COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DO ADVENTO – O JUSTO JOSÉ – 18.12.2016
Caros Confrades,
Neste quarto domingo do Advento, a
liturgia destaca a figura de São José, chamando-o de “o justo”,
aquele que compreendeu e aceitou a maternidade de Maria. De início,
ficou embaraçado, mas sem querer difamá-la, porque sabia das
consequências severas que recairiam sobre ela, planejou deixá-la em
segredo. Porém, o mensageiro celeste o tranquilizou e José assumiu
com zelo e serenidade a sua missão de cuidador do Messias. São dois
momentos críticos e opostos em que a virtude da justiça se revelou
nas atitudes de José: a primeira vez, quando, na dúvida da gravidez
misteriosa, decidiu não denunciá-la, porque não tinha motivos para
duvidar dela; a segunda vez, quando, na certeza advinda com o aviso
celeste, transmudou a dúvida em confiança. O Papa Francisco, no
sermão de hoje, disse que São José nos ensina a confiar em Deus,
quando ele se aproxima de nós.
Na primeira leitura, do profeta Isaias
(Is 7, 10-14), lemos aquela famosa previsão sobre a futura vinda do
Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome
de Emanuel (Is 7, 14). O profeta Isaias é a leitura preferida para a
liturgia do advento, por causa da sua precisão de detalhes sobre o
futuro Messias. É sempre oportuno esclarecer um tema que já foi
motivo de muitas discussões, sobretudo com crentes de outras
igrejas, acerca da concepção virginal de Maria e também acerca do
fato se Jesus teve (ou não) irmãos. A palavra latina “virgo”,
da qual deriva a palavra virgem em português, é a tradução da
palavra grega “parthenos”, que significa jovem. Desse modo, o
termo “virgem”, no contexto bíblico não significa exatamente a
virgindade no sentido biológico, mas no sentido da juventude da
mulher. Era como se “virgem” fosse sinônimo de “jovem mulher”.
Na hora da tradução para o latim, São Jerônimo utilizou o
vocábulo “virgem” neste sentido de mulher jovem, pela falta de
outra palavra mais adequada no latim. Porém, daí a hermenêutica
bíblica tradicional passou a entender a palavra “virgem” no
sentido da integridade corporal da mulher, desenvolvendo toda uma
teologia acerca da virgindade, interpretação que vai contra a
tendência costumeira do povo hebreu, pois num contexto histórico de
espera do Messias, a mulher que permanecia virgem, portanto, sem
chance de ter filhos, era considerada uma indigna por Javeh, já que
ela nunca poderia ser a mãe do Messias. Desse modo, a profecia de
Isaías quando diz uma “virgem conceberá” deve ser entendida
como uma “jovem conceberá”. Polêmica à parte, o fato é que a
concepção divina de Maria foi um fenômeno que intrigou José.
Tentemos imaginar a situação. José
ainda não era casado com Maria, ainda não coabitavam, eram o que
corresponde ao noivado, de acordo com o costume daquela época. Maria
ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as
funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não
esclarecem como foi que José tomou conhecimento da gravidez: se foi
Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu. De um modo ou de
outro, José sabia que não era ele o pai, então, cabia-lhe
denunciar a noiva por mau comportamento perante os sacerdotes, mas
José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria por
adultério, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não
queria fazer mau juízo sobre Maria, porém não entendia como aquela
gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la,
viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era
muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias
de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se
encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o
sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste
domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata
diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja
diretamente, seja através de um mensageiro. Esta palavra em grego,
diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar,
proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em
português, passou para “anjo”.
A bíblia relata sobre muitos
personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros
(angelos), mas não descreve como é a aparência deles, porém, os
artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser
masculino, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em
forma de asas como os pássaros. E assim ficou criada a figura
estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos
nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste,
apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de
uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa
cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros
divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou
anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a
carga cultural do machismo, típico da cultura grego-romana. Apesar
da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são
apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma
cultura que afirma que somente os homens podem exercer os ministérios
eclesiais. É o paradigma da masculinidade, ainda presente na Santa
Madre Igreja.
Pois bem, mas voltando à história
sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o
mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela
estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava
dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu a mensagem. É
o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou
se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma
como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e,
num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar
bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um
mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é
de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação
psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro
caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele
recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito,
até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A
referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica,
ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao
estado de desenvolvimento científico da época, em que esses
fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações
divinas ou demoníacas. Disso podemos concluir, com alguma segurança,
que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e
redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos
fantasiosa.
O caso da anunciação a Maria já foge
a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até
ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na
história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência,
algo para o qual apenas uma explicação da psicologia não seria
suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro”
divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua
presença. Temos um exemplo bem típico no Antigo Testamento (Gn 32,
24), que narra a luta que Jacó teve com um anjo, pouco antes de sua
reconciliação com Esaú. Porém, nem sempre o fato narrado
justifica a presença física do “anjo”, mas pode ser resolvido
de um modo mais prosaico, como quando estamos sonhando ou quando
simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos
chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que
a nossa mente produz, em situações emergenciais. Apenas para
reforçar o que escrevi antes, acerca da necessidade de um estudo
mais crítico e menos fanático sobre a angeologia.
E por último, uma breve referência à
segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual
Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego:
ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como
Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da
CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (predestinado) como
“autenticado”. Por certo, essa tradução visa evitar o uso da
palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação,
que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma
palavra mais amena: autenticado. No entanto, eu considero essa
palavra perigosa na sua interpretação, porque traz subjacente a
ideia do que não é original, mas uma cópia carimbada...
sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais
da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é
autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, a meu ver,
deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma
coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade
oficial. Com certeza, Jesus não precisa dessa autenticação.
Ao ensejo, envio antecipados votos de
Feliz Natal.
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