseu, num dia de sábado. É de supor-se que Ele, como bom judeu, comparecera à sinagoga naquele dia e provavelmente tenha sido convidado para fazer a leitura da Torah. Após o culto, um dos lideres dos fariseus o teria convidado para ir almoçar na casa dele. Ali chegando, Jesus observou como os convidados ficavam disputando a preferência do dono da casa, escolhendo os melhores lugares à mesa. Cada qual queria demonstrar ter mais prestígio com o anfitrião. E ao mesmo tempo observavam qual seria a atitude de Jesus, como um convidado de honra. Percebendo isso e mesmo antevendo alguma provável armadilha, Jesus tomou a iniciativa das ações e passou a contar-lhes uma parábola.

Os fariseus gostavam daquele tipo de religiosidade das aparências, do cumprimento da lei pela sua literalidade, sem uma atitude de interiorização. Por isso, Jesus aproveitou o contexto e contou mais uma das suas historinhas: houve um banquete em que um convidado que estava sentado no lugar de honra foi solicitado pelo anfitrião para ceder seu lugar para outro conviva mais importante do que ele, tendo que ir sentar-se lá atrás. Era exatamente o que eles estavam fazendo, escolhendo os melhores lugares. Então, Jesus arrematou: quando tu fores convidado, senta-te nos últimos lugares, porque será honroso para ti ser chamado para ser chamado mais para a frente e, ao contrário, será decepcionante para ti ser mandado lá para trás. Essa parábola de Jesus foi tradicionalmente interpretada pelos biblistas no seu sentido mais literal de uma posição ou local físico. Contudo, podemos compreendê-la também noutro sentido mais simbólico, da busca por elogios, da necessidade de ser aplaudido, bajulado, da vaidade de ser notado, reconhecido. Essa procura psicológica pelos “primeiros lugares” na opinião pública tem o mesmo sentido da disputa pelo melhor lugar na mesa do banquete. A frustração que daí resulta, quando a expectativa não se materializa, é semelhante à humilhação daquele que foi “convidado” a sentar na última fileira. Sim, porque, mais importante do que a pobreza de bens materiais é a pobreza do espírito, o reconhecimento sincero da nossa fragilidade, da nossa incompletude. O espírito orgulhoso não percebe isso e necessita de estar sempre sendo incensado e colocado em alto pedestal. Ao contrário, o espírito humilde raciocina como Cristo disse no evangelho: somos servos inúteis, fizemos o que tínhamos de fazer. (Lc 17, 7)

Daí a complementação que Jesus faz desta primeira parábola com uma segunda: “Quando tu deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa. ” (Lc 14, 12) Ele não está dizendo que não se deve oferecer recepções aos amigos e parentes. Está advertindo que quem pratica o bem somente para os semelhantes, os da sua mesma classe social, recusando-se a fazer o mesmo com as pessoas mais humildes, na verdade, não age como cristão. Recentemente, o Papa Francisco fez uma comparação interessante, quando disse: de que adianta ir à missa e comungar se, quando chega de volta ao seu apartamento, nem cumprimenta o porteiro do prédio? O profissional que escolhe a sua clientela olhando apenas o poder aquisitivo e a consequente possibilidade da retribuição material não está agindo como cristão. Atender com alegria o cliente bem-vestido e perfumado, enquanto o cliente de aparência modesta é recepcionado com frieza e má vontade, não é atitude digna de quem se considera discípulo de Cristo. Novamente, devemos entender que não se trata de um local físico, de um almoço ou jantar convencionais, mas é preciso alcançar o nível do simbolismo da mensagem.

No final desta parábola, Jesus diz: “quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. ” (Lc 14, 13) Ora, isso não deve ser entendido na sua literalidade, mas no sentido metafórico: quando tu tratas bem os iguais a ti, aqueles que podem também te fazer o mesmo, a tua recompensa já foi dada, através dos elogios que recebes e das promessas que ouves. Mas se ages desse mesmo modo também com aqueles que não podem te retribuir, a recompensa será dada pelo Senhor, justo juiz. E de nada nos adiantaria cumprir a literalidade desse texto, promovendo banquetes para os indigentes, os excluídos, os moradores de rua, se o nosso espírito, a nossa atitude interior demonstrar superioridade, distanciamento, ojeriza ou indiferença. A humildade não está nas práticas exteriores, mas no sentimento de solidariedade que deve acompanhá-las. Esta é a diferença entre praticar a humildade e ser humilde. Alguém pode praticar atos exteriores de humildade e manter o espírito soberbo, isso de nada adianta. A humildade não é medida pela quantidade de bens materiais que alguém possui, mas pelo grau de desapego que tal pessoa demonstrará em relação a esses bens. Vale lembrar, nesse contexto, o inspirado comentário de Paulo sobre Jesus, na carta aos Filipenses (2, 5-7): sendo de condição divina, Jesus não se prevaleceu disso, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante a nós. Ele, sendo Deus, não precisava passar por todos aqueles tormentos. No entanto, Ele optou pela humildade até as últimas consequências, para nos dar o maior exemplo de capacidade de renúncia, quando Ele se desapegou até de sua condição divina, para sacrificar-se por nós homens, que nada temos para dar-Lhe em recompensa. Esse é o desafio que Jesus deixou para aqueles que aderem ao seu projeto e aceitam ser seus discípulos.

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