COMENTÁRIO LITÚRGICO – 23º DOMINGO
COMUM – O DESAPEGO – 04.09.2016
Caros Confrades,
Neste 23º domingo comum, a leitura do
evangelho proclama a necessidade do desapego dos bens materiais, que
deve ser a atitude padrão de quem quer ser seguidor de Cristo.
Desapegar não significa desprezar os bens materiais, mas colocá-los
no segundo plano, deixando em primeiro plano os bens do espírito. No
caso, o desapego não abrange apenas as coisas, os objetos de valor,
mas tudo aquilo que, de alguma maneira, impede ou dificulta a nossa
vida cristã, inclusive as relações familiares. Este tema está
presente também nas outras leituras: do livro da Sabedoria e da
carta de Paulo a Filêmon.
Na primeira leitura, retirada do livro
da Sabedoria (9, 13-18), o autor destaca uma doutrina que muito se
assemelha com a teoria de Platão, quando ele contrapõe o mundo da
matéria e o mundo das ideias. No
versículo 15 do cap 9, lemos:
“porque
o corpo corruptível torna pesada a alma e, tenda de argila, oprime a
mente que pensa.”
A imagem do corpo como “tenda de argila que oprime a alma” faz
eco com a narração da criação do homem, de acordo com o Gênesis,
quando Deus fez o homem do limo da terra. O peso da matéria corporal
impede a alma de alcançar os desígnios profundos de Deus. É o que
diz no vers. 16: “Mal
podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos
o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará
o que há nos céus?”
É curioso como essa doutrina filosófica, conhecida como dualismo,
era comum entre os povos daquela época. O dualismo teve uma
importância muito grande nos princípios do cristianismo, sendo
defendida por vários teólogos cristãos, estudiosos de Platão.
Santo Agostinho foi o principal deles e, de início, ele tinha
simpatia até pela doutrina da reencarnação, também ensinada por
Platão, vindo depois a abandoná-la, pois observou que era
incompatível com o cristianismo. Grande parte da catequese católica
tradicional foi elaborada com base nessa doutrina, que ainda está
presente também no catecismo oficial atual. Contudo, na época
contemporânea, com a influência da filosofia fenomenológica, tanto
a teoria de Platão quanto a de Aristóteles ficaram superadas com o
conceito da subjetividade intencional, que procura unir corpo e
espírito como uma realidade integrada, de modo que não se cogita
mais em separação entre corpo e espírito. A doutrina filosófica
contemporânea compreende o homem como um ser integrado de corpo e
espírito, de tal maneira que se trata de um corpo espiritualizado e
de um espírito corporificado, não fazendo sentido referir-se a um
sem incluir também o outro, assim como também não faz sentido
falar-se em “separação” entre corpo e espírito, como se fossem
duas realidades opostas e incompatíveis. A ressurreição de Cristo
e também a assunção de Maria são fatos que demonstram, a título
de antecipação, o que ocorre com todos os crentes, por ocasião de
sua passagem para o plano da eternidade. Não é o espírito que “se
salva”, mas a salvação abrande o ser humano inteiro, incluindo
corpo e alma. Não o corpo-matéria, mas o corpo glorioso e
desmaterializado, tal como sugere a estampa da efígie de Cristo no
Santo Sudário.
Na segunda leitura, da carta de Paulo a
Filêmon (9-17), o Apóstolo destaca a doutrina da reconciliação
como uma atitude decorrente do desapego cristão. Nesta carta,
encontramos três personagens em situações bastante diferentes: o
apóstolo Paulo levando adiante a sua pregação do evangelho, o
amigo dele Filêmon, um cristão rico que morava na cidade de Colosso
e tinha uma igreja funcionando na sua própria casa, e o (ex) escravo
Onésimo, que é o portador da carta. Paulo deixa entender, nas
entrelinhas, que Onésimo tinha sido escravo de Filêmon e estava
como fugitivo em Roma, onde o encontrou. Com muita discrição, Paulo
não entra em detalhes sobre o provável motivo da fuga, no entanto,
apenas a fuga por si mesma já era uma afronta ao patrão. O fato
transparecido nas entrelinhas da carta é que Paulo encontrou Onésimo
em Roma na prisão, onde ambos estavam enclausurados, e este aceitou
o batismo, após a catequese de Paulo. Vindo a saber do vínculo de
Onésimo com Filêmon, de quem Paulo era amigo, este fez questão que
Onésimo fosse reconciliar-se com seu antigo senhor, não para que
ele retornasse à condição de escravo, mas dando seu aval ao amigo
Filêmon da conversão de Onésimo e da sua nova condição de irmão
na fé, a fim de que o ex-patrão o recebesse na sua casa como se
fosse o próprio Paulo, reforçando desse modo aquela comunidade
eclesial que Paulo bem conhecia. Ao pedir a Filêmon que aceitasse
Onésimo como se fosse ele próprio (Paulo), estava solicitando a ele
uma dupla atitude: primeiro, que perdoasse a má conduta do seu
ex-escravo e, mais do que isso, que o aceitasse como irmão na fé,
recomendado pelo Apóstolo para trabalhar com ele na comunidade. O
texto da carta demonstra o cuidado de Paulo na redação, para que
Filêmon entendesse bem o seu pedido e demonstra mais a grande
confiança que Paulo depositava nele, porque era um pedido muito
delicado. Vejamos o que Paulo diz no vers. 14: “eu
não quis fazer nada sem o teu parecer, para que a tua bondade não
seja forçada, mas espontânea.
