COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO
DO ADVENTO – O PRECUSSOR – 10.12.2017
Caros Leitores,
Neste segundo domingo do advento, a
liturgia destaca o tema da consolação, através da palavra de
conforto do profeta Isaías ao povo no cativeiro, informando que o
tempo do castigo terminou, é hora de preparar o retorno a Jerusalém.
O tempo litúrgico do advento nos convida a essa preparação do
espírito não para a volta do exílio, mas para a chegada daquele
que vem. O evangelho de Marcos destaca a importância do papel de
João, o Precussor, conclamando o povo para o batismo da conversão,
em preparação da chegada daquele que haveria de vir. Os temas da
primeira e da terceira leituras se coordenam perfeitamente, repetindo
a mensagem do pregador do deserto, profetizado por Isaías.
A primeira leitura retirada do profeta
Isaías (Is 40, 1-11) nos convida a vivenciar o tempo do advento na
alegria da espera da nossa libertação: “Preparai
no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a estrada de
nosso Deus. Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e
colinas; endireite-se o que é torto e alisem-se as asperezas.”
Esse trecho é bastante conhecido, porque ele foi retomado por João
Batista, quando pregava o batismo de penitência, nas margens do rio
Jordão. O apelo do profeta e do precursor continua ressoando nos
nossos dias, quando a liturgia nos põe outra vez no início da
trajetória da história da nossa salvação, com a expectativa da
vinda do Salvador. O profeta Isaías é aquele que melhor antecipou
os acontecimentos relacionados com a chegada do Messias, o
Libertador: “eis
que o Senhor Deus vem com poder, seu braço tudo domina: eis, com
ele, sua conquista, eis à sua frente a vitória.”
Embora a mensagem do Profeta se referisse, no contexto imediato, ao
final do cativeiro da Babilônia, na perspectiva transistórica, a
mensagem de consolação e de libertação se prolonga nos nossos
dias, visto que a salvação prometida não é ato de um dia só, mas
um processo continuo de aperfeiçoamento da humanidade, em busca de
novos céus e de nova terra.
Esse conceito de “novos céus e nova
terra” está na segunda carta de Pedro, lida na liturgia de hoje
(2Pd 3, 8-14). Como todos sabemos, Pedro não era nenhum intelectual,
pois fora criado à margem do Lago de Genesaré, onde se dedicava ao
ofício da pesca profissional, quando recebeu o chamado de Jesus.
Estima-se que as cartas de Pedro foram escritas por Marcos, que era
discípulo dele e o acompanhava. Diferentemente de Paulo, que
escrevia aos gentios, isto é, aos povos que não conheciam a
tradição judaica, Pedro escrevia para uma comunidade de Judeus, daí
porque ele não precisava explicar muitas coisas, que os seus
leitores já conheciam. No trecho dessa leitura, Pedro repete duas
imagens que são recorrentes nos evangelhos sinóticos: o dia do
Senhor virá como um ladrão e o cataclismo da precipitação dos
céus para a terra, causando um grande incêndio que destruirá tudo.
Devemos nos lembrar também que as cartas de Pedro foram escritas bem
antes dos evangelhos, portanto, não se pode dizer que ele copiou
esse assunto da leitura dos evangelhos, mas sim, o oposto, isto é,
Pedro referiu-se a esses por primeiro.
Já tive oportunidade de me manifestar
acerca desses eventos escatológicos desastrosos, em comentários
anteriores, não sendo o caso de retomá-los aqui. Nesse contexto,
importa destacar que Pedro se refere à promessa divina de que, no
futuro, surgirão novos céus e nova terra, onde habitará a justiça.
