COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO
COMUM – O SÁBADO OU O DESCANSO – 03.06.2018
Caros Confrades,
Terminado o ciclo litúrgico de
comemoração da Páscoa, a catequese eclesial retorna ao tempo
comum, que se prolongará até o Advento. As leituras da liturgia de
hoje centram-se num tema que tem sido objeto de controvérsias entre
diversas comunidades cristãs: a observância do sábado. No século
IV, o Concílio de Niceia colocou um ponto final nessa polêmica para
os católicos, ao escolher o domingo, mas a discussão persiste entre
as diversas igrejas cristãs separadas. Algumas são radicais,
começando a observância do sábado logo no por do sol da sexta
feira, como é o caso dos Adventistas do Sétimo Dia. Outras são
menos rigorosas e outras ainda celebram mesmo o descanso dominical,
assim como o catolicismo. Mas essa questão não é simples.
Temos, na primeira leitura
(Deuteronômio 5, 12), a ordem taxativa de Javeh: “Guarda o dia
de sábado, para o santificares, como o Senhor teu Deus te mandou.
Trabalharás seis dias e neles farás todas as tuas obras. O sétimo
dia é o do sábado, o dia do descanso dedicado ao Senhor teu Deus.
Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem
teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum
de teus animais, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades, para que
assim teu escravo e tua escrava repousem da mesma forma que tu.”
As igrejas cristãs que seguem a interpretação literal da Bíblia
não admitem outra alternativa. De fato, toda a tradição judaica,
dos tempos bíblicos até hoje, observa o descanso sabático. Jesus
observava o sábado, comparecia à sinagoga como todos os judeus,
assim também faziam os apóstolos e as primeiras comunidades
cristãs. Por que, então, mudou-se o dia do descanso semanal para o
domingo, contrariando a determinação de Javeh, observada durante
muitos séculos?
Antes de prosseguir nessa temática, é
conveniente uma breve explicação sobre a palavra hebraica “shabat”,
de onde deriva a palavra ‘sábado’. O sustantivo “shabat” é
formado a partir do verbo hebraico “shavat”, que significa
“parar”, “cessar”. Corresponde ao sétimo dia porque, de
acordo com a narração bíblica, Deus criou o mundo em seis dias e
no dia seguinte ele “parou para descansar”. Obviamente, Deus não
se cansa, essa é apenas uma forma humanizada de nos referirmos à
atividade criadora divina. Assim como também os “seis dias” da
criação não podem ser entendidos como períodos de 24 horas, como
hoje nós consideramos. A palavra “dia”, na narração da criação
está mais relacionada a um conjunto de ações divinas, não a um
certo período de tempo, porque Deus não se limita ao tempo. Pode-se
afirmar que a narrativa bíblica, ao referir-se aos seis dias, está
justificando, perante a sociedade daquele tempo, a necessidade do
descanso corporal, após um certo período de trabalho. Alguns povos
da época adotavam a prática dos dez dias, isto é, nove dias de
trabalho e um de descanso. Para os judeus, a atividade criadora
divina será, então, o parâmetro mais elevado e indiscutível para
se fazer o descanso no sétimo dia. Uma nova cultura estava se
sobrepondo à antiga. Ademais, na cultura judaica, o sete é
considerado o número da perfeição e diversos fatos bíblicos estão
relacionados com ele. Compreende-se assim que a descrição da
criação divina em seis dias funcionou apenas como um motivo a mais
para fortificar a cultura do sete perfeito. Há muitos estudos
técnicos para explicar a numerologia bíblica, de modo que se trata
de um assunto extenso, que não pode ser simplificado em poucas
palavras.
Pois bem. Na religião judaica, além
desse “shabat” semanal, que correspondia ao sétimo dia, há
diversos “shabatot” (plural de shabat) especiais, na comemoração
das datas mais importantes. Por exemplo: antes da Pessach (Páscoa),
antes do Purim, antes do Yom Kipur há vários dias sabáticos, não
relacionados com o sétimo dia. Quando Nicodemos foi pedir a Pilatos
para retirar o corpo de Jesus da cruz, por causa do sábado, não era
por um dia só, mas sim porque na festa da Páscoa, o shabat demorava
sete dias e então o corpo de Jesus entraria em decomposição,
porque não poderia ser retirado enquanto não terminasse o período
sabático. Essas informações são importantes, porque na nossa
cultura, o sábado é apenas um dia de 24 horas, mas na cultura
judaica, podia demorar vários dias, e essa ideia deve ser levada em
conta para entender diversas passagens da Bíblia.
Na leitura do evangelho de Marcos (2,
23), Jesus se confronta com essa tradição sabática, mostrando que
o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado.
