COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO
COMUM – A LÓGICA DE DEUS – 03.09.2017
Caros Leitores,
Neste 22º domingo comum, a liturgia
nos põe diante do desafio de abandonar o modo de pensar de acordo
com o mundo (lógica mundana) e aprender a pensar de acordo com o que
é divino (lógica de Deus). A repreensão que Jesus faz a Pedro, que
não compreendeu sua descrição da futura paixão pela qual teria de
passar, nos adverte a buscar compreender os pensamentos de Deus,
conforme ensinou o profeta Isaías (55, 8): “os meus pensamentos
não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus
caminhos.”
Na primeira leitura, do livro do
profeta Jeremias (Jr 20, 7-9), vemo-lo se debatendo entre o dilema de
profetizar e ser alvo de zombarias ou de abandonar a proferia e se
livrar. Javeh fá-lo compreender que, mesmo sofrendo chacotas e
pilhérias, ele deve continuar a sua missão de profetizar. Para
associar com o contexto histórico, Jeremias profetizou no período
que antecedeu a destruição de Jerusalém pelos babilônios, um
período histórico bastante conturbado do povo de Israel, cujo rei
Ezequias e cujos sacerdotes praticavam a ganância e a idolatria e
desrespeitavam Javeh. O profeta Jeremias, por diversas vezes, chamou
a atenção das autoridades para esses desmandos, ameaçando que
Javeh seria muito rigoroso para com eles, no entanto, eles riam do
Profeta e levavam-no na brincadeira. Foi quando Jeremias escreveu:
“Todas
as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e
invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte
de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: ‘Não quero
mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”. Senti, então,
dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo; desfaleci,
sem forças para suportar.”
(Jr 20, 8-9) Percebemos nesse depoimento do Profeta que, quando ele
quis optar pelo modo de pensar mundano, esquecendo a profecia, Javeh
lhe mostrou que ele devia continuar seguindo a lógica de Deus,
profetizando. Assim foi até que vieram os inimigos, destruíram a
cidade de Jerusalém e levaram os habitantes como cativos. Ele,
Jeremias, foi poupado do cativeiro e, para não sofrer represálias
dos judeus que ficaram na cidade, fugiu para o Egito, junto com
parentes e amigos. O apóstolo Paulo também, em certa ocasião, se
expressou aos cristãos de Corinto numa linguagem similar: “Porque,
se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é
imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho!
(1
Cor 9:16)” O
desabafo de Paulo tem o mesmo sentido do texto de Jeremias.
Na segunda leitura, extraída da carta
aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo os adverte os cristãos romanos a
pensar de
acordo com a lógica
divina, quando diz: “Não
vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa
maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é
da vontade de Deus.”
Para distinguir o que é da vontade de Deus, é necessário
ultrapassar o modo de pensar de acordo com o mundo, renovar-se
espiritualmente, oferecendo-se como sacrifício vivo, santo e
agradável a Deus, seguindo
as palavras de Paulo. O Papa Francisco, na alocução que fez neste
domingo aos peregrinos, na Praça de São Pedro, por ocasião do
Angelus do meio dia, com seu estilo bem informal e com a
linguagem coloquial que lhe é peculiar, assim resumiu esse tema da
liturgia de hoje: “Somos chamados a não nos deixarmos absorver
pela visão deste mundo, mas a estar cada vez mais conscientes da
necessidade e do empenho dos cristãos de avançarem contracorrente e
à margem. Neste paradoxo está contida a regra de ouro que Deus
inscreveu na natureza humana criada em Cristo : a regra de que
só o amor dá sentido e felicidade à vida. Gastar os seus talentos,
energias e o seu tempo só para se salvar, se proteger e se realizar
a si mesmo, conduz, na verdade, a perder-se, quer dizer, a uma
existência triste e estéril. Se, pelo contrário, vivemos para o
Senhor e fundamentamos a nossa vida sobre o amor, como fez Jesus,
podemos saborear a autêntica alegria e a nossa vida não será
estéril, pelo contrário, ela será fecunda. ”. (apud Zenit,
revista eletrônica desta data – www.zenit.org).
Achei interessante o Papa fazer esse paradoxo entre a lógica mundana
e a lógica divina, porque viver no mundo, mas, ao mesmo tempo,
pensar com os pensamentos de Deus, esse é o desafio que se coloca, a
cada dia, para os cristãos.