Pode-se deduzir, então, que essa imagem da destruição não deve
ser compreendida no sentido físico, geocósmico, mas no sentido da
destruição do pecado e da injustiça, para cederem lugar à justiça
que vem de Deus. É interessante observarmos o uso do termo no
plural: “novos céus” (no original grego, kainoús dé ouranoús),
enquanto “terra” está no singular. Isso deve significar que
Pedro acreditava na tradição judaica acerca da existência de sete
céus (o primeiro, chamado Vilon, seria o local onde originalmente
moravam Adão e Eva, de onde eles “caíram” para a terra; a este
primeiro, seguiam-se outros até chegar ao sétimo céu, que seria
propriamente a morada de Deus). Dessa concepção, parte a ideia de
que os céus “cairão” sobre a terra, porque essa era a noção
geográfica daquela época. Visto que Pedro escrevia aos judeus, ele
não precisava explicar com detalhes o que seriam esses céus, que
seriam renovados. Referindo-se à terra (no original grego, gen
kainen), aparece outra vez o adjetivo “kainos”, que significa
algo inédito, extraordinário, nunca visto antes. Ou seja, a
tradução de ‘kainos’ por “novo” em português não indica
toda a força que a palavra grega possui. Assim, os novos céus e a
nova terra representam a ideia de um processo de depuração, de
purificação, não sendo simplesmente uma coisa que vem substituir
outra, assim como nós passamos a usar um novo sapato e jogamos o
outro no lixo. O novo tem aqui o sentido da renovação plena, de
tomar algo que está velho e fazê-lo tornar-se novo outra vez. E
acerca dos “sete” céus, esse conceito continua vigente no talmud
judaico e significa uma espécie de local físico, embora muito
elevado, porém não é compatível com o conceito de céu presente
na doutrina teológica cristã.
Portanto, deixando de lado essa noção
dos sete céus, entendida quase no sentido cosmológico, a mensagem
da carta de Pedro nos incentiva a vivermos na esperança da renovação
prometida,
cuja realização depende também do esforço de cada um de nós:
“vivendo
nessa esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre numa vida
pura e sem mancha e em paz.”
Tal como Paulo fez em suas cartas, Pedro também adverte os cristãos
mais apressados para que tenham paciência para esperar a vinda do
Senhor, pois “para
o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor
não tarda a cumprir sua promessa, como pensam alguns, achando que
demora.”
Percebe-se que tanto nas comunidades dos gentios quando nas
comunidades judaicas, prevalecia uma expectativa de que Jesus
retornaria “em breve”, ou seja, naqueles próximos dias, por isso
tanto Paulo quanto Pedro ensinavam aos cristãos que não deviam ter
pressa nem tentar adivinhar esse dia, mas que cada um permanecesse
fiel e se mantivesse alerta e em prontidão. Passados mais de dois
milênios e considerando a evolução dos conhecimentos científicos
acerca do universo, devemos compreender esses “novos céus e nova
terra” no sentido metafórico teológico e espiritual, de modo que
vivendo nessa “velha” terra o “reino de Deus”, estamos
antecipando pela fé a vida na Jerusalém celeste, servindo como
nosso guia nessa caminhada o evangelho de Cristo.
Na leitura do evangelho de Marcos (Mc
1, 1-8), vemos repetido o mesmo trecho do profeta Isaías, fazendo
expressa referência a João Batista como aquele que foi enviado para
preparar o caminho, quando já estava próxima a chegada histórica
de Cristo. Dizia João Batista: já está no meio de vós aquele que
virá depois de mim. “Depois
de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me
abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água,
mas ele vos batizará com o Espírito Santo”.
Aqui também devemos entender que esse trecho foi escrito muito
depois da época de João, pois João ainda não conhecia a pessoa
divina do Espírito Santo, a qual foi revelada somente algum tempo
depois, nas pregações de Cristo. É verdade que João teve uma
antevisão do Espírito Santo em forma de pomba, por ocasião do
batismo de Cristo por ele, mas isso não significa que ele tivesse
tido uma antecipação da doutrina trinitária, que Jesus iria
explicar aos apóstolos durante sua catequese com eles. A consciência
do seu papel de precursor está bem expressa na metáfora de João
sobre “desamarrar suas sandálias”. João tinha ciência de que a
origem divina de Cristo e a missão que Ele ali iniciaria não tinha
termo de comparação com o seu próprio trabalho. E sabe-se pela
leitura de Mateus (3, 11) que João teria argumentado com Jesus: eu
devo ser batizado por ti, mas tu vens a mim. E Jesus teria
respondido: deixa assim por enquanto. Tudo devia acontecer de acordo
com o plano do Pai e João era um importante personagem nesse plano.
Meus amigos, que nós saibamos,
interpretar com sabedoria a temática bíblica posta diante de nós
pela liturgia do advento, de modo a compreendermos sempre melhor o
significado desse tempo religioso importante, mas que fica em geral
obscurecido pelos apelos comerciais e emocionais relacionados com o
natal da troca de presentes, desviando-nos do verdadeiro sentido do
natal cristão.
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