COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO
COMUM – A LUZ E O SAL – 05.02.2017
Caros Leitores,
Neste 5º domingo comum, a liturgia
coloca para nossa reflexão a figura da luz, exemplificando com o
brilho da autora, que ilumina a terra. A luz que brilha sobre nós,
semelhante à aurora, é exatamente a luz da graça divina, que
recebemos de Deus no nosso batismo e que deve permanecer viva e
brilhante, de modo a iluminar os atos da nossa vida e, ao mesmo
tempo, deve funcionar como guia para clarear sobre os irmãos,
especialmente aqueles mais fracos na fé. O evangelho associa a
figura da luz com outro elemento essencial para a nossa vida, que é
o sal. Um e outro são metáforas dos compromissos que nós,
batizados, assumimos como autênticos discípulos de Cristo.
A teologia da revelação ensina que
nós nascemos com a sombra do pecado original, uma falha da natureza
humana, que não devemos atribuir ao Criador, que é perfeito, mas à
nossa própria condição de humanidade, herdeiros de Adão e Eva.
Para extirpar essa sombra, que carregamos como uma consequência da
fragilidade humana, nós temos o remédio eficaz, que é a graça
divina. Através da ablução com a água batismal, nós somos
purificados dessa mácula, todavia, essa purificação não funciona
de modo automático, mas precisa ser renovada e reforçada com as
nossas boas ações, o que só é possível quando nós abrimos nosso
coração para receber a graça e, em consequência, orientamos nossa
vontade para que a graça atue em nós e produza seus divinos
efeitos. A referência a Adão e Eva é a linguagem simbólica pela
qual o escritor sagrado personifica de um modo genérico as duas
figuras humanas de homem e mulher, imperfeitos pela natureza, mas
aperfeiçoados pela graça recebida do Criador. E o pecado original
não deve ser identificado com aquela vetusta história da maçã,
mas com a vulnerabilidade inerente à natureza humana, que nos impede
de conseguirmos alcançar, sozinhos, a salvação. Para isso, todos
nós dependemos essencialmente da graça e da misericórdia de Deus.
Na primeira leitura, o profeta Isaías
exemplifica, de um modo bem didático, algumas ações humanas que
tipificam aquilo que a teologia chama de “pecado original”: “Se
destruíres teus instrumentos de opressão e deixares os hábitos
autoritários e a linguagem maldosa, … a
tua vida obscura será como o meio-dia.”
(Is 58, 9) Esses instrumentos de opressão são aquelas forças
instintivas que nos impelem para o egoísmo, o autoritarismo e a
inveja, ou seja, uma tendência inata para agir de forma injusta com
os irmãos. Aquele que consegue superar essas imperfeições
decorrentes da nossa natureza desviada, esse andará na luz, a sua
vida será clara como o meio-dia. Diz ainda Isaías em 58, 7:
“Reparte
o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos, quando
encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne [teu
semelhante].
Então, brilhará tua luz como a aurora.”
Lembremo-nos de que, na época do profeta, ainda não havia sido
instituído o batismo da conversão, que somente surgiu com a
pregação de João Batista. No entanto, Isaías já preconizava
aquelas ações que seriam propostas pelo Batista para os que se
preparavam para a chegada o Messias, aplainando os caminhos e
capinando as veredas. E quando, tempos depois, Cristo instituiu o
batismo sacramental, o batismo da salvação, os benefícios da graça
batismal atuaram de modo pleno no tempo, incluindo presente, passado
e futuro, de modo que os que viveram segundo a orientação do
Profeta foram também alcançados pela graça da salvação. O
sacrifício redentor de Cristo foi realizado num tempo histórico
determinado, no entanto, os seus efeitos se estendem em plenitude
para um tempo indeterminado (anterior e posterior), referendando
todas as práticas de justiça que as pessoas efetivaram, como
consequência de sua fé. Com sua morte e sua ressurreição, Cristo
aspergiu seu sangue sobre todos, independentemente da época em que
viverem ou viverão, alcançando a todos estes os benefícios
decorrentes da consumação da antiga aliança de Javeh com o povo
hebreu. A única condição para isso é a adesão que cada um deve
fazer a esse “contrato” patriarcal, renovado e consolidado pela
intervenção do Messias, cujo conteúdo é o compromisso batismal, e
cuja assinatura é traçada pela água derramada em nossas cabeças.
Na segunda leitura, de Paulo aos
Coríntios (1Cor 2, 1-5), o Apóstolo diz que foi àquela cidade para
anunciar ao povo o “mistério de Deus”. Que mistério seria esse?
