COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO
COMUM – A NAÇÃO SANTA – 18.06.2017
Caros Leitores,
Terminado o tempo pascal, o ciclo
litúrgico retoma o seu planejamento catequético, com as leituras
deste 11º domingo comum, que nos propõem para reflexão o tema dos
“escolhidos” por Deus. Na leitura do Êxodo (cap. 19), Javeh diz
a Moisés que escolheu aquele povo de Israel para ser um reino de
sacerdotes e uma nação santa. No evangelho, Mateus destaca
nominalmente os doze apóstolos, a quem Jesus irá confiar a tarefa
de serem continuadores da sua missão. O conceito dos escolhidos de
Deus, no mundo de hoje, se direciona para a sua Igreja, que somos
nós, seguidores de Cristo, um único “povo”, apesar de
distribuído em diversas denominações eclesiásticas. A proposta de
Jesus, no sentido de que “todos sejam um”, ainda se encontra em
fase de construção, pois a unidade dos seus discípulos ainda não
foi alcançada. E nós somos responsáveis por esse compromisso,
através da nossa adesão batismal.
Na primeira leitura litúrgica, temos
um trecho do livro do Êxodo (cap. 19), aquele que antecede a
narração da entrega das tábuas da lei a Moisés. Depois de três
meses de caminhada pelo deserto, o povo acampa ao pé do monte Sinai.
Moisés sobe o monte, atendendo ao chamado de Javeh, que manda um
recado para o povo: “se
ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim a
porção escolhida dentre todos os povos”
(Ex 19, 5). Em seguida, Javeh manda Moisés convidar todo o povo para
uma “reunião” com Ele no dia seguinte, que aparece ao povo no
meio de uma fumaça espessa, como se todo o monte Sinai estivesse em
chamas. No capítulo seguinte, tem-se a narração dos dez
mandamentos, os quais sintetizam as exigências de Javeh, para que a
nação de Israel seja para sempre a sua nação santa e o seu povo
eleito.
Um fato curioso, nesse contexto, é que
atualmente não se sabe com certeza onde fica o monte Sinai. Mesmo
tendo sido esse local o palco da confirmação da aliança de Javeh
com os descendentes de Abraão, o lugar geográfico do monte onde se
deu esse encontro de Javeh com Moisés e com o povo é motivo de
dúvidas e discussões entre os biblistas. Há três locais
prováveis, de acordo com os estudiosos da Terra Santa: 1. segundo a
tradição mais antiga, identifica-se o local como Jebel Mussa ("a
Montanha de Moisés"), localizada entre as Montanhas de Granito
ao sul da Península do Sinai, tendo sido esse o provável caminho
seguido pelos hebreus quando fugiam do Faraó, além de ser uma rota
utilizada desde antigamente pelos comerciantes de pedras preciosas
vendidas na região do Nilo; 2. a segunda opção é o Monte Karkom,
localizado ao sul de Israel, muito próximo da fronteira egípcia,
montanha que fica num local sagrado importante durante milênios,
está coberta com milhares de escrituras antigas e arte em pedra, que
pode a datar até o ano 4000 a.C; 3. a terceira opção é o monte
Jebel el-Lawz, na Arábia Saudita, que fica numa região conhecida
como Midian, na época bíblica. Os defensores desta teoria apontam o
fato de que Moisés estava nesta região, porque tinha consultado com
seu sogro Jetro, um sacerdote Midianita, antes de subir o Monte Sinai
(Ex. 18:1). O dilema permanece insolúvel e talvez nunca seja
esclarecido, porque Moisés subiu sozinho ao monte, mas isso não é
realmente importante, porque mais significativo do que o local
físico, é o legado de fé e tradição que dali se iniciou.
No evangelho de Mateus, lido neste
domingo (Mt 9, 36), Jesus expressa compaixão por aquela multidão de
pessoas que o seguem, percebendo-as cansadas e abatidas “como
ovelhas sem pastor”, Então, Jesus exorta os apóstolos a serem
guias desse povo, conferindo-lhes diversos dons para serem usados em
benefício deles (curar doenças, expulsar espíritos maus,
ressuscitar mortos…), dons que se perpetuam no poder da hierarquia
da sua Igreja. O que se lamenta é que essas palavras de Jesus sejam
ainda hoje interpretadas em sua literalidade e muitas pessoas esperam
encontrar nos cultos religiosos a solução de seus males físicos e
psicológicos, como se a oração fosse uma fábrica de milagres.
