segunda-feira, 4 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - A LÓGICA DE DEUS - 03.09.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – A LÓGICA DE DEUS – 03.09.2017

Caros Leitores,

Neste 22º domingo comum, a liturgia nos põe diante do desafio de abandonar o modo de pensar de acordo com o mundo (lógica mundana) e aprender a pensar de acordo com o que é divino (lógica de Deus). A repreensão que Jesus faz a Pedro, que não compreendeu sua descrição da futura paixão pela qual teria de passar, nos adverte a buscar compreender os pensamentos de Deus, conforme ensinou o profeta Isaías (55, 8): “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos.”

Na primeira leitura, do livro do profeta Jeremias (Jr 20, 7-9), vemo-lo se debatendo entre o dilema de profetizar e ser alvo de zombarias ou de abandonar a proferia e se livrar. Javeh fá-lo compreender que, mesmo sofrendo chacotas e pilhérias, ele deve continuar a sua missão de profetizar. Para associar com o contexto histórico, Jeremias profetizou no período que antecedeu a destruição de Jerusalém pelos babilônios, um período histórico bastante conturbado do povo de Israel, cujo rei Ezequias e cujos sacerdotes praticavam a ganância e a idolatria e desrespeitavam Javeh. O profeta Jeremias, por diversas vezes, chamou a atenção das autoridades para esses desmandos, ameaçando que Javeh seria muito rigoroso para com eles, no entanto, eles riam do Profeta e levavam-no na brincadeira. Foi quando Jeremias escreveu: “Todas as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: ‘Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”. Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo; desfaleci, sem forças para suportar.” (Jr 20, 8-9) Percebemos nesse depoimento do Profeta que, quando ele quis optar pelo modo de pensar mundano, esquecendo a profecia, Javeh lhe mostrou que ele devia continuar seguindo a lógica de Deus, profetizando. Assim foi até que vieram os inimigos, destruíram a cidade de Jerusalém e levaram os habitantes como cativos. Ele, Jeremias, foi poupado do cativeiro e, para não sofrer represálias dos judeus que ficaram na cidade, fugiu para o Egito, junto com parentes e amigos. O apóstolo Paulo também, em certa ocasião, se expressou aos cristãos de Corinto numa linguagem similar: “Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho! (1 Cor 9:16)” O desabafo de Paulo tem o mesmo sentido do texto de Jeremias.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo os adverte os cristãos romanos a pensar de acordo com a lógica divina, quando diz: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus.” Para distinguir o que é da vontade de Deus, é necessário ultrapassar o modo de pensar de acordo com o mundo, renovar-se espiritualmente, oferecendo-se como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, seguindo as palavras de Paulo. O Papa Francisco, na alocução que fez neste domingo aos peregrinos, na Praça de São Pedro, por ocasião do Angelus do meio dia, com seu estilo bem informal e com a linguagem coloquial que lhe é peculiar, assim resumiu esse tema da liturgia de hoje: “Somos chamados a não nos deixarmos absorver pela visão deste mundo, mas a estar cada vez mais conscientes da necessidade e do empenho dos cristãos de avançarem contracorrente e à margem. Neste paradoxo está contida a regra de ouro que Deus inscreveu na natureza humana criada em Cristo : a regra de que só o amor dá sentido e felicidade à vida. Gastar os seus talentos, energias e o seu tempo só para se salvar, se proteger e se realizar a si mesmo, conduz, na verdade, a perder-se, quer dizer, a uma existência triste e estéril. Se, pelo contrário, vivemos para o Senhor e fundamentamos a nossa vida sobre o amor, como fez Jesus, podemos saborear a autêntica alegria e a nossa vida não será estéril, pelo contrário, ela será fecunda. ”. (apud Zenit, revista eletrônica desta data – www.zenit.org). Achei interessante o Papa fazer esse paradoxo entre a lógica mundana e a lógica divina, porque viver no mundo, mas, ao mesmo tempo, pensar com os pensamentos de Deus, esse é o desafio que se coloca, a cada dia, para os cristãos.

