COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DO ADVENTO – JESUS FILHO DE DAVI – 24.12.2017
Caros Leitores,
Neste quarto domingo do Advento, a
liturgia mostra a ascendência genealógica de Jesus como filho de
Davi, destacando que José e Maria são descendentes de Davi. Ou
seja, Jesus é filho de Davi seja pelo lado paterno (adotivo) de
José, seja pelo lado materno biológico de Maria. Os numerólogos
bíblicos fizeram as contas da sequência de gerações e observaram
que, desde Abraão até Davi, contam-se 14 gerações; de Davi ao
cativeiro da Babilônia são outras 14 gerações e do cativeiro da
Babilônia até o nascimento de Jesus são mais 14 gerações. (Ver
evangelho de Mateus, 1, 1-17). O rei Davi representa o apogeu do
desenvolvimento material do povo hebreu; o cativeiro da Babilônia
representa a pior catástrofe étnica, o auge da destruição; o
nascimento de Jesus representa, nessa linha de raciocínio, o novo
apogeu com o cumprimento da promessa de Javé. Davi e Jesus
significam, portanto, os pontos mais significativos da história do
povo de Deus, daí a importância de se demonstrar que Jesus era um
descendente de Davi.
Na primeira leitura, do segundo livro
de Samuel (2Sm 7, 1-16), lemos a profecia de Natan acerca do filho de
Davi, que reinaria para sempre, sendo confirmado na realeza.
Historicamente, este filho de Davi foi Salomão, responsável pela
construção do templo e famoso por sua legendária sabedoria. No
sentido transistórico, aproveitando o cálculo genealógico das
gerações anteriores a Jesus, explicado por Mateus, o filho de Davi
confirmado perenemente na realeza é Jesus Cristo. A insistência do
evangelista em ressaltar a descendência de Jesus da linhagem de Davi
tem por objetivo interligar o nascimento de Cristo com a promessa de
Javeh aos antigos patriarcas, fundamentando assim a fé no Messias
salvador prometido pelas escrituras. O rei Davi queria construir uma
casa digna para o Senhor, um templo suntuoso, mais do que o palácio
onde ele, o rei, morava. No entanto, através do profeta Natan, Javeh
fez ver a Davi que essa honra não seria dele, mas de um filho dele.
Então, o filho próximo dele, Salomão, edificou o famoso templo,
que se tornou referência para muitas gerações, alcançando até o
tempo de Jesus. E o filho longínquo de Davi, Jesus, erigiu a sua
igreja como templo vivo, não mais de tijolo e pedras, mas presente
no coração dos que nele creem. Quando chegou a plenitude dos
tempos, a promessa de Javé foi cumprida também de forma plena.
Na segunda leitura, retirada da carta
aos Romanos (Rm 16, 25-27), o apóstolo Paulo enfatiza esse mistério,
que ficara escondido ao longo dos tempos, mas que então fora
revelado, por meio de Jesus Cristo. “Este
mistério foi manifestado e, mediante as Escrituras proféticas,
conforme determinação do Deus eterno, foi levado ao conhecimento de
todas as nações, para trazê-las à obediência da fé.”
O mistério referido por Paulo é exatamente este do cumprimento
definitivo da antiga promessa, através de um descendente da linhagem
de Davi. Diferentemente do próprio rei Davi, cujo poder se dirigia e
se limitava ao povo hebreu, o poder deste filho de Davi se estende a
todas as nações. Portanto, o mistério que Cristo veio revelar foi
de que aquela promessa feita por Javeh aos antigos patriarcas não
tinha seus limites atrelados a um determinado local geográfico nem a
uma etnia específica, mas todos os povos são os destinatários
dela, o seu alcance se estende a todas as nações.
O evangelho de Lucas (Lc 1, 26-38) é
também enfático em afirmar que José era descendente de Davi. Não
podendo afirmar que José gerou Jesus, como está escrito nas
genealogias anteriores, o evangelista refere que José era da família
de Davi e era esposo de Maria, a mãe de Jesus. “Eis
que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de
Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o
Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para
sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim'
” (Lc 1, 31). Observemos que José era pai adotivo de Jesus, porém
mesmo sem ser filho biológico, Jesus era herdeiro legal de José,
portanto, herdeiro da tradição de Davi. A escritura não menciona
diretamente que Maria era descendente de Davi. Existe um testemunho
de Santo Irineu, que viveu nos primeiros séculos do cristianismo, de
que Maria também era da linhagem de Davi, portanto, isso é atestado
apenas pela tradição, não consta nos relatos dos evangelistas.
