COMENTÁRIO LITÚRGICO – 10º DOMINGO
COMUM – O PECADO ETERNO – 10.06.2018
Caros Leitores,
Neste décimo domingo comum, a liturgia
traz uma leitura da carta de Paulo aos Coríntios (2Cor 4, 13-5,1),
na qual ele faz uma comparação, utilizando uma imagem que bem
representa a doutrina grega da cisão corpo-espírito, que se tornou
uma marca da teologia cristã. Diz ele: “se a tenda em que moramos
neste mundo for destruída, Deus nos dá uma outra moradia no céu
que não é obra de mãos humanas, mas que é eterna”. A doutrina
judaica sobre a relação corpo-espírito vai muito mais pelo lado da
unidade e integração entre ambos, no entanto, a doutrina grega
prevaleceu na teologia. As outras leituras também trazem temas
interessantes, dos quais destacarei dois para comentar, tomando como
referência o evangelho de Marcos (Mc 3, 20): o pecado eterno e os
irmãos de Jesus.
A narrativa de Marcos tem início com o
evangelista dizendo que Jesus voltou para casa com seus discípulos
(3, 20). É o caso de perguntarmos: que casa? Desde que Jesus iniciou
sua vida de pregador, ele saíra da casa de José e Maria e não
tinha um local onde morar. Provavelmente, seria a casa de algum dos
discípulos ou de algum admirador dele, o narrador não se preocupa
com esse detalhe. E continua dizendo que lá juntou tanta gente que
eles (Jesus e os discípulos) nem sequer podiam comer. A fama de
Jesus atraía a atenção de todos, em qualquer lugar onde ele
chegasse, de modo que causava grande importunação, mas ele não
podia simplesmente mandar o povo embora, pois isso fazia parte da sua
missão. É também interessante observar que se trata de uma das
raras vezes em que o evangelho se refere a uma refeição feita por
Jesus, o que devia ser bastante natural, porque ele como pessoa
humana precisava se alimentar. No entanto, quase sempre essa
particularidade é omitida nas narrativas evangélicas.
Pois bem, os fariseus e Mestres da Lei,
que estavam constantemente vigiando Jesus, o viram expulsando
demônios e, por não acreditarem no seu poder divino, não
encontraram outra forma de justificar, a não ser dizendo que ele
estava possuído por Belzebu e era por isso que Ele conseguia
expulsar os demônios. Esse boato preocupou os parentes de Jesus, que
o procuraram para oferecer-lhe ajuda. Encontraram-no, então, rodeado
pela multidão, enquanto ele argumentava contra os fariseus: como é
que satanás vai expulsar satanás? Como é que o demônio estaria
agindo contra si próprio? A acusação dos Mestres da Lei era
totalmente incoerente, porque se um grupo passa a se digladiar
internamente, será o seu fim. Se numa família, levantar-se irmão
contra irmão, será a desagregação daquela família. Sob o aspecto
humano, social, o boato espalhado pelos fariseus não tinha qualquer
sustentação. Porém, sob o aspecto da fé, a situação era muito
mais grave. Atribuir os milagres de Jesus ao poder do mal significava
ver em Jesus o próprio demônio e isso ele fez questão de
esclarecer, além de reprovar.
Foi nesse contexto que Jesus fez uma
ameaça terrível àqueles incrédulos: (Mc 3, 28) “tudo será
perdoado aos homens, todo pecado e toda blasfêmia, mas quem
blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, será
culpado de um pecado eterno”. Meus amigos, o que significa
blasfemar contra o Espírito Santo? Por que isso é tão grave e
nunca será perdoado? Ora, Jesus sempre afirmou que não agia
sozinho, ele agia sempre como Trindade, em união com o Pai e o
Espírito Santo. Então, dizer que ele estava possuído por um
espírito do mal equivalia a não acreditar no Espírito Santo e,
portanto, não acreditar na Trindade divina. Não acreditar que Jesus
é filho de Deus e age em união com o Espírito Santo, portanto,
negar a Trindade é excluir-se da obra redentora que Jesus veio
realizar. Mais grave do que afirmar que Jesus expulsa os demônios
por obra de Belzebu é a motivação interior de quem faz essa
afirmação, é a recusa de receber a graça divina, é voltar as
costas para o amor de Deus, por isso, é uma atitude imperdoável. E
se a pessoa que assim age não reconsidera seu ponto de vista e
mantém-se na rejeição do perdão, então o seu delito se tornará
eterno, ou seja, eternamente imperdoável. Ora, sendo o mistério da
Trindade o centro da fé cristã, a recusa de aceitar qualquer uma
das pessoas divinas será um daqueles pecados retidos, sem perdão.
