domingo, 1 de julho de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - 01.07.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – SS PEDRO E PAULO – PROTAGONISTAS DA FÉ – 01.07.2018

Caros Leitores:

Neste domingo, a memória litúrgica é dedicada aos Santos Pedro e Paulo, dois baluartes do cristianismo ocidental. O cristianismo teve início em Jerusalém, onde Jesus fora crucificado, onde ele concluiu suas pregações, a cidade símbolo para os judeus e também a grande metrópole daquela região geográfica. Todos os apóstolos eram de cultura judaica, então o território onde por primeiro o cristianismo foi difundido ficava nos arredores de Jerusalém, tanto aquelas localidades que Jesus havia visitado quanto as demais, por onde os apóstolos saíram na sua pregação missionária. A difusão do cristianismo pelo mundo greco-romano se deu por obra de Paulo, pois foi este quem levou Pedro para Roma, então a capital do mundo ocidental. Convinha que a comunidade cristã da metrópole fosse confiada a Pedro, a quem Jesus havia concedido a primazia entre os apóstolos. Paulo não quis assumir para si esse ônus e essa honraria, embora tenha sido o seu fundador.

Os demais apóstolos ficaram nas terras do oriente: Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla, onde atualmente estão localizadas as igrejas católicas ortodoxas. Paulo exerceu um papel fundamental para a difusão do cristianismo no ocidente porque, se dependesse apenas dos apóstolos treinados por Cristo, a religião cristã não teria ido além dos limites do mundo judaico. Eles não tinham condições intelectuais de penetrarem na cultura greco-romana, nada conheciam disso, não falavam a língua grega, não tinham o talento necessário para pregar o cristianismo no mundo helenizado. Mas Jesus queria que a sua doutrina fosse espalhada por todos os povos e então ele fez o milagre que eu considero o mais complexo e grandioso de todos: cooptar o seu maior perseguidor e torná-lo o seu maior arauto. Meus amigos, para mim, a maior prova da divindade de Cristo e ao mesmo tempo prova da origem divina da igreja cristã está neste fato. Ele precisava de um pregador com formação intelectual destacada e com grande fervor missionário e foi encontrar essas qualidades na pessoa de Paulo. Ocorre que Paulo era ardoroso combatedor da doutrina cristã, tal era a sua fidelidade à tradição judaica. Então, como para Deus nada é impossível, o aparentemente impossível aconteceu, quando Paulo foi abordado no caminho de Damasco, jogado ao chão e logo transtornado e transformado no mais ardente e vigoroso defensor do cristianismo. Foi ele mesmo quem escreveu isso, na carta aos Gálatas (1, 14-16): “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma ” E ele completa, dizendo: eu não recebi o conhecimento da doutrina cristã por meio de homem nenhum, mas diretamente de Cristo, por revelação. Os apóstolos judeus não tinham conhecimentos profundos nem discurso elegante, eles eram pescadores, pessoas de poucas letras, não podiam ser instrutores de Paulo. Então, todo o conhecimento que Paulo extraordinariamente compôs e explicitou nas suas pregações e nas cartas que escreveu, tudo lhe foi revelado diretamente por Cristo, no ato de sua conversão. Conforme disse antes, essa é uma prova indiscutível, a mais eloquente da divindade de Jesus. Sem Paulo, nós hoje não seríamos cristãos.

Pois bem. Por que Paulo não assumiu o comando da comunidade cristã de Roma, por ele fundada? Uma explicação para isso podemos encontrar na carta aos Gálatas (1, 18-19), onde Paulo diz: “Depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer Pedro pessoalmente e estive com ele quinze dias Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor.” Deixando de lado a polêmica sobre “o irmão do Senhor”, concluímos que, dos onze, Paulo só conheceu Pedro e Tiago. Paulo foi a Jerusalém conhecer Pedro, porque certamente estava informado de que Jesus havia deixado com ele a liderança do grupo. E Tiago era o dirigente da igreja cristã em Jerusalém. No início de sua atividade, Paulo foi convidado por Barnabé, para trabalharem juntos na igreja cristã de Antioquia, importante cidade da Ásia Menor. Quando Barnabé e Paulo saíram de lá para novas missões em outras terras, deixaram Pedro como dirigente da igreja de Antioquia. Ali, Pedro ficou durante vários anos, enquanto Paulo pregava o cristianismo e convertia os gentios de língua grega, sempre deixando um líder em cada cidade e partindo para outra. A igreja de Roma foi a mais tardia de todas, Paulo chegou lá quando já havia pregado o cristianismo em todas as outras localidades do mundo greco-romano, isto é, todas as outras comunidades são mais antigas do que a de Roma. Mas Roma era a capital do mundo e Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o trouxe para Roma.