No evangelho deste domingo (Mateus 16, 21-17), encontramos uma repreensão dura de Cristo a Pedro, chamando-o de “satanás”. Acerca desse vocábulo, é interessante notar que é uma palavra transliterada diretamente do hebraico para o grego, passando daí para o latim e para o português. Na língua hebraica, “satan” (סתן) significa o acusador, relacionada etimologicamente com a raiz verbal do verbo hostilizar, acusar, denunciar. É interessante ainda observar que, na tradução grega, o vocábulo “satanás” é utilizado para designar adversários entre seres humanos, pois quando o adversário é um ser sobrenatural (por ex: anjo mau), a palavra usada é “diábolos”. No latim, as duas palavras ficaram sinônimas (satanás e diábolos), passando assim para o português. Essa explicação é necessária para compreendermos que, quando Jesus chamou Pedro de “satanás”, nada tem a ver com o demônio, o capeta, aquele ser horripilante que os artistas medievais pintaram com chifres e com rabo, segurando o tridente. Esse é o arquétipo comum na nossa cultura, por isso, é a primeira imagem que nos acode à mente diante dessa palavra. No entanto, essa explicação também não retira a dureza da repreensão de Cristo a Pedro: sai pra lá, inimigo meu, és um escândalo para mim... é mais ou menos nesse sentido que deve ser entendido o “carão” de Jesus.

Convém destacar também nesse contexto o sentido da palavra “escândalo”, que não tem semelhança com o significado comum em português. Em grego, a palavra original é “skandalou”, que significa cilada, obstáculo, traição. No sentido dos evangelhos, escândalo significa algo que faz fraquejar a fé, como se fosse um mau exemplo dado por alguém. Na tradução oficial da CNBB, essa palavra foi traduzida como “pedra de tropeço”, isto é, algo que impede de atingir um objetivo. Foi exatamente isso que Jesus sentiu quando Pedro disse: “Deus te livre, Mestre, isso nunca vai te acontecer”. Ora, nós sabemos que Jesus, enquanto homem, sofreu muito diante da expectativa da paixão, porque enquanto Deus ele sabia de tudo o que iria acontecer, mas sendo homem, ele teria que sofrer de verdade tudo aquilo, e isso o deixava angustiado. Foi por isso que ele chegou a dizer “Pai, afasta de mim esse cálice”, foi por isso que ele suou sangue no Horto das Oliveiras. Então, aquela intervenção de Pedro, com a melhor intenção de proteger o Mestre, funcionou para ele como um desestímulo sob o aspecto humano, de modo que a repreensão forte sobre Pedro foi também uma forma de demonstrar para os demais que não deveriam “se meter” naquele assunto. Jesus estava comunicando antecipadamente ao seu grupo de discípulos o que iria acontecer, mesmo que eles não entendessem aquilo, para que eles soubessem e não fossem apanhados de surpresa quando tudo acontecesse. Então, Jesus completou: tu (Pedro), dizes isso porque não pensas as coisas de Deus (lógica divina), mas pensas as coisas dos homens (lógica mundana).

Vemos assim, meus amigos, claramente nessa fala de Jesus, a diferença entre ser escândalo e ser discípulo, entre ser satanás e ser fiel, entre ter pensamentos mundanos e ter pensamentos divinos. Ser satanás é ser escândalo, isto é, ser motivo de fraquejamento na fé das pessoas que nos conhecem. É quando as pessoas dizem assim: fulano(a) vive na Igreja, carrega um terço no pescoço, não perde uma missa e, no entanto, está ali tirando proveito ilícito de uma situação, está faltando com a caridade, está desfazendo com suas ações o discurso que faz com a boca. Precisamos sempre vigiar para que tais situações não aconteçam conosco, porque o mau exemplo praticado por uma pessoa que se declara, e todos conhecem, como “de dentro da Igreja” é muito mais prejudicial do que quando o mesmo comportamento é feito por uma pessoa que assim não se qualifica. É quando alguém se torna em escândalo para o próximo, ou pedra de tropeço para o irmão.

Na sequência desse ensinamento, Jesus pronuncia outra frase que nos foi dita muitas vezes, no nosso período de formação: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. Nessa frase, está descrito, com outras palavras, o mesmo tema da nossa reflexão. Pensar de acordo com o mundo é querer salvar a vida pelas aparências, isso vai acarretar a sua perda. Pensar diferente do mundo é, aparentemente, perder a vida, mas só assim o verdadeiro discípulo de Cristo vai encontrá-la. E a promessa de Cristo é bastante alentadora: “o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”. (Mt 16, 27).

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