COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO
COMUM – A PORTA ESTREITA – 21.08.2016
Caros Leitores,
As leituras litúrgicas deste 21º
domingo comum nos convidam a refletir sobre o tema da salvação, que
é oferecida universalmente, ou seja, Deus não escolheu apenas um
grupo, ainda que numeroso, para distribuir com este a sua graça, mas
a oferece a todos. Porém exige certos requisitos para que a graça
salvífica passe a agir na vida do crente. A graça divina é
infinita e está disponível para todas as pessoas de boa vontade,
todos os que procuram a Deus com o coração sincero, isso significa
que há diversas “portas” por onde entrar para a vida eterna, no
entanto, o cristão deve desconfiar das portas largas, pois estas
levam a paragens ilusórias. A salvação vem associada à cruz,
portanto, não há salvação sem que cada um carregue alegremente a
sua cruz, seguindo o exemplo de Cristo.
A primeira leitura, retirada do livro
de Isaías (66, 18-21- deuteroIsaías, escrito após o cativeiro da
Babilônia) é de uma clareza extraordinária. É impressionante a
visão de futuro do profeta, a precisão dos detalhes com que ele
aponta os acontecimentos da salvação: “virei
para reunir todos os povos e línguas; eles virão e verão minha
glória.” (Is 66, 18) E
prossegue mais adiante: “Escolherei
dentre eles alguns para serem sacerdotes e levitas.”
(Is 66, 21) O profeta anuncia como será o futuro da humanidade.
Obviamente, ele escrevia para as pessoas do seu tempo. Porém, numa
perspectiva escatológica, o profeta se refere a todos nós, quando
explica: “...para
as terras distantes, e, para aquelas que ainda não ouviram falar em
mim e não viram minha glória.”
(Is 66, 19) Com isso, o profeta estava anunciando ao povo hebreu que
a aliança de Javeh com Abraão não se referia apenas a eles, ou
seja, quando Ele disse que a descendência de Abraão seria mais
numerosa do que as estrelas do céu, isso significava o alcance
universal da promessa, ultrapassando os limites da nação hebraica.
E o profeta complementa: dentre estes estrangeiros, escolherei alguns
para serem sacerdotes e levitas, ou seja, esses que ainda não Me
conhecem também serão meus anunciadores. É curioso como alguns
pregadores de visão curta e fundamentalistas insistem em contar o
número de pessoas a quem Javeh dirigiu a mensagem da salvação,
ligando essa ideia aos 144.000 assinalados do Apocalipse (Ap 7,1). A
imagem transcrita por João contém um enigma a ser decifrado e
comporta divergências. Ao contrário, a profecia de Isaías é clara
e direta: a mensagem da salvação é dirigida a todos os povos,
inclusive àqueles que ainda não conhecem Javeh, mas que virão a
conhecê-lo, através dos seus mensageiros. O momento histórico
vivido pelo povo de Israel naquela época, retornando à pátria após
livrar-se do cativeiro babilônico, era de grande euforia e isso
refletia o desejo do Profeta de levar a todos os povos a misericórdia
e a fidelidade de Javeh.
Na segunda leitura, retirada da Carta
aos Hebreus, o tema da salvação universal também está presente em
outra perspectiva, numa dimensão do castigo disciplinar, da correção
educativa, para aqueles que não estão comprometidos com a sua
missão. O autor da carta, antes atribuída ao apóstolo Paulo,
exorta os seus compatriotas hebreus, após a morte de Cristo, sobre a
nova forma de compreender o sofrimento. Havia entre os hebreus uma
tradição antiga que interpretava o sofrimento como castigo divino,
de modo que uma pessoa infeliz era tida como alguém que não gozava
da amizade de Javeh. Vemos diversas passagens no evangelho em que
Cristo recrimina os fariseus por causa dessa ideia (por ex: Jo 9,
1-3). O autor da Carta aos Hebreus vem repetir essa mesma lição de
Cristo em outro contexto, dizendo que o sofrimento faz parte da vida
e que devemos compreendê-lo como um recurso pedagógico para nos
aproximar do caminho da verdade. Assim diz: “não
te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem
ele ama e castiga a quem aceita como filho'.”
(He 12, 6) E complementa: qual o filho a quem o pai não corrige,
quando aquele erra? Daí a advertência em He 12, 13: “acertai
os passos dos vossos pés', para que não se extravie o que é manco,
mas antes seja curado.”
