domingo, 26 de fevereiro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 8º DOMINGO COMUM - MAIS QUE AMOR DE MÃE - 26.02.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 8º DOMINGO COMUM – MAIS QUE AMOR DE MÃE – 26.02.2017

Caros Leitores,

Neste oitavo domingo do tempo comum, a liturgia aborda o tema da providência divina, que é maior do que o amor da mãe para com os filhos. Ainda que uma mãe venha a desprezar o filho, Javeh não desprezará Sião, é o que diz o profeta Isaías, consolando os cativos na Babilônia. No evangelho de Mateus (Mt 6, 24-34), lemos uma frase, que me faz lembrar muito do Frei Timóteo, pois ele gostava de pronunciar nas conferências: “sufficit diei militiam suam”, isto é, basta a cada dia a sua labuta, o que subentende que não devemos nos preocupar com o dia de amanhã. Ou ainda: confiemos na providência divina.

Na primeira leitura, o profeta Isaías (cap 49) consola os hebreus no cativeiro da Babilônia, onde se lamentavam, sentindo-se abandonados por Javeh. O profeta tenta revitalizar o ânimo do povo fazendo um paralelo entre o amor divino e o amor materno. Sabemos que não existe relação mais forte, na vida humana, do que aquela que une a mãe e os filhos. Não dá nem para comparar com o amor de pai. Quem já viveu essa experiência com a própria mãe e passou a ter, depois, a experiência de ser pai sabe que a ligação do filho com a mãe é muito mais intensa, visceral mesmo. Então, o profeta Isaias se serve dessa experiência humana para explicar ao povo que o amor de Deus não é só amor de pai e também nem é só amor de mãe, é muito mais do que tudo isso. “Acaso pode a mulher esquecer-se do filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se esquecer, eu, porém, não me esquecerei de ti.” (Is 49, 15) Ainda que, por mais absurdo que isso possa parecer, aconteça de uma mãe renegar um filho e esquecê-lo, mesmo assim Javeh não esquecerá o seu povo. Cativos e maldizentes, os judeus amargavam o castigo da sua falta de fidelidade a Javeh. Mas o castigo não significa diminuição do amor, assim como quando a mãe ou pai castigam o filho (castigavam, no tempo em que não isso era proibido!) não implicava que eles deixassem de amá-lo.

Na carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo aborda o tema da providência divina também sob o viés da fidelidade. Paulo estava sendo perseguido por causa do evangelho que pregava e temia receber alguma punição, por causa de denúncias dos inimigos. Então, diz ele, eu não tenho medo de ser julgado por nenhum tribunal humano. Primeiro, porque a sua consciência não o acusava de nada. Segundo, porque na qualidade de administrador da fé cristã, como pregador e missionário que era, ele confiava no julgamento divino apenas. Certamente, alguns amigos dele viviam alertando-o sobre possíveis ameaças. Paulo pregava nas reuniões secretas dos cristãos primitivos, naquele tempo em que o cristianismo era perseguido e considerado inimigo do império romano. Paulo viveu na época do imperador Nero, aquele que mandou incendiar Roma e depois colocou a culpa nos cristãos. Ou seja, Paulo vivia em constante perigo e tinha consciência disso. Para ele, o amanhã era sempre uma incógnita, mas isso não o intimidava na sua tarefa de pregar o evangelho. Então, ele confiava totalmente na divina providência. “É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo. Quem me julga é o Senhor. ” (1Cor 4, 4) Paulo servia a Deus na fidelidade do seu coração e confiava que somente Ele poderia julgar suas ações. “Deus é fiel” (1Cor 1,18) é um mote paulino muito citado, sobretudo pelos crentes das igrejas não católicas, reproduzindo essa verdade proclamada pelo apóstolo Paulo e que se tornou tão popular, até tornar-se adesivo posto nos veículos e ainda nome usado como título de empresa comercial.

