domingo, 17 de setembro de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 24º DOMINGO COMUM - PERDÃO SEM RANCOR - 17.09.2017

COMENTÁRIO LITURGICO – 24º DOMINGO COMUM – PERDÃO SEM RANCOR - 17.09.2017

Caros Leitores,

Preliminarmente, quero fazer um registro histórico significativo para todos nós. Nesta data, comemora-se a festa litúrgica da “impressão das chagas” em São Francisco, isto é, o dia em que ele recebeu as chagas de Cristo no seu corpo. De acordo com a tradição, São Francisco rezava com muito fervor em alta madrugada diante da cruz e, de repente, um serafim desceu do céu, retirou uma brasa do fogo que ardia no altar e com ela cravou na carne dele os mesmos sinais da crucificação de Jesus, o que lhe causou grande dor física, da qual ele padeceria até o final da vida. Hoje também foi comemorado o aniversário jubilar (50 anos) de ordenação dos Freis Dom Geraldo, Gilberto e Nazário.

Passando ao tema das leituras litúrgicas do domingo, a mensagem central aborda o problema da raiva e do rancor, associados com a misericórdia e com a reconciliação. A primeira leitura, retirada do Eclesiástico (ou Ben Sirac, na tradição hebraica – Eclo 28, 1-9) é de extrema e coerente sabedoria: O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las. Perdoa a injustiça cometida por teu próximo, assim, quando orares, teus pecados serão perdoados. Ora, se alguém não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados?  Se ele, que é um mortal, guarda rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? (Eclo 28,4-5). Vemos aqui, meus amigos, que a liturgia está prosseguindo na mesma temática do domingo anterior, quando trouxe a mensagem sobre a correção fraterna. Tal como aquela, esta do perdão é também uma das coisas mais difíceis de se fazer na prática, mas esse é o mandamento. Como diz Paulo, apóstolo, neste mesmo sentido (embora não seja uma das leituras de hoje): amar os amigos é muito fácil, mas devemos amar os inimigos. Existem algumas atitudes dos nossos semelhantes que doem muito profundamente em nós, sobretudo a maledicência, a injúria, a ingratidão, doem mais do que uma alfinetada. A vontade que se tem é de nunca mais olhar na cara da pessoa que faz isso. Mas exorta o Eclesiástico (38, 8-9): Pensa nos mandamentos, persevera nos mandamentos e não guardes rancor ao teu próximo. Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia!

Certa vez, eu li no nosso livro de exercicios latinos (G. Zenoni) um fato pitoresco da vida de Sócrates, que me vem agora à mente. A esposa de Sócrates chamava-se Xantipa, era uma mulher inconveniente, muito grosseira, faladeira, tratava mal o marido, os amigos se admiravam da paciência com que Sócrates suportava tudo isso. Aos que perguntavam a ele por que não a deixava, Sócrates respondia: com ela, eu exercito todos os dias a tolerância e aprendo a ser tolerante com os outros. Na minha interpretação, o exercício da tolerância, no caso de Sócrates, é o exercício do perdão. É aquilo que nós rezamos todos os dias no Pai Nosso - perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos os que nos ofenderam – fácil de dizer, mas nada fácil de praticar.

Tem também a esse propósito a história de um homem que comprava jornais todos os dias de um jornaleiro que o atendia rispidamente, mas ele sempre sorria e o cumprimentava com cortesia. Um amigo perguntou porque ele não retribuía a grosseria do jornaleiro na mesma medida, então ele respondeu: porque não quero que ele decida como eu devo me comportar, quem decide o meu comportamento sou eu. Se eu retribuir a grosseria dele, estarei deixando que ele decida por mim; sendo gentil, eu estou no comando da minha decisão. Isso é algo fácil de fazer? Por certo que não. Mas é isso que a sabedoria hebraica nos ensina e o que Cristo referenda na leitura do evangelho, que comentarei a seguir. Se há pessoas que praticam a tolerância por motivos humanitários, muito mais nós cristãos temos, além do humanitarismo, a motivação do mandamento que manda perdoar.