Talvez fosse até mais fácil de fundamentar a descendência de Jesus
em relação a Davi através da análise de genealogia de Maria.
Contudo, naquela época em que prevalecia a linhagem masculina, para
evitar quaisquer dúvidas acerca da validade da profecia, se por
acaso ficasse demonstrada apenas a descendência pelo lado feminino,
os evangelistas destacam sempre a descendência pelo lado de José,
deixando de considerar a genealogia de Jesus pelo lado de Maria. Daí
porque tal referência só está presente na tradição.
Interessante nesse contexto é observar
a forma como a revelação divina foi dada a Maria, diferente do modo
tradicional em que isso acontecia. De acordo com a tradição
judaica, as mensagens proféticas eram reveladas por Javeh aos seus
escolhidos através de sonhos, portanto, quando eles não estavam
despertos. Porém, no caso de Maria, ela não apenas estava desperta,
mas chegou a dialogar com o anjo e expor suas dúvidas, ao que o anjo
respondeu e a tranquilizou. O caso do sonho de José é um desses
exemplos de revelação recebida em sonho. Outro caso também
relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma
“ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a
perseguição de Herodes, através de outro sonho. Com base nessa
análise, pode-se afirmar que a revelação a Maria teve uma
característica totalmente peculiar, fora do padrão em que isso
costumava acontecer. Certamente, porque o evento que esta revelação
abordava não era apenas uma intervenção de Javeh na história dos
homens, mas a autêntica redenção prometida, a intervenção última
e definitiva. Com bastante probabilidade, o diálogo de Maria com o
anjo foi bem mais demorado e detalhado do que a narração bíblica
apresenta. Maria era muito jovem e estava no início de sua vida
adulta, ainda não começara sua coabitação com José. Muito
provavelmente, o anjo também explicou a ela que aquele filho lhe
traria muitas alegrias e também muitos sofrimentos, talvez o anjo
tenha mesmo antecipado a sua morte cruel, como parte do plano da
salvação. Era necessário que ela ficasse bastante segura do que
estava por acontecer, para que ela finalmente concordasse ou não. E
obviamente a gestação não teria iniciado, caso ela tivesse
recusado. Daí a importância do “sim” de Maria, porque naquele
momento, ela mesmo sabendo antecipadamente dos atrozes sofrimentos
que iria suportar futuramente, ainda assim colocou-se submissa à
vontade de Deus: ciente, de acordo, faça-se conforme a tua palavra.
E o anjo retirou-se.
Meus amigos, a concordância de Maria é
um ato de generosidade, de incomparável grandeza. A missão que cada
um de nós recebe nessa vida, ou seja, aquilo que outra passagem do
evangelho chama com o nome de “talentos”, é um desafio que
depende também da nossa generosidade. Generosidade para aceitar e
disponibilidade para executar. A preparação do Natal exalta essa
virtude de Maria, que é a generosidade. “A
generosidade é a capacidade de dar com desapego, onde o amor ganha
do egoísmo. É na entrega generosa que fazemos de nós mesmos que se
mostra a profundidade de um amor que não fica somente nas palavras.
É isso que celebramos no natal: o gesto generoso de Maria em aceitar
ser a mãe de Deus e o gesto generoso de Deus que se dá a si mesmo,
para a redenção da humanidade.” A generosidade é o
antídoto do egoísmo, é uma atitude por demais sugestiva para os
nossos tempos, em que o individualismo e o isolamento são uma marca
característica da nossa sociedade, sobretudo com a massificação do
uso da tecnologia da comunicação. Contraditoriamente, aquilo que
deveria nos unir mais é justamente aquilo que contribui para nos
afastar mais uns dos outros. A lição da generosidade de Maria
continua, portanto, eloquente e atual, merecendo fazer parte das
nossas reflexões e dos propósitos de melhoria de vida, que todos
nós devemos fazer nesse tempo de preparação para o nascimento de
Jesus.
Ao ensejo, formulo a todos sinceros votos
de Feliz Natal.
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