domingo, 20 de agosto de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM - ASSUNÇÃO DE MARIA - 20.08.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 20.08.2017

Caros Leitores,

A liturgia dominical comum do vigésimo domingo cede espaço para a celebração da festa da Assunção de Maria, conforme a negociação dos feriados religiosos para o Brasil, que são transferidos para o domingo seguinte. A Assunção de Maria ao céu foi proclamada como dogma de fé pelo Papa Pio XII, no dia 1 de novembro de 1950, sendo esta a primeira proclamação oficial de um dogma após ter sido declarado, no Concílio Vaticano I, em 1870, a infalibilidade papal em matéria de doutrina. Antes, o Papa fez uma grande consulta aos Bispos do mundo todo, tendo sido apoiada por grande maioria deles a proposta. Então, o Papa fez a solene declaração de fé, afirmando que a Virgem Maria, após haver concluído a sua missão na terra, foi elevada ao céu em corpo e alma. Propositalmente, o Papa não afirmou que Maria havia morrido, porque existe uma tradição muito forte nas igrejas orientais, que afirmam a “dormição” de Maria, indicando que ela não teria morrido e o Papa não quis entrar em choque com essa crença. O dogma da Assunção foi proclamado com base em remota tradição cristã, já que não consta na Bíblia, sendo esse um forte motivo para que outras igrejas não o aceitem.

A festa da Assunção de Maria também funciona como data de referência para outras denominações da Virgem, as quais não possuem uma data definida. Assim é que, nesta data, uma variedade de outras Nossas Senhoras tomam assento: além da Nossa Senhora da Assunção, designação própria da data, tem a Nossa Senhora da Glória, a Nossa Senhora dos Prazeres, a Nossa Senhora da Saúde, a Nossa Senhora da Palma, falando apenas de algumas que existem no território cearense. Provavelmente, em outros lugares do Brasil haja outras designações que eu não conheço. Esse fenômeno reflete a grande influência que o culto mariano tem na nossa cultura religiosa, tanto popular quanto erudita, herança deixada pelos colonizadores portugueses. Sem dúvida, há um acentuado exagero devocional a Nossa Senhora, que suplanta a figura principal da nossa fé religiosa, o Filho de Maria. Esse devocionismo excessivo se encontra também presente na atribuição dos nomes próprios das brasileiras. Nos dias atuais, essa tendência vem diminuindo progressivamente, mas seguramente mais da metade das mulheres brasileiras ainda tem alguma “maria” na composição do seu nome. Sem nenhum demérito para a Mãe de Deus, cuja participação no Mistério da Redenção é determinante e imensurável, mas o devocionismo a Maria e aos Santos em geral, marca do catolicismo brasileiro, constitui um desvio teológico de profundas raízes não apenas na mente popular, mas na grande maioria dos presbíteros.

Comentando um pouco as leituras da festa litúrgica da Assunção de Maria, temos na primeira leitura, um conhecido trecho do Apocalipse (12, 1-6), que narra a figura do dragão pronto para devorar o filho da mulher que estava prestes a nascer. As associações imediatas mais do que óbvias são: a mulher é Maria e o dragão é o demônio. Mas há outras hipóteses para a figura da mulher: a própria Igreja, ou o povo de Deus, ou ainda o povo de Israel. Assim como há outras hipóteses para o dragão de sete cabeças e dez chifres. Talvez seja a figura do império romano com suas autoridades perversas, levando perseguição ao cristianismo. A cauda do dragão, que era capaz de destruir a terça parte das estrelas do céu, deve significar o grande poder desses imperadores pagãos. Dado o grande conteúdo simbólico do livro do Apocalipse, são muitas as possibilidades de interpretação que as suas palavras permitem, de modo que cada crença busca uma forma de relacionar com suas próprias convicções. Eu tenho cá as minhas reservas sobre muitas dessas conclusões que já vi pessoas retirarem dali. Gramaticalmente, a palavra vem do grego apo-kalypsis, termo derivado do verbo kalyptô, que significa esconder, funcionando a preposição “apo” como uma negativa, portanto, algo que é retirado do esconderijo. Nas bíblias não católicas, o termo é traduzido por “revelação”, porém não se deve confundir o conceito teológico da revelação dada por Cristo sobre o Pai, o fundamento da nossa fé, com qualquer revelação, mesmo que totalmente acreditada, como é o caso. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Bíblia católica não traduz a palavra, apenas a translitera. Na minha modesta opinião, não é este um livro que deva merecer a atenção dos fiéis em busca de “revelações” outras que estariam escondidas, visto que a única revelação, a única Palavra de Deus é o próprio Cristo e esta se encontra de modo admirável nos evangelhos. O Apocalipse é apenas um quebra-cabeças para teólogos decifrarem.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-27), temos aquela também famosa analogia que o Apóstolo faz entre Cristo e Adão, quando ela afirma que “por um homem” entrou o pecado no mundo e depois “por um homem” entrou a salvação. Essa figura retórica de Paulo já foi motivo de inúmeros e inconclusos debates entre os teólogos, de um lado, aqueles que defendem a doutrina científica da evolução das espécies e, de outro lado, os que defendem a teoria criacionista. Em meus recentes estudos de hebraico bíblico, aprendi que a palavra Adam (אדס) significa “homem”, pessoa humana, então não vale a pena discutir sobre o que essa analogia conceitual de Paulo possa significar. Além disso, as descobertas científicas não param de evidenciar que a criação divina continua com plena força na expansão do universo e na perene evolução dos seres vivos. A meu ver, a teoria criacionista é mero fruto do fundamentalismo bíblico e nada acrescenta à bagagem conteudista da nossa fé. Além do mais, seria irrazoável esperar que Paulo fosse capaz de pensar com categorias científicas que só passaram a ser definidas muitos séculos depois da morte dele. E o seu conceito mecanicista de ressurreição, exposto nos versículos 23 e 24 deste capítulo 15 também merece ser atualizado, para uma melhor adequação com o pensamento teológico contemporâneo.

