COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA
SANTÍSSIMA TRINDADE – IMENSA E UNA - 11.06.2017
Caros Leitores,
Neste domingo após Pentecostes, a
liturgia celebra a festa da Santíssima Trindade, imensa e una, como
diz o cântico litúrgico. A imagem do Deus Uno e Trino é o maior
mistério que Jesus revelou na sua pregação, algo que os apóstolos
só entenderam após o Pentecostes, e essa verdade é o centro da fé
cristã. Nenhuma outra religião tem a fé fundamentada em um Deus
que é uno e conforma-se em três pessoas. Alguns estudiosos tentam
relacionar a Trindade cristã com tríades de divindades egípcias ou
indianas, mas a comparação não se aplica, porque a Trindade cristã
é também una e as demais não são. No Antigo Testamento, o povo
hebreu conhecia apenas o Deus da aliança, o todo poderoso mas também
o terrível. A revelação divina no A.T. foi, então, apenas
parcial. Somente a encarnação de Cristo trouxe a imagem completa do
Deus da aliança, de modo que por Ele foi celebrada uma Nova Aliança,
agora com o Deus Unidade e Trindade. Esse é o significado do Novo
Testamento.
Na primeira leitura, retirada do livro
do Êxodo (Ex 34, 4-9), lemos o diálogo de Moisés com Javé, logo
após haver recebido as tábuas da lei. Moisés descia do monte com
as tábuas na mão e pediu clemência a Javé por aquele povo, pois
ele já sabia que seria difícil a missão dele como líder, que
devia levar todos ao cumprimento daquela lei. Conhecendo as suas
tribos, Moisés ficou preocupado e foi logo pedindo a Javé: tem
paciência com esse povo, que é um povo de cabeça dura, e
perdoa-lhes os pecados, acolhe-os como Teu povo. É exatamente essa a
imagem de Javé que predomina no Antigo Testamento: um Deus exigente,
irascível, que aplica grandes castigos por causa das atitudes
contrárias à lei, mas, ao mesmo tempo, misericordioso e sempre
pronto a perdoar. Era essa a figura de Deus desenhada na mente do
povo hebreu e que Jesus veio desfazer, quando ensinou que Deus é
amor. Era muito difícil para aqueles hebreus moldarem uma nova
compreensão do Deus da aliança, esse foi o grande esforço
pedagógico de Jesus, tanto no grupo dos apóstolos quanto nas
discussões com os fariseus. Além de ser a mais verdadeira expressão
da bondade e da misericórdia, esse Deus ainda é múltiplo, sem
deixar de ser um. Convenhamos, foi exigida dos hebreus uma mudança
tão radical de pensamento acerca de Javé que eles não conseguiram
aceitar nem compreender. E no meio dessa dúvida, terminaram por
condenar à morte Aquele que veio trazer a notícia.
A figura de Deus como personalidade una
e trina foi, de fato, a grande novidade trazida pela revelação de
Cristo. São João, no prólogo do seu evangelho, foi quem melhor
sintetizou a doutrina da Trindade: no princípio, o Verbo estava em
Deus e o Verbo era Deus. Depois, o Verbo se fez gente e todos nós o
vimos. João Batista viu o Espírito descer do céu e repousar sobre
ele. E por ele recebemos a plenitude da graça. Esse é o grande
mistério. Quando nós falamos em mistério da nossa fé, no sentido
etimológico grego, estamos dizendo algumas verdades desconhecidas,
algumas informações que antes estavam escondidas, mas que nos foram
trazidas por Cristo; isto é o que também chamamos de revelação.
Portanto, mistério e revelação são conceitos equivalentes.
As discussões e as tentativas de
compreensão sobre a informação trazida por Cristo acerca da
Trindade causaram muita celeuma nas primeiras comunidades cristãs,
tendo sido objeto de diversas doutrinas, algumas delas consideradas
heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e
ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram
mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo,
defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Cristo é filho de
Deus, mas não é igual a ele, seria uma espécie de semideus. O
monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma natureza, a divina,
e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um
fantasma divino visível. Essas doutrinas contraditórias foram
discutidas e, por fim, definidas nos Concílios de Nicéia (325) e
Constantinopla (381), quando foi composto o “symbolo”, isto é, o
resumo doutrinário que nós chamamos de “credo” e o rezamos na
missa. Tanto o arianismo quanto o monofisismo foram rejeitados e foi
confirmada a doutrina das duas naturezas (divina e humana) em Jesus
Cristo e também foi confirmada a doutrina de Maria como mãe de Deus
e não apenas mãe do filho humano de Deus. O Concilio de Nicéia
está próximo de completar 1.700 anos.
