domingo, 8 de janeiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 08.01.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 08.01.2017

Caros Leitores:

A memória litúrgica deste domingo é da Epifania do Senhor. É a festa popularmente conhecida como Dia dos Santos Reis, contudo, eles nem são reis nem são santos (no sentido estrito). O folclore trazido para cá pelos portugueses introduziu o costume dos “reisados”, tradição que se encontra em franco declínio, mas ainda se pratica em algumas localidades. Tempos atrás, era mais comum verem-se pessoas “tirando reis” de casa em casa. Atualmente, com o crescimento da violência urbana e sobretudo depois do vício da televisão, esses folguedos populares foram caindo em desuso e somente alguns “heróis” os mantêm. Os jovens e as crianças de hoje não reconhecem mais essas práticas, que eram muito fortes há 40 ou 50 anos.

A epifania do Senhor designa a universalidade da salvação trazida por Cristo. No Antigo Testamento, os profetas se referiram ao Messias como salvador do povo de Israel e, naquela época de domínio político dos romanos na Palestina, havia a esperança do Messias que lhes restituiria a liberdade. O nascimento de Jesus numa cidadezinha longe da capital e sem qualquer aparato de poder e riqueza era o oposto da figura do Messias esperado. Assim como também foi inesperada a presença de pessoas ilustres vindas de terras orientais, isto é, de fora do território judaico, pois eles não pertenciam ao grupo do povo da promessa, os judeus. Mateus, cujo evangelho tem como tema básico a apresentação de Jesus como salvador, narra a chegada dos magos como um fato que vem reforçar a ideia da salvação universal, não apenas aos “assinalados”.

O evangelista não informa de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O texto fala somente nos 'magos', não diz que eles são reis e também não se deve entender esta palavra no sentido da prática de magias. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo e praticada na região que hoje corresponde ao Irã. Há pouco tempo, assisti a um filme intitulado “O quarto sábio”, abordando a provável existência de um quarto “mago”, que se desencontrou dos outros três, por ter chegado atrasado ao local combinado, e saiu seguindo os passos dos outros, vindo a encontrar-se com Jesus somente quando ele já estava sendo levado para o Calvário. Os assim chamados “magos” eram estudiosos da astrologia, tema muito comum entre os povos antigos, que buscavam a compreensão do universo através da observação dos astros, fazendo correlação da movimentação destes com as vidas das pessoas. Esses saberes eram, em geral, distantes da maioria das pessoas e eram considerados ciências ocultas, confundidos com a magia.

O termo “epiphania” é um substantivo derivado do verbo grego “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no seu nascimento. Por essa razão, as igrejas católicas orientais celebram o seu dia de Natal na epifania. A Igreja Católica Romana separou as comemorações do nascimento de Jesus em duas festas: uma em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo, e hoje, a manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais, em 6 de janeiro. Se observarmos bem, a tradição das igrejas orientais, mais antiga, é mais coerente, porque realmente a manifestação de Cristo ao mundo se deu com o seu nascimento. A divisão da festa em duas representou uma interferência indevida da cultura romana sobre o cristianismo, o que foi repudiado pelos Padres orientais, que mantiveram até hoje a sua tradição.

As leituras litúrgicas da Epifania procuram integrar os textos do antigo e do novo testamento, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías (deutero-Isaías), cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor.” Por certo, os “magos” viajavam em camelos, o transporte característico do Oriente Médio, mas a narração de Mateus parece sugerir que a chegada deles não foi motivo de alvoroço, porque diz apenas que eles encontraram o Menino e Maria, sua mãe, ofereceram os presentes e o adoraram. Depois foram embora. Parece que Mateus (2, 2) quis mostrar a realização da profecia de Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos.” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. Os evangelistas, que conheciam a Lei e os Profetas, trataram de integrar as profecias nos seus textos, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos judeus duvidavam e teimavam em não admitir isso.

É curioso notar que nem o evangelista Lucas nem Marcos se referem ao episódio da visita dos “magos”. É de admirar sobretudo que Lucas não trate dessa visita, quando se sabe que os detalhes mais particulares da infância de Cristo se encontram no seu evangelho, provavelmente repassados por Maria. No entanto, será que da visita dos “magos” logo após o nascimento de Jesus, Maria não se lembraria? E por que não teria repassado isso a Lucas, assim como fez com outros acontecimentos? De fato, é de causar estranheza o silêncio do evangelho de Lucas acerca desse importante fato da infância de Jesus. Bem, por mais especulações que se façam, nunca se saberá com certeza o motivo dessa omissão. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.

Com efeito, a aliança original de Javé foi com os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa. Então diante da descrença deles, a boa nova trazida por Jesus, o seu evangelho, foi pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. Num contexto trans-histórico, esses gentios somos nós, cristãos, que não descendemos do povo hebreu. A figura dos “magos” colocada nesse contexto próximo (ou mesmo junto) com o nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelista de mostrá-lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. É verdade que alguns judeus aceitaram o evangelho e creram em Cristo, porém sabemos que foram em minoria. Os diversos episódios, conhecidos através das epístolas de Paulo, acerca do problema dos “judaizantes”, isto é, daqueles que queriam manter as tradições judaicas junto com o evangelho, demonstram que houve adesão apenas parcial dos judeus. Entretanto, a pregação do evangelho aos gentios não foi somente porque os judeus não o aceitaram, mas é da natureza mesma da mensagem de Cristo. Ou seja, mesmo que todos os judeus tivessem crido e se convertido ao evangelho, ainda assim o anúncio do cristianismo teria sido feito também aos gentios, porque essa era a sua proposta.

A universalidade da salvação trazida por Cristo é também o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, só bastante tempo depois, o cristianismo chegou ao mundo romano. Foi por esse motivo que os Patriarcas das Igrejas orientais não aceitaram a mudança da data do Natal para 25 de dezembro, porque as suas Igrejas eram muito mais antigas e a sua tradição já consolidada. E eu, sinceramente, gostaria que a Igreja Romana reparasse esse equívoco histórico e se unisse à liturgia das igrejas orientais, onde se encontra a tradição cristã mais genuína.

Meus amigos, independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. Com a festa da Epifania, a liturgia encerra o ciclo do Natal e passa para o tempo comum, que irá até a quarta feira de cinzas, quando se inicia a quaresma.

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