COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO
DO TEMPO COMUM – A FORÇA DA GRAÇA – 08.07.2018
Caros Leitores:
A liturgia deste 14º domingo do tempo
comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a
doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá
a todos a sua graça, mas ele respeita a nossa liberdade, não fica
nos puxando pela mão o tempo todo, espera que nós saibamos
construir conscientemente o nosso caminho. A cada um é dada a força
da graça em tamanho suficiente, porém, se cada pessoa não fizer
também a sua parte, a graça por ele recebida restará ineficaz. A
maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por
Cristo. Mas ela só tera efeito naqueles que acreditarem. Pela fé
nele, inicia-se o processo de abertura do nosso ser para a graça,
mas a salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho
dessa fé através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não
nos ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da
nossa liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós
a aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos
merecedores dessa distinção.
Na leitura da carta de Paulo a
Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele
declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo
de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego, a expressão
paulina é 'skólops tês sarxi'', que significa ‘estaca na carne’
(faz lembrar as histórias de Drácula isso), e no texto latino, a
tradução usada por São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas
traduções portuguesas mais antigas era vertido como ‘aguilhão na
carne’. A tradução atual substituiu o aguilhão por espinho,
porém espinho é algo muito brando para simbolizar a imagem proposta
por Paulo. Espinho lembra algo pontiagudo, mas delgado e frágil. Já
a palavra grega 'skólops' tem um peso muito maior do que simples
espinho, simbolizando algo mais poderoso e difícil de evitar.
Pois bem, Paulo diz que esse 'skólops'
foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a
maravilhosa revelação que ele teve, após a sua conversão, quando
foi tocado por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por
três vezes, diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele
respondeu: ‘basta-te a minha graça’ (2Cor 12, 9). Então, Paulo
reflete acerca da suficiência da graça divina para a nossa
salvação, ensinando-nos a não nos deixarmos sucumbir diante das
dificuldades da vida, das nossas fraquezas, do desânimo e da falta
de compreensão, muitas vezes, daqueles que nos são mais próximos.
Quer ele dizer, com isso, que a graça de Deus que nos é dada não
afeta a nossa condição humana, no sentido de que nós continuamos a
possuir as mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. O
fato de acreditar em Cristo não torna o cristão, humanamente
falando, melhor do que o não crente. Porém, o cristão passa a ter
um recurso extra para superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo
que é na fraqueza que a força se manifesta. E arremata: ‘porque
quando me sinto fraco, então é que sou forte’. Isto é: quando as
adversidades me atacam, quanto mais elas me perseguem, mais eu conto
com a graça divina. Por outras palavras, a graça divina não retira
de nós o pecado, mas nos proporciona condições para vencer o mal e
trilhar o caminho do bem. Aqui é que o resultado vai depender de
cada um de nós.
Essa doutrina desenvolvida pela
teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça
suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte
para que ela frutifique. Desse modo, ela contrasta com a doutrina da
graça de outras religiões, aquela que se denomina de predestinação.
Segundo esta, algumas pessoas estão marcadas para a condenação,
independente do que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas
estão escolhidas para a salvação, não importa o que fizerem na
vida. Essa doutrina, se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço
nosso para escolher o bem e praticar a virtude, além de levar à
conclusão de que Deus seria sumamente injusto conosco, zombando da
nossa condição e desrespeitando a nossa liberdade, o que seria
incompatível com a natureza perfeita da divindade. Por isso, a
teologia cristã católica ensina que a graça nos é dada, sim, sem
que a peçamos, porém ela não opera de forma automática, mas vai
depender da forma como cada qual corresponde aos dons divinos. Ou
seja, a graça divina é suficiente, mas não surtirá efeito sozinha
e, portanto, a salvação é um dom de Deus, mas é também uma
conquista de cada um através da sua fé e das suas obras de
misericórdia, não bastando apenas a fé. Agir em desacordo com a
graça é o que se constitui em pecado e isso, às vezes, termina
sendo inevitável, dadas as imperfeições da nossa natureza.
Observa-se que, quando Paulo pediu a Deus: livra-me do “skólops”,
ele estava querendo dizer “livra-me dessa condição de pecador”.
Mas a resposta divina foi: não, a graça que te dou pode superar o
pecado, isso só depende de ti. Eis o nosso cotidiano desafio.
Esse tema da “graça que basta”
está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde
lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos
discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a
leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os
fariseus e os doutores da lei se ‘escandalizaram’ e ficaram se
questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele
vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém, que
não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a
palavra de Deus para o povo. Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré
e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é
este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus
irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos,
aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça
divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar
que o verbo ‘escandalizar’, nesse contexto, nada tem a ver com o
sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa
descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se
escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como
Messias, não reconheceram nele o prometido por Deus. Portanto,
aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua
incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou
efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles
com algum milagre, tivessem acreditado. Mas, diz o evangelista, Jesus
não fez milagre algum, apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as
mãos. Essas curas eram sempre feitas de forma privada, sem presença
de público. Mas os fariseus tinham conhecimento de outros milagres,
porque a fama de Jesus, nessa ocasião, circulava em toda a região.
Portanto, embora tivessem a própria Graça entre eles, os seus
efeitos não ocorreram, porque Deus respeita a liberdade humana e
pela falta de fé deles, a salvação trazida por Jesus não se
realizou ali.
Essa atitude de incredulidade dos
fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na
primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá,
apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão
acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3): nação
de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram
contra mim até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura
e coração de pedra, vou te enviar
…” E depois acrescenta: “Quer
te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um
profeta.” Foi
assim que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia
pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo ficariam sabendo
que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada
pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação
àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta,
pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome
próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e
ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a
pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o
próprio Deus.
Meus amigos, a pedagogia catequética
tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse
obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de
Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve
nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos
concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia
assim: ‘prometo nunca mais pecar...’ ora, sabemos que isso é
impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser
humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma
realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus
nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre
possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio
para sanar as suas consequências.
Que o Senhor nos ajude sempre a
descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir
de acordo com ela.
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