domingo, 28 de outubro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 30º DOMINGO COMUM - 28.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – IGREJA EM SAÍDA – 28.10.2018

Caros Leitores,

Na liturgia deste 30º domingo comum, a leitura do profeta Jeremias faz alusão ao “resto de Israel”, uma expressão também usada pelo profeta Isaías (10, 20), referindo-se aos israelitas que foram libertados do cativeiro da Babilônia e haviam de retornar a Jerusalém. O “resto” significa o povo sobrevivente, aqueles que foram submetidos ao jugo do inimigo e agora retornam à liberdade. Num certo sentido, todos nós, que caminhamos no meio das tribulações da vida, fazemos parte deste “resto” do povo de Deus, a caminho da casa do Pai. O Papa Francisco tem enfatizado, em seus discursos, a imagem da Igreja “em saída”, ou seja, em constante atividade de evangelização, contrastando com a imagem tradicional da Igreja burocrática, embarreirada pelos seus muros e acomodada em seu lugar de conforto. O seguimento de Cristo exige presença e ação no mundo, para que o cristão seja sempre fermento, sal e luz.

A palavra inspirada do profeta Jeremias é bastante significativa tanto no contexto histórico do povo hebreu, quanto no caminhar geral de toda a humanidade. Diz ele: “Eis que eu os trarei do país do Norte e os reunirei desde as extremidades da terra; entre eles há cegos e aleijados, mulheres grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam ” (Jr 31, 8). Num primeiro momento, a profecia se dirige aos cativos da Babilônia, mas no momento seguinte, se refere a todos os crentes localizados em todos os confins da terra e esse grupo inclui pessoas sadias e pessoas em situações especiais, porque as vicissitudes da existência afetam as pessoas de diversas maneiras. Mas essas provações não devem abalar a fé do cristão, pois mesmo estando cego, aleijado, parido, necessitado de cuidados, todos serão conduzidos por um caminho reto para a terra prometida. A descrição do profeta Isaías sobre o “resto de Israel” é também bastante ilustrativa: “Um resto voltará, um resto de Jacó, para o Deus forte. Ainda que teu povo fosse inumerável como a areia do mar, dele só voltará um resto. A destruição está resolvida, a justiça vai tirar a desforra." (Is 10,20) . Isaías é mais enfático em relação àqueles que não aceitarão a salvação oferecida por Javeh. Embora, em tese, toda a humanidade seja convidada à salvação, no entanto, nem todos atenderão e assim a redenção trazida por Cristo não alcançará a todos, mas apenas ao “resto”, aos sobreviventes da tentação. E por que isso ocorrerá? Porque Deus não interfere na liberdade das pessoas, Ele oferece a salvação, mas espera que haja adesão da vontade, espera que o crente exercite a sua fé na Sua palavra.

A segunda leitura, da carta aos Hebreus, faz referência ao sacramento da salvação, que é mediado pelo sumo sacerdote. Trata-se de uma alusão indireta à comunidade eclesial, onde o crente pratica a sua fé e recebe os meios para superar os desafios que a vida cotidiana interpõe no nosso meio. O sacrifício expiatório de Cristo é rememorado pelo sumo sacerdote. Ele é retirado do meio do povo e, por isso, conhece as dificuldades e os entraves do existir temporal, portanto, sabe compreender as fraquezas dos irmãos, porque ele é também afetado por essa fraqueza. Então, ao oferecer o sacrifício da cruz, ele reza tanto pelos pecados dos outros, quanto por seus próprios pecados. Cristo encarregou seus apóstolos, e esses os seus sucessores, para continuarem a guiar o “resto” do povo pelos caminhos do mundo, mostrando onde ficam as torrentes de água e ensinando o caminho reto que conduz ao destino esperado. A carta aos Hebreus faz referência ao sacerdócio de Melquisedec, personagem que é interpretado como sendo o precursor do sacerdócio de Cristo e, por intermédio de Cristo, esse mesmo sacerdócio se reproduz nos presbíteros ordenados. Aquele refrão que antigamente era cantado nas missas solenes de ordenação é bastante forte e emblemático: tu es sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedech. O sacerdote é, desse modo, aquele que deve liderar o povo sobrevivente das tormentas do cotidiano, o “resto” da humanidade salva por Cristo, aqueles “144 mil assinalados”, de que fala o Apocalipse. Daí decorre a necessidade de que o fiel se integre na comunidade eclesial, porque essa condução pelo caminho reto é obra coletiva, não se resolve individualmente.

Na leitura do evangelho de Marcos, temos o conhecido episódio da cura do cego de Jericó (10, 46-52), personagem este que simboliza a multidão referida pelo profeta Jeremias, na primeira leitura. Entre os sobreviventes, há cegos, aleijados, gestantes e parturientes. A liturgia coloca para nossa reflexão a figura do cego, simbolizando nele todos aqueles que estão expostos aos perigos e às tentações do mundo infiel, aos estratagemas da ideologia do poder e do dinheiro, às seduções da corrupção e da injustiça, ou seja, todos nós. O cego de Jericó é o protótipo do cristão santo e pecador, crente e duvidoso, sadio, mas nem tanto, pois que precisa que Jesus lhe abra os olhos, para que possa ver melhor o mundo onde habita e progredir na fidelidade à mensagem cristã.