O próprio Paulo responde: Jesus Cristo crucificado. E para esse
anúncio, Paulo não usou discursos bonitos nem oratória erudita,
mas apenas a linguagem comum, para que o conteúdo de sua pregação
se destacasse, e não a sonoridade das palavras bonitas. Meus amigos,
a palavra “mistério” significa aquilo que estava escondido e foi
revelado. Paulo utiliza o termo para referir-se àquilo que antes era
obscuro e incompreensível aos homens, mas que tornou-se claro e
iluminado, pela força da luz de Cristo. Ele é a própria luz e é
através dele que nós, seus discípulos, podemos iluminar o mundo.
Pelos sacramentos, que Ele instituiu e nos deixou, sob a coordenação
da comunidade eclesial, nós participamos da claridade que essa luz
transmite. A partir do recebimento do batismo, abre-se para nós a
porta de acesso aos demais sacramentos, isto é, aos diversos canais
pelos quais Ele distribui a sua graça. Paulo fez isso na comunidade
de Corinto e noutras cidades daquela região. Nos dias de hoje, a
Igreja dá continuidade a essa tarefa de acolher os fiéis e
conduzi-los ao ambiente onde essa graça continua a ser distribuída.
Dentro da comunidade eclesial, a graça que recebemos deve ser
potencializada para que, em nossa vida cotidiana fora do ambiente
típico da sacralidade, as demais pessoas possam perceber a
luminosidade do nosso ser através do nosso comportamento, do nosso
modo de agir.
O evangelho de Mateus (Mt 5, 13-16)
associa duas metáforas muito poderosas: a luz e o sal. Desde os
tempos mais remotos, as pessoas compreenderam a importância do sal
para a vida humana. Chegou ao ponto de que, em eras primitivas, o
pagamento de trabalhos realizados pelos operários era feito não com
dinheiro, mas com sal (salarium). Os minerais trazidos pelo sal são
essenciais para o nosso organismo, de modo que a vida humana se
tornaria inviável sem o consumo de porções (moderadas) de sal. Do
mesmo modo como a vida humana seria inviável sem a luz, assim também
seria sem o sal. Atuando de modos diferentes, mas sempre em caráter
indispensável, a luz e o sal são insumos que tornam possível a
vida humana, seja individual, seja social. Daí porque Cristo
utilizou muitas vezes essas figuras como recursos pedagógicos para a
sua catequese.
Ora, diz Jesus, imaginem se o sal
viesse a perder a sua funcionalidade básica, com o que iríamos
salgar os alimentos? Nos dias de hoje, a indústria química já
consegue produzir materiais alternativos que geram efeito similar ao
sal para o preparo dos alimentos a pessoas que possuem certas doenças
agravadas com a ingestão do sódio, componente principal do sal. Mas
na época de Cristo, isso não existia e ele falava para o povo
daquela época, do modo que fosse mais compreensível para eles. Um
sal que não produzisse seus efeitos não serviria para mais nada.
Quando muito, seria usado como pedrisco para pavimentar os caminhos.
Com isso Jesus vem nos dizer que um cristão que não desenvolver em
si a graça que recebeu com o batismo, é como se a graça recebida
não produzisse os efeitos que deveria gerar, portanto, haverá um
desperdício da graça, pois um tal cristão não seria capaz de
“salgar” a sociedade com o seu exemplo e o seu testemunho. Meus
amigos, essa é uma séria advertência para que cada um de nós
avalie de que modo a graça que recebemos está ou não produzindo
seus frutos na nossa vida, para que não estejamos nos arriscando a
ser esbanjadores da graça divina. No caso, essa graça inócua em
nós, além de não contribuir para que superemos as vicissitudes
próprias da nossa natureza imperfeita, ainda nos tornará réus de
uma acusação muito grave, qual seja, de sermos desperdiçadores
desse valioso dom.
Numa consideração analógica com a
luz, a graça divina deverá nos tornar iguais a grandes lamparinas
em noite de apagão. Ninguém acende uma lucerna e a coloca debaixo
de uma vasilha, pois assim ela não cumprirá a sua finalidade. A
graça divina que recebemos não deve ficar restrita ao nosso ser, à
nossa subjetividade, mas deve ser compartilhada com os irmãos.
Colocar a luz escondida significa agir egoisticamente, usar a
lamparina para clarear apenas o nosso próprio caminho. Não foi para
isso que Jesus veio abrir para nós a porta da salvação. Ninguém
se salva sozinho, a salvação se realiza na comunidade. Houve uma
época em que a catequese pregava: “salva a tua alma”... hoje em
dia esse discurso mudou completamente para “salva o teu irmão e
assim tu também serás salvo”. Por isso é que a luz deve ser
colocada num local elevado, a fim de clarear o caminho para muitos, a
fim de chamar a atenção dos incautos, daqueles que se encontram
envolvidos com as coisas mundanas, daqueles onde a graça está
dormitando, a fim de incentivá-los a também se tornarem luminares
eficazes e generosos. Manter a luz escondida é uma contradição com
ela própria, cuja existência só se justifica se for um ponto de
orientação para todos, assim como o farol orienta os que viajam
pelo mar.
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