Temos, na leitura do evangelho de Lucas (1, 39-56), a narração da visita de Maria a sua prima Isabel, depois de ter sabido, pelo anjo, da gravidez desta. Este trecho contém o popular e belo cântico do Magnificat, que tantas vezes cantamos em melodias diversas, correspondendo este à exaltação e ao agradecimento de Maria pela homenagem prestada a ela por Isabel, que recebeu ali a segunda revelação da chegada do Messias (a primeira revelação foi a do anjo a Maria). E a criança que pulou no ventre de Isabel, também por desígnio divino, seria o precursor de Jesus, aquele que iria aplainar as veredas, cumprindo o que profetizara Isaías. O evangelista Lucas, nesta narrativa, quis deixar bem clara essa relação entre a missão de João Batista e a profecia de Isaias acerca do Messias. Sendo um intelectual e tendo tido o privilégio de conviver com Maria, após a morte de Cristo, Lucas nos deixou preciosas informações e interessantes associações, enriquecendo de forma inteligente e apropriada as confidências que Maria lhe fizeram.

Convém lembrar que Zacarias, marido de Isabel, era o sacerdote em exercício naquele ano, e que ficara mudo misteriosamente, após duvidar da gravidez da mulher. Este fato denota a relação direta familiar de Jesus com a classe sacerdotal do povo de Israel, embora José não pertencesse a essa classe, Conclui-se também a qualidade da instrução religiosa recebida por João Batista do pai sacerdote. Não foi por acaso que ele foi escolhido para ser o anunciador do Messias e não foi por um milagre que ele veio a conhecer as escrituras, mas foi pela formação recebida. De sua parte, Maria também recebia instrução religiosa dos rabinos da sinagoga, de modo que o anúncio do anjo a ela foi prontamente compreendido. Ela apenas ficou embaraçada: por que eu? Mas quando o anjo disse que ela tinha sido agraciada por Deus, ela não teve dúvidas em aceitar: fiat mihi secundum verbum tuum (faça-se em mim segundo a tua palavra). E com toda certeza, Maria e José também colocaram o menino Jesus na escola bíblica daquele tempo, pois assim tinha sido a formação de ambos. É algo que faz falta nos dias de hoje, pois as nossas crianças e jovens não são estimuladas para o estudo da Bíblia, limitando-se a ouvirem “palestras” dos formadores paroquiais, os quais nem sempre possuem a desejável cultura religiosa que a função exige. Pelo menos é assim que eu observo nas diversas Paróquias, por ocasião do tirocínio preparatório das crianças e adolescente para a primeira eucaristia e para a crisma.

Meus amigos, que fique bem claro que eu não sou contrário à devoção a Nossa Senhora, ao inverso, eu creio que ela é digna de todo louvor e veneração, pela importância fundamental de sua vida no mistério da Redenção. O problema passa a existir quando, por um acentuado zelo em favor da devoção a Maria, se desvia a atenção dos fiéis do verdadeiro foco da nossa fé cristã, que é a pessoa de Cristo. Que Maria assunta inspire as nossas autoridades religiosas para reconhecerem e ensinarem a sua correta devoção.

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