Diz ainda Marcos (3, 21) que os
parentes de Jesus saíram em sua defesa para agarrá-lo, porque ele
parecia estar fora de si. Certamente, o discurso de Jesus nessa
ocasião não foi nada tranquilo e sereno, como era de costume, mas
ele deve ter-se exaltado com o maldoso boato espalhado pelos
fariseus. Isso faz lembrar aquele outro memorável acontecimento em
que Ele tomou um chicote e saiu dando surra nos vendedores que
estavam ocupando os espaços do templo, dizendo que a casa do Pai é
casa de oração, não um covil de ladrões. São as duas vezes em
que o evangelho fala de atitudes ríspidas e violentas de Jesus,
exatamente quando a descrença dos judeus se voltava contra a
Trindade. No caso do templo, em relação ao Pai; no caso da expulsão
dos demônios, em relação ao Espírito Santo. Nesses casos, Ele foi
tomado por uma 'santa ira', a ponto de ficar fora de si.
Quando os parentes de Jesus chegaram
onde ele estava, havia tanta gente reunida que eles não conseguiram
se aproximar. Então, mandaram recado pra Ele informando que estavam
ali. É quando o evangelho cita aquela famosa frase que é motivo de
divergência entre católicos e não-católicos há séculos: (Mc 3,
32) “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura.” O
texto latino de S. Jerônimo assim diz: “mater tua e fratres tui
foris quaerunt te”. Todos nós sabemos que 'mater' é mãe e
'fratres' é irmãos, mas comparemos com o texto grego original,
escrito em letras latinas: ê mater auton kai oi adelphoi auton = a
tua mãe e os teus irmãos. Vemos que a tradução latina é literal
do grego. A discussão aqui está no significado do vocábulo
'adelphoi', plural de 'adelphos' que na língua grega significa
“irmão”, tanto no sentido de filho dos mesmos pais, quanto no
sentido de um familiar com parentesco próximo. Esta palavra vem do
radical grego 'adelph', que é comum às palavras relacionadas com
irmandade, fraternidade. Naquela época, era comum que as famílias
congregassem sob o mesmo teto pessoas até o sétimo grau de
parentesco. Comparando com os dias de hoje, seria como se juntassem
as diversas gerações desde o tataravô até o tataraneto, com
respectivos cônjuges e agregados, todos eram tidos como uma família
no sentido mais extenso. Genericamente falando, eram irmãos entre
si. Este é o argumento teológico do catolicismo para justificar que
Jesus é filho unigênito de Deus. Porém, não resolve a questão de
que Maria pode ter tido outros filhos, que não foram concebidos pelo
Espírito Santo, e neste caso, seriam irmãos de Jesus somente pela
'carne', não pelo Espírito. A Igreja Católica Ortodoxa da Síria,
uma das mais antigas do mundo, tem outra explicação para este fato.
Afirma que, ao casar-se com Maria, José era viúvo e tinha seis
filhos de sua esposa anterior, de nome Débora. Os filhos eram:
Thiago, José, Judas, Simão, Sofia e Myrian. Com Maria, porém, José
teve apenas um filho, Jesus. A Igreja Católica Romana não
reverencia essa tradição oriental e não menciona um casamento
anterior de José e, desde os primeiros tempos, sempre afirmou que
Jesus é único filho de Maria. Por outro lado, não há evidências,
nem na história nem na tradição, de que Maria tenha tido outros
filhos, além de Jesus.
Pois bem. A resposta que Jesus deu aos
seus interlocutores, nesse momento, não poderia ser mais
desconcertante: minha mãe? meus irmãos? Quem é minha mãe e quem
são meus irmãos? E diz Marcos (3, 34): olhando para os que estavam
sentados ao seu redor disse: aqui estão minha mãe e meus irmãos...
quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha
mãe. Esta afirmação de Jesus, colocada no contexto do seu
ensinamento, não deve ser entendida no sentido negativo, como se
Jesus estivesse rejeitando os seus familiares, ao contrário. A frase
deve ser vista no sentido positivo, ou seja, Jesus estava afirmando
que aquelas pessoas que o ouviam e aceitavam faziam parte da sua
familia, tanto quanto os seus parentes pelo ramo familiar. Ele estava
colocando no mesmo nível de importância os irmãos da família
humana e os irmãos na fé em sua doutrina. Além de não estar
desprezando seus familiares, Jesus estava elevando os seus seguidores
ao mesmo nível de irmandade que eles. Fazendo um contraponto
dialético com a afirmação anterior de que quem não crê no
Espírito é réu de um pecado eterno, esta nova afirmação de que
'quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha
mãe', é como se Ele estivesse afirmando: quem crê na Trindade está
comigo, transforma-se em meu irmão, minha irmã, minha mãe, meu
familiar, meu parente, é a grande família humana que se reúne em
torno dele.
Meus amigos, nós, os cristãos de
hoje, desfrutamos desse inefável privilégio de sermos considerados
irmãos, irmãs, pai e mãe de Jesus, se cumprirmos o seu mandamento.
Essa é a sua promessa e o resultado só depende de nós.
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