No evangelho deste domingo (Mateus 16,
21-17), encontramos uma repreensão dura de Cristo a Pedro,
chamando-o de “satanás”. Acerca desse vocábulo, é interessante
notar que é uma palavra transliterada diretamente do hebraico para o
grego, passando daí para o latim e para o português. Na língua
hebraica, “satan” (סתן)
significa o acusador, relacionada etimologicamente com a raiz verbal
do verbo hostilizar, acusar, denunciar. É interessante ainda
observar que, na tradução grega, o vocábulo “satanás” é
utilizado para designar adversários entre seres humanos, pois quando
o adversário é um ser sobrenatural (por ex: anjo mau), a palavra
usada é “diábolos”. No latim, as duas palavras ficaram
sinônimas (satanás e diábolos), passando assim para o português.
Essa explicação é necessária para compreendermos que, quando
Jesus chamou Pedro de “satanás”, nada tem a ver com o demônio,
o capeta, aquele ser horripilante que os artistas medievais pintaram
com chifres e com rabo, segurando o tridente. Esse é o arquétipo
comum na nossa cultura, por isso, é a primeira imagem que nos acode
à mente diante dessa palavra. No entanto, essa explicação também
não retira a dureza da repreensão de Cristo a Pedro: sai pra lá,
inimigo meu, és um escândalo para mim... é mais ou menos nesse
sentido que deve ser entendido o “carão” de Jesus.
Convém destacar também nesse contexto
o sentido da palavra “escândalo”, que não tem semelhança com o
significado comum em português. Em grego, a palavra original é
“skandalou”, que significa cilada, obstáculo, traição. No
sentido dos evangelhos, escândalo significa algo que faz fraquejar a
fé, como se fosse um mau exemplo dado por alguém. Na tradução
oficial da CNBB, essa palavra foi traduzida como “pedra de
tropeço”, isto é, algo que impede de atingir um objetivo. Foi
exatamente isso que Jesus sentiu quando Pedro disse: “Deus te
livre, Mestre, isso nunca vai te acontecer”. Ora, nós sabemos que
Jesus, enquanto homem, sofreu muito diante da expectativa da paixão,
porque enquanto Deus ele sabia de tudo o que iria acontecer, mas
sendo homem, ele teria que sofrer de verdade tudo aquilo, e isso o
deixava angustiado. Foi por isso que ele chegou a dizer “Pai,
afasta de mim esse cálice”, foi por isso que ele suou sangue no
Horto das Oliveiras. Então, aquela intervenção de Pedro, com a
melhor intenção de proteger o Mestre, funcionou para ele como um
desestímulo sob o aspecto humano, de modo que a repreensão forte
sobre Pedro foi também uma forma de demonstrar para os demais que
não deveriam “se meter” naquele assunto. Jesus estava
comunicando antecipadamente ao seu grupo de discípulos o que iria
acontecer, mesmo que eles não entendessem aquilo, para que eles
soubessem e não fossem apanhados de surpresa quando tudo
acontecesse. Então, Jesus completou: tu (Pedro), dizes isso porque
não pensas as coisas de Deus (lógica divina), mas pensas as coisas
dos homens (lógica mundana).
Vemos assim, meus amigos, claramente
nessa fala de Jesus, a diferença entre ser escândalo e ser
discípulo, entre ser satanás e ser fiel, entre ter pensamentos
mundanos e ter pensamentos divinos. Ser satanás é ser escândalo,
isto é, ser motivo de fraquejamento na fé das pessoas que nos
conhecem. É quando as pessoas dizem assim: fulano(a) vive na Igreja,
carrega um terço no pescoço, não perde uma missa e, no entanto,
está ali tirando proveito ilícito de uma situação, está faltando
com a caridade, está desfazendo com suas ações o discurso que faz
com a boca. Precisamos sempre vigiar para que tais situações não
aconteçam conosco, porque o mau exemplo praticado por uma pessoa que
se declara, e todos conhecem, como “de dentro da Igreja” é muito
mais prejudicial do que quando o mesmo comportamento é feito por uma
pessoa que assim não se qualifica. É quando alguém se torna em
escândalo para o próximo, ou pedra de tropeço para o irmão.
Na sequência desse ensinamento, Jesus
pronuncia outra frase que nos foi dita muitas vezes, no nosso período
de formação: “quem
quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por
causa de mim, vai encontrá-la”.
Nessa frase, está descrito, com outras palavras, o mesmo tema da
nossa reflexão. Pensar de acordo com o mundo é querer salvar a vida
pelas aparências, isso vai acarretar a sua perda. Pensar diferente
do mundo é, aparentemente, perder a vida, mas só assim o verdadeiro
discípulo de Cristo vai encontrá-la. E a promessa de Cristo é
bastante alentadora: “o
Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e
então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”.
(Mt 16, 27).
****
Nenhum comentário:
Postar um comentário