Obviamente, os milagres existem e muitos são os testemunhos deles,
no entanto, o milagre se opera pela fé, não basta dizer “Senhor,
Senhor”. É decepcionante observar-se como os cultos religiosos
têm-se tornado espetáculos de ilusionismo religioso, sobretudo nas
assim chamadas “igrejas eletrônicas”, que aproveitam para
promoverem a venda de “unções”, de objetos abençoados, além
de apresentarem simulações de atos miraculosos, que seduzem pessoas
crédulas, mas desinformadas. Não foi esse, certamente, o objetivo
pretendido por Jesus Cristo. Ainda vigora a exortação de Javeh ao
sopé do Sinai: se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança,
sereis um reino de sacerdotes e uma nação santa. Após mais de três
mil anos desses fatos, fica parecendo que esse objetivo ainda não
foi alcançado.
Continuando a leitura do trecho do
evangelho de Mateus, chega-se a um conjunto de frases ditas por
Jesus, que suscitam confusão na mente do leitor. Depois de denominar
os doze apóstolos, o evangelista põe na boca de Jesus algumas
orientações desconcertantes (Mt 10, 5-7): “'Não
deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos
samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!'”.
Que significa “não ir aonde moram os pagãos”? Pois não são
eles, os pagãos, que devem receber o anúncio da mensagem cristã
para se converterem e crerem no evangelho? Que significa “não
entrar nas cidades dos samaritanos”? Samaritanos e judeus não
fazem parte do povo da aliança, aqueles que atravessaram o deserto
sob o comando de Moisés? De acordo com a ótica de Mateus, a
pregação deve ser dirigida, preferencialmente, “as ovelhas
perdidas da casa de Israel”, isto é, aos outros judeus, àqueles
judeus que não aceitaram Jesus nem creram na sua mensagem.
Percebe-se aí que a preocupação do evangelista Mateus é com a
conversão dos judeus, daqueles mesmos que crucificaram Jesus, pois
para eles a pregação de Cristo foi dirigida em primeiro lugar. Esse
fato pode ser melhor compreendido se considerarmos que o texto
original do evangelho de Mateus foi escrito em aramaico e só depois
traduzido para o grego, enquanto os demais evangelhos foram escritos
originalmente em grego. A tradução portuguesa usa o vocáculo
“pagãos”, mas no texto latino a palavra é “gentium”, isto
é, os gentios, os povos não judeus, na prática, os gregos, que
eram a maioria na região do Mediterrâneo. E se percebe também o
ranço de xenofobia do autor em relação aos Samaritanos, por causa
das dissensões entre os reinos do norte (Israel - capital Samaria) e
do sul (Judá - capital Jerusalém), quando os filhos de Salomão,
após a morte deste, brigaram e o reino foi dividido em duas partes.
Jesus bem que tentou promover a união dessas facções, o que está
bem claro no episódio da Samaritana, mas a desavença persistia e o
escritor do texto evangélico demonstra isso. Fato notório é que
essas “recomendações” só constam no texto de Mateus, não
havendo referência a isso nos outros evangelistas.
A carta de Paulo aos Romanos, de certo
modo, contradiz o texto de Mateus, pois romanos e gregos eram
exatamente os “gentios” aonde os apóstolos não deveriam ir. Diz
Paulo (Rm 5, 8): “a
prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando
éramos ainda pecadores”.
Se tivesse prevalecido a ideia de Mateus, a mensagem de Cristo não
teria chegado aos gentios e nem a nós. E complementa Paulo (Rm 5,
10): “Quando
éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do
seu Filho”. Por
outras palavras, Paulo está nos dizendo que o conceito da “nação
santa” não se aplica exclusivamente àquele povo que,
originalmente, recebeu a pregação de Cristo (e nem acreditou nele),
mas inclui também a nós, os gentios, isto é, aqueles que não
ouviram Jesus Cristo falar, no entanto, acreditaram sem ter visto. E
agora, já estando reconciliados, seremos salvos por seus méritos.
Caros amigos, a construção da “nação
santa”, do único povo de Deus, da unidade de todos os cristãos e,
mais ainda, da união de todos os crentes monoteístas continua sendo
o grande desafio do ecumenismo, que a Igreja vem defendendo, e que
nem sempre é bem compreendido. Talvez por isso, o projeto de Javé
da “nação santa”, mesmo contando com o sacrifício de Cristo,
ainda não se concretizou.
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