Encontrando-se na sinagoga, havia ali um homem com a mão deformada.
Pelo costume judaico, não se podia fazer nada no sábado, nenhum
tipo de atividade. Por isso, os judeus ficaram observando se Jesus
iria operar um milagre no sábado, porque isso seria contrário à
lei. Percebendo isso, Jesus pergunta aos presentes: “É
permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou
deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. Jesus, então, olhou ao
seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e
disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou
curada.” Jesus mostrou que, sendo Filho de Deus, é senhor
também do sábado e que o rigor da lei mosaica devia ser
flexibilizado, porque não é a sua observância simples e literal
que agrada a Deus. Mais uma vez, Jesus mostrou que cumprir a lei não
é observar rigorosamente as suas palavras apenas e que a prática da
caridade no sábado é, não só permitida e louvada, mas também
agradável a Deus. Livrar alguém do sofrimento num dia de sábado
não é ação contrária à lei, nem mesmo sob o ponto de vista
rigoroso com que os judeus a consideravam. Mas eles nunca
compreenderam isso e tiraram conclusão oposta: se Jesus não
observava o sábado, é porque ele não era proveniente de Deus. E
buscavam um modo de eliminá-lo, completa o evangelista.
Conforme dissemos acima, as primeiras
comunidades cristãs continuaram a observar o sábado, comparecendo
às sinagogas, como era o costume de Jesus. Porém, com o
desenvolvimento da doutrina cristã, algumas comunidades passaram a
observar também o “primeiro dia da semana”, ou seja, o que nós
chamamos de “domingo”, em comemoração á ressurreição de
Jesus, que ocorreu no primeiro dia da semana. O sábado era observado
por obrigação, mas o domingo era observado por devoção. Essa
variação era, inclusive, motivo de discussão entre os cristãos
gentios (de origem grega) e os judeus convertidos ao cristianismo.
Além da observância do sábado, os judeus convertidos também
queriam exigir dos cristãos gregos a obrigatoriedade da circuncisão,
uma tradição judaica importante, divergência que deu muito
trabalho para Paulo pacificar. Pode-se afirmar que não foi apenas a
problemática do sábado, mas de um modo geral, dos costumes judaicos
foram, aos poucos, absorvidos e repaginados pelo cristianismo.
A transição da observância do sábado
para o domingo está associada ainda a outro fato histórico
importante. O imperador Constantino, o primeiro a se converter ao
cristianismo e a dar pleno apoio às comunidades cristãs, publicou,
no ano 321 d.C., um edital com os seguintes termos: “Que
todos os juízes,
e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices
descansem no venerável dia do Sol.”
A “cidade”, no caso, era
todo o território romano, ou seja, praticamente, toda a Europa,
Oriente Médio, norte da África, o mundo então conhecido. Havia, em
Roma, uma religião pagã muito seguida, chamada “mitraísmo”,
cuja figura divina central era o Deus-Sol-invicto, que era venerado
no primeiro dia da semana. A palavra “domingo”, em inglês, ainda
conserva essa referência a isso com o título “sunday” (dia do
sol). Em diversos outros idiomas há ainda essa associação. A
língua portuguesa é uma das que não mais conserva a tradição.
Foi nesse contexto que Constantino, após convertido ao cristianismo,
determinou que a natividade de Cristo (Natal) fosse comemorada no dia
do Deus-Sol, 25 de dezembro. Foi uma forma de demonstrar que Jesus
era o novo Deus-Sol da humanidade. A Igreja Católica, aproveitando a
norma estatal de Constantino e considerando aquilo que já era
praticado em grande parte das comunidades cristãs, alguns anos
depois, no Concílio de Niceia, aprovou a permuta da observância do
sábado pelo domingo. Alguém poderá dizer: então, foi o imperador
romano que determinou a mudança. Não exatamente. Tratava-se de um
costume, que já tinha muita adesão no meio cristão a observância
do domingo, então os padres conciliares, aproveitando o fato de ter
a seu favor a norma estatal, aprovaram a transferência do descanso
semanal para o domingo, que passou a ter esse nome “dominica”,
dies Domini, dia do Senhor.
Meus amigos, devemos considerar como o
que de fato importa é o dia do descanso semanal, o dia dedicado ao
Deus criador. Se este dia for o sétimo, ou o primeiro da semana, é
de somenos importância. Apenas numa visão estreita e literal da
Bíblia ainda se continua a bradar contra essa mudança. Mas não
podemos esquecer que “o Filho do Homem é senhor também do
shabat”, isto é, do dia do descanso. Foi o que ele sinalizou, ao
ressuscitar no primeiro dia da semana.
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