Um pouco acima, mencionei as igrejas centrais do mundo oriental: Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla. A igreja de Roma centralizava o cristianismo no território europeu e todas tinham a mesma hierarquia. Nos primeiros séculos, a relação entre a igreja romana e as igrejas orientais era pacífica, mas, lamentavelmente, por ingerências políticas e divergências doutrinárias, essas igrejas irmãs entraram em um processo de desgaste, que culminou com o grande cisma do ocidente. Fator decisivo para isso foi a doutrina da “chefia” do líder da igreja de Roma sobre os líderes das demais igrejas. Cada igreja oriental tinha seu patriarca e estes não aceitaram ficar submissos ao dirigente da igreja de Roma. Essa doutrina resultou de influência dos imperadores romanos nos negócios eclesiásticos, primeiro Constantino e Teodósio, mais tarde, Carlos Magno. Por interferência deles, seguindo o modelo político vigente, o bispo de Roma foi transformado em autoridade universal sobre todas as demais igrejas. Os orientais nunca concordaram (nem concordam hoje ainda) com isso e, a meu ver, com toda razão. E esse é o grande entrave que o Papa Francisco tenta, com paciência e habilidade, superar, mas encontra fortes resistências de ambos os lados. O Papa Bento XVI chegou a nomear dois Patriarcas orientais como Cardeais, o que já foi um grande avanço. Mas ainda há muitas objeções para serem negociadas.

Bem, a igreja romana adota como fundamento bíblico deste 'primado de Pedro' o trecho do evangelho de Mateus, lido na missa de hoje (Mt 13, 19), o conhecido episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras considerações. Apenas no evangelho de Mateus existe essa passagem que fala em “construir a igreja sobre essa pedra” e 'dar as chaves' da igreja a Pedro. Eu tenho uma séria desconfiança de que esse trecho não seja original de Mateus, pode ter sido manipulado, em época muito antiga, a fim de justificar essa doutrina. E digo isso com base em três constatações ou indícios. Em primeiro lugar, penso que o texto original devia assemelhar-se ao que está no evangelho de João (1, 42), onde é narrado o primeiro encontro de Jesus com Simão e Jesus lhe disse: “tu te chamarás Kefas – que significa Petrus”. E pára por aqui. Possivelmente alguém fez os acréscimos que constam no evangelho de Mateus, como forma de justificar biblicamente a doutrina da “chefia”, na época da polêmica. Em segundo lugar, vejo outro claro indício na expressão “sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ora, todos sabemos que Jesus nunca mandou criar uma igreja, o que ele mandou foi que os apóstolos ensinassem a todos os povos a sua doutrina e os batizassem. O conceito de igreja foi-se desenvolvendo aos poucos, com as comunidades (ekklesias) organizadas pelos apóstolos. Esse linguajar “edificarei a minha igreja” não me parece coerente com os demais discursos de Cristo, gerando forte suposição de adaptação textual, numa época em que esta doutrina estava iniciando e necessitava de fundamentação. Em terceiro lugar, façamos um breve retrospecto histórico. A polêmica do “primado de Pedro” teve início lá pelo século IV, tendo sido objeto de inúmeras disputas durante mais de 500 anos, até explodir no cisma, em 1054. Por outro lado, os textos bíblicos hoje conhecidos somente foram tornados oficiais no Concílio de Trento (1545-1563). Ora, nesses 500 anos de discussões, digamos que tudo era válido para justificar uma posição política. Daí que eventual manipulação do texto não pode ser descartada. É a minha opinião, respeitando os que discordarem.

Bem, meus amigos, essas reflexões que faço não têm intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do sucessor de Pedro, mas são como uma espécie de autocrítica, pois as igrejas orientais possuem uma riquíssima tradição e são mais antigas do que a igreja romana, merecem todo o nosso respeito. Que o Espírito Santo e o espírito de Pedro iluminem sempre mais o nosso Papa, para levar adiante a sua difícil empreitada em busca da união de todos os cristãos.
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