A segunda leitura, extraída da carta
de Paulo aos Coríntios (2Cor 13, 11-13), traz apenas três curtos
versículos, cuja finalidade é muito mais demonstrar como o apóstolo
Paulo, logo nos primeiros tempos do cristianismo, ensinava a doutrina
da Trindade. “A
graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do
Espírito Santo estejam com todos vós
” (2Cor 13, 13) Esta antífona é rezada no início das missas. Em
todas as suas cartas, Paulo faz questão de sempre aludir às três
pessoas divinas, pois estas são o ponto central da nossa fé. A
partir das lições de Paulo, as orações e invocações litúrgicas
passaram a adotar sempre a referência à Trindade e sempre terminam
com a invocação clássica: por Jesus Cristo, que com o Pai e o
Espírito Santo vive e reina para sempre. A demonstração de que a
Trindade está no centro da vida cristã se verifica pela frequência
com que a invocamos em todas as orações e ações. É comum as
pessoas sempre iniciarem ou concluírem uma atividade com o sinal da
cruz, que não é outra coisa senão uma invocação da Trindade.
É interessante examinar o cuidado
linguístico que os teólogos redatores do Credo tiveram ao compor o
resumo simbólico das verdades da fé: o Filho é gerado, não é
criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas
no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o
mundo, as pessoas, as coisas em geral foram criadas por Deus, mas o
Filho foi gerado. Esta diferença conceitual significa que o Filho
tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as
coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador. Em relação
ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o
Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar
nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor
entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o
Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa
divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a
nossa racionalidade não consegue entender. Na Idade Média, Santo
Tomás de Aquino foi socorrer-se das categorias de Aristóteles não
para explicar a verdade trinitária, porque esta não comporta nas
cavidades do intelecto humano, mas para justificar, perante os
adversários do cristianismo que, embora não sendo racional esse
conceito, por outro lado, não encerra uma contradição e, por isso,
não é contrário à razão. O fato de ser incompreensível não é
porque contenha algo impossível de existir, mas apenas porque as
limitações da nossa capacidade racional nos impedem de entender.
Daí ser necessária a fé, que complementa a razão. Todos se
lembram daquele famoso poema de Sto Tomás, do qual se cantam duas
estrofes quando tem a bênção do Santíssimo Sacramento. Sto Tomás
escreveu exatamente isso que eu repeti acima: a fé vem em socorro da
racionalidade. Vou escrever em latim, para ficar mais original:
Tantum ergo sacramentum veneremur cernui. Et antiquum documentum novo
cedat ritui, praestet fides suplementum sensuum defectui. Traduzindo
a última frase: que a fé forneça um suplemento para a falha dos
sentidos, isto é, que a fé ajude a completar aquilo que os sentidos
sozinhos não conseguem perceber.
O trecho do evangelho de hoje (Jo 3,
16-68) não me pareceu bem escolhido para a festa da Santíssima
Trindade, porque fala apenas do Pai e do Filho, não faz uma
referência ao Espírito Santo. Há outros trechos mais
significativos, que fazem referência às três pessoas divinas.
Neste, apenas de forma indireta, quando João alude ao Espírito, ao
afirmar que “Deus amou tanto o mundo que mandou seu Filho
unigênito...” (Jo 3, 16). Podemos entender que esse Amor sem
medida é a pessoa do Espírito divino, como concluiu o Concílio de
Constantinopla ao compor a redação final do Credo: o Espírito é
fruto de uma relação de amor entre o Pai e o Filho, então, o amor
do Pai para com o mundo, ao ponto de enviar o seu próprio Filho, é
também uma afirmação indireta da pessoa do Espírito Santo.
Meditemos sobre essa verdade imensa e
una, que é de fato o elemento central da nossa fé cristã. Se
tivermos sempre presente na mente essa verdade, as nossas atitudes
cristãs terão muito mais sentido.
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