Na perspectiva científica contemporânea, os psicólogos recomendam uma espécie de terapia do perdão. Antes de ser uma virtude religiosa ou moral, perdoar é um ato terapêutico, faz bem à alma e alegra a vida de quem perdoa, aliviando as tensões e dissolvendo a ansiedade. Perdoar não é amnésia, simplesmente esquecer, aliás, o esquecimento de certas ofensas é, pode-se dizer, impossível. O legítimo perdão se alcança quando você consegue se lembrar da ofensa, sem que aquilo lhe oprima o espírito. O exercício do perdão é uma necessidade da alma, para que não venhamos a adoecer física e psicologicamente. E, muito diferente do que se pensa, perdoar não é atitude de pessoas fracas, ao contrário, exige extrema fortaleza de espírito, sendo necessário ter muita maturidade e autocontrole para exercê-lo. Ora, se essa atitude de perdoar é recomendada até mesmo fora do ambiente religioso, fundada no objetivo de viver melhor, tanto mais quando o ato do perdão se associa com a fé religiosa. O cristão que não consegue superar a ânsia da vingança e busca, de todos os modos, se vingar do ofensor não está sendo fiel ao ensinamento de Cristo.

É isso que ele reforça na leitura do evangelho de hoje (Mt 18, 21-35). Em certa ocasião, Pedro, que devia encontrar-se atormentado com ofensas de alguém, pergunta a Jesus Cristo: Mestre, quantas vezes devo perdoar o meu irmão que peca contra mim, sete vezes? Pedro já devia achar que estava sendo bastante tolerante ao perdoar sete vezes. Ocorre que Jesus Cristo respondeu de forma inesperada para ele: não apenas sete, mas 70 x 7. Mostrando o seu conhecimento da Torah, Cristo repetiu a regra que consta em Gênesis 4, 24, quando Lamech, filho de Caim, tendo matado um homem que o ofendera, comentara com suas mulheres Ada e Zilá: Caim será castigado sete vezes, mas Lamech, setenta vezes sete. Os exegetas interpretam esse número (70 x 7) como sendo o símbolo do infinito. O número 7, interpretado dentro da numerologia bíblica, tem uma relação com a plenitude, sendo considerado o número perfeito. A criação do mundo em 7 dias indica que este é um número da preferência de Javeh. No cristianismo primitivo, a associação da Trindade (Pai, Filho, Espírito Santo) com os pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste) indica o sete como a soma do 3 da Trindade com o 4 dos pontos cardeais, conferindo-lhe o status de número prefeito. Daí que, quando Pedro indaga sobre “perdoar sete vezes” estaria talvez referindo-se a uma quantidade que simbolizaria o máximo. Mas quando Cristo responde que o perdão deve ser conferido setenta vezes sete vezes, está querendo potencializar fortemente esse número 7, que já era em si muito grande, isto é, deve-se perdoar infinitas vezes.

E, em seguida, Jesus Cristo complementa a lição com a história do devedor que teve uma grande dívida perdoada pelo patrão, mas daí a pouco, quando ele encontrou alguém que lhe devia poucas moedas, agiu de modo intolerante e não foi capaz de passar adiante o perdão que havia recebido. O patrão mandou chamá-lo e retirou o perdão que havia dado, exigindo o pagamento de toda a dívida. Vale lembrar que, na época de Jesus, o devedor que não tivesse como quitar sua dívida se tornava escravo do credor, que podia até vendê-lo no mercado para resgatar o seu crédito. E se a dívida fosse tão grande que apenas a venda do devedor não fosse suficiente, o credor podia vender também a esposa, os filhos, os bens do devedor, o que fosse bastante para cobrir a dívida. Daí porque, no texto antigo do Pai Nosso (ainda é assim no texto latino) a expressão era: perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos os nossos devedores. Ser devedor insolvente era condição que levava alguém à escravidão. E Jesus arremata o discurso de um modo fulminante: é assim que o vosso Pai agirá convosco, se não perdoardes de coração o vosso irmão. Vejam bem, não basta perdoar simplesmente, tem de ser perdão de coração.

Meus amigos, como isso é difícil, mas este é o mandamento. No sermão da missa paroquial, o celebrante disse algo muito interessante: devemos ser misericordiosos com o próximo não porque o próximo mereça isso, mas porque Deus é misericordioso conosco. Se nós recebemos misericórdia sem merecer, devemos praticar também a misericórdia com quem não a merece. Este é o desafio que Cristo coloca para nós neste domingo. É a mesma mensagem que o São Francisco ensinava com outras palavras: ninguém deve esperar ser perdoado para, só então, dar o perdão, pois é perdoando que se é perdoado. Sigamos o seu exemplo.

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