Nesse contexto da comparação da providência divina com o amor da mãe para os filhos, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Mateus (6, 24-34), o conhecido trecho da advertência de Cristo de que “ninguém pode servir a dois senhores”. “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). A palavra “dinheiro” empregada nessa frase não é bem a tradução do termo original, é um arranjo literário. A palavra usada por Cristo é o termo aramaico “mamona”, que no texto grego não foi traduzido e nem na vulgata latina, mantendo-se o vocábulo original. Segundo os biblistas, o texto original do evangelho de Mateus seria em aramaico, o que explicaria a utilização dessa palavra, não modificada na tradução para o grego. São Jerônimo fez tal qual o autor grego, ou seja, não traduziu, apenas transliterou a palavra “mammona” em latim: “Non potestis Deo servire et mammonae”. Provavelmente, os Colegas se lembram que, antigamente, se lia assim essa frase: não podeis servir a Deus e à mamona, o que ficava sem sentido em português, daí porque a CNBB optou em traduzir por “dinheiro”. De acordo com o significado original da palavra “mamona” no aramaico, esse termo se refere não propriamente à moeda, ao dinheiro, mas tem alcance bem mais amplo, referindo-se à ambição humana em geral pelas coisas materiais e também pelo poder e prestígio sociais. A glória humana, a fama, a ambição, o poder político e econômico, a avareza, o desejo incontrolado de possuir sempre mais, tudo isso está contido no conceito de “mamona”. No sermão de hoje, o celebrante fez alusão à fome, que mata inocentes em diversos países africanos, resultado do excesso da ambição de grupos tribais, subsidiados por interesses internacionais conflitantes, que colocam a população em grave risco. Esse desejo humano de poder desmedido chega a ser tão dilacerante que toma o lugar que deveria ser ocupado por Deus na vida da pessoa. Por isso, Cristo adverte para não nos deixarmos inebriar pelas “mamonas” da vida.

E então, Ele parte para exemplificar, de modo a deixar bem clara a sua ideia. Primeiro, diz: não vos preocupeis com o que ireis comer amanhã, ou beber, ou vestir. São Francisco interpretou esse frase ao extremo, quando escreveu na Regra franciscana “que os frades não recebam dinheiro ou pecúnia”, nem deviam ter duas túnicas, nem duas sandálias... portanto, deixem de lado a “mamona”. Antigamente como hoje, ter dinheiro significava ter poder material, quanto mais dinheiro, maior poder, e isso não combina com o ensinamento de Cristo. Dentro do modo de pensar capitalista, fica parecendo que Cristo está mandando esbanjar tudo o que se possui, porque amanhã Deus proverá mais. Não é bem assim. Por isso, não podemos fazer interpretações literais fundamentalistas, mas devemos compreender de forma adequada o que Cristo ensinou. Não é a posse simples de bens materiais que acarreta o sentido da “mamona”, mas o apego exagerado a esses bens, de modo a tirar a tranquilidade do possuidor. Se os bens possuídos por alguém forem de origem ilícita, então nem se duvida da sua desconformidade com a mensagem cristã, ainda que esses bens sejam utilizados para fins caritativos. Porém, se os bens possuídos são frutos de trabalho honesto e administrados com responsabilidade, eles só se tornarão “mamona” quando o seu possuidor der a eles maior valor do que dá ao próximo, de modo a recusar-se a ajudar quem necessita ou passar a utilizá-los unicamente para o próprio deleite, conforto e bem-estar. Relacionando com o amor de mãe, sabemos que ela será sempre capaz de desfazer-se de tudo que possui, se isso for necessário para prover a situação dos filhos. Do mesmo modo age a providência divina.

Descendo a detalhes em exemplos, Cristo faz uso novamente da sua magistral pedagogia para ensinar aquele grupo de pessoas pouco instruídas: vocês estão preocupados com a comida de amanhã? Pois olhem para os pássaros, que não semeiam nem ceifam, no entanto, o alimento nunca lhes falta. Estão preocupados com o que vão vestir? Pois olhem para os lírios que vestem roupas tão finas, que nenhum rei jamais vestiu. O Pai, que proporciona isso a eles, muito mais concederá a vocês. Essas preocupações são típicas dos pagãos. “Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso. ” (Mt 6, 32) E então Ele faz o arremate conclusivo dessa preciosa lição: “buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. ” (Mt 6, 33). O Reino de Deus é o oposto da “mamona”. Quem escolhe o Reino deve ter este Reino no coração e, por isso, não pode prestar culto à “mamona”. Quem está com a “mamona” no coração, não pode ter o Reino de Deus, porque são duas realidades incompatíveis. Quem tem a “mamona” no coração, não confia na providência e por isso precisa cuidar de tudo por si só e mesmo assim não conseguirá o seu intento. Quem acolhe no coração o Reino de Deus, terá como recompensa o recebimento de tudo do que necessita, sem ter de correr atrás. Se a mãe se desdobra sempre para amparar o filho, o Pai do céu faz isso muito melhor.


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