” E mais adiante, no vers. 17: “se
estás em comunhão de fé comigo, recebe-o como se fosse a mim
mesmo. ” A carta
desenvolve a teologia do perdão e da reconciliação que cada um de
nós deve ter para com o irmão que peca, assim como Deus tem para
conosco, quando pecamos. Por certo, Filêmon concordou com Paulo e
fez conforme a recomendação deste.
A leitura do evangelho (Lc 14, 25-33),
como antecipado, enfoca a atitude de desapego que deve ter o cristão
em relação às coisas materiais. Na tradução latina desse texto,
a exigência de Cristo é bem mais forte do que na tradução
oficial. Diz assim: “si quis venit ad me et non odit patrem suum et
matrem et uxorem...”, ou seja, se alguém vem a mim e não odeia
seu pai, mãe, esposa... a tradução de São Jerônimo é literal do
verbo grego “miseô”, que significa odiar, detestar. Porém, o
sentido original desta palavra no hebraico (sanê) tem relação com
“sentir ciúme”, “não ter a preferência”, ou falando numa
expressão positiva, de “amar mais”, ou seja, sentir ciúme se
alguém amar mais seu pai, sua mãe, sua esposa … do que a Mim...
Daí porque a tradução da CNBB para a frase citada é “se alguém
vem a mim, mas não se desapega do seu pai, sua mãe, sua esposa...”
Neste caso, a tradução oficial está bem mais conforme o texto
hebraico do que com a tradução latina. E é este o sentido mais
autêntico da exigência que Cristo faz aos seus seguidores, ou seja,
ele não quer dizer que o cristão deve literalmente “odiar” o
pai, a mãe, a esposa, os irmãos, os filhos, mas sim não dedicar
maior amor aos familiares do que a Ele próprio. Não quer dizer que
devemos rejeitar, detestar os familiares, mas sim que o amor que
dedicamos a estes deve ser fruto do amor primordial a Cristo, amar os
familiares no amor de Cristo, com o amor de Cristo. E, em último
caso, se as relações familiares ou as relações de amizade forem
motivo de afastar o cristão do seu verdadeiro ideal, então o fiel
deve fazer a sua escolha radical pela adesão ao ensinamento de
Cristo. Esta é a grande dificuldade de se ler a Bíblia nas
traduções, sem ter conhecimento do significado dos termos na língua
original, ou seja, pode conduzir a conclusões bem divergentes
daquele que é o melhor significado da mensagem. Este é o grande
problema que ocorre quando o fiel apenas “lê” a Bíblia. Ler não
é bastante, é necessário “estudar” a Bíblia, a fim de obter
da leitura o melhor aprendizado. Desse modo, num entendimento mais
humanizado, a interpretação dessa exigência de Cristo se desloca
mais para o sentido espiritual do desapego interior, na linha de
pensamento da pobreza de espírito.
Os outros dois exemplos citados pelo
evangelista vão também nessa mesma linha de raciocínio. Sobre o
homem que queria construir a torre, mas não tinha economias
suficientes para levar adiante a pretensão, Cristo quer dizer que
devemos nos desapegar também de projetos mirabolantes, que estão
mais a serviço da nossa vaidade do que da nossa fé. Qual o objetivo
de alguém construir uma torre? Devia ser para tornar-se famoso, para
ser conhecido pelas outras pessoas. Mas, até que ponto isso irá
contribuir para o bem do próximo, para o serviço da comunidade?
Então, os nossos projetos devem estar coerentes com as exigências
da nossa fé, não com a nossa vaidade pessoal. Sobre o outro exemplo
do rei que vai guerrear com o rival, qual seria o seu objetivo, senão
enaltecer o seu egoísmo e o seu orgulho, pensando na vitória sobre
o outro? Ora, reconhecer a superioridade do outro é também uma
atitude de desapego, de renúncia da própria vaidade. Embora a
narrativa sugira que o rei evitou o confronto com receio de ser
derrotado, visto que o rival tinha um exército mais numeroso,
devemos nos lembrar que Cristo fazia essas preleções para pessoas
do povo e usava exemplos simples de casos mais compreensíveis, porém
depois ele explicava o verdadeiro significado para os discípulos.
O sentido cristão do desapego,
portanto, não é simplesmente largar tudo e ir morar debaixo da
ponte. Desapegar-se significa ser pobre de espírito, porque há
pessoas extremamente pobres de bens materiais, mas demonstram
espírito rico e de exagerada avareza, invejando o que os outros
possuem.
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