Isso quer dizer que as pessoas que sofrem e as mais necessitadas não
devem ser excluídas, mas trazidas para o convívio fraterno, para
que não se percam, mas sejam socorridas. “É
para a vossa educação que sofreis, e é como filhos que Deus vos
trata. ” (He 12, 7)
Exemplo dessa linha pedagógica nós encontramos também nas cartas
de Paulo, quando trata da questão dos judaizantes (por ex: Romanos
14, 5), pois o povo hebreu tinha aquela ideia de que, por serem
descendentes de Abraão e, portanto, os legítimos herdeiros da
promessa, eles eram os primeiros da fila, ou seja, os demais deviam
inspirar-se no exemplo deles. A Carta aos Hebreus, assim como as
outras lições de Paulo, vêm mostrar que esse raciocínio é
ilegítimo, pois pode até ocorrer o oposto, isto é, os últimos
serem os primeiros, conforme está no evangelho de Lucas (13, 30).
A terceira leitura é exatamente do
evangelista Lucas (13, 22-30), no trecho em que narra a pergunta
feita por alguém a Jesus: é verdade que são poucos os que se
salvam? Curiosamente, o evangelista não identifica quem foi o autor
da pergunta, mas por se tratar de um tema muito preocupante para os
fariseus, podemos supor que tenha sido um deles. Muitos fariseus de
boa vontade acompanhavam Jesus e escutavam seus ensinamentos. E pelo
estilo da resposta dada por Jesus, deve ter sido um fariseu o
perguntador, por causa dos exemplos que Ele dá. Como costuma
acontecer, Jesus nunca responde diretamente às perguntas, mas faz
isso através de exemplos e de situações ilustrativas. Neste caso,
Ele usa o exemplo da porta estreita, afirmando indiretamente que não
existe um número determinado de pessoas aptas à salvação, mas que
quem quiser salvar-se deverá escolher a porta estreita. Sabe-se que
uma porta larga é um lugar mais cômodo de passar, mas neste caso,
ela deve ser evitada. No caso dos fariseus, a “porta larga”
significava a mentalidade que eles tinham de serem os herdeiros da
promessa de Javeh e, portanto, já estavam com a salvação
garantida. Então, Jesus quer mostrar que a salvação é um dom
divino dirigido a todos e que, embora seja gratuito, exige atitude de
quem quer salvar-se, por isso, deve escolher a porta mais difícil de
entrar. Portanto, não alcança a salvação quem fica de braços
cruzados, pensando que já foi escolhido e isso basta, e não cuida
de fazer a sua parte. Por isso, Ele cita uma situação hipotética:
o patrão fechou a porta e quando o servo pede para abrir, o patrão
responde que não o conhece. O servo insiste: eu comi e bebi junto
contigo... mas o patrão continua dizendo: não sei de onde sois.
Quais são, concretamente, essas
tarefas árduas, que Jesus simboliza com a imagem da porta estreita?
Falando num linguajar também simbólico, será cada um carregar a
sua cruz de cada dia, não se queixando nem reclamando, mas na
alegria e na esperança. A tolerância com os irmãos, a prática da
justiça, o exercício da caridade são alguns comportamentos
práticos associados à porta estreita. Quem se acomoda na presunção
de estar salvo pelo sangue de Cristo e se descuida dos seus deveres
de cristão, de testemunhar o amor de Cristo através das suas ações
ouvirá do Mestre, diante da porta fechada: não sei de onde sois.
Foi por isso que Jesus advertiu que muitos tentarão entrar na porta
estreita e não conseguirão, estes são os que se contentam com uma
religião de exterioridades, como acontecia com os fariseus do seu
tempo. Estes achavam que bastava o cumprimento da lei, bastava
jejuar, dar esmolas, ir ao templo nos dias de preceito, fazer suas
orações e pronto. Saindo do templo, lá estavam eles com o coração
cheio de orgulho, inchado pela prática da injustiça, obeso pelo
desprezo para com os irmãos… meus amigos, precisamos vigiar para
que isso não aconteça conosco. Esse puxão de orelhas de Jesus hoje
é dirigido a todos nós. A nossa participação nesse projeto
universal salvífico de Cristo se encontra descrito na passagem de Lc
13, 29: Virão
homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar
à mesa no Reino de Deus. Devemos,
a todo custo, evitar nos colocarmos na posição dos fariseus, porque
essa tentação da soberba sempre acometeu os cristãos em todos os
tempos. A porta estreita não é compatível com essa conduta.
A porta estreita, enfim, não significa
sofrimento, doença, tristeza, escassez, como outrora se interpretou,
como se fosse necessário o autoflagelo, a privação das coisas
materiais a fim de obter a salvação. Os bens materiais são dons
divinos e eles somente atrapalham a nossa vocação para o Reino de
Deus quando são direcionados para o nosso egoísmo e para a nossa
ganância, porém se forem colocados ao serviço da comunidade, se
forem objeto da partilha e instrumentos da prática do bem, eles não
causarão embaraço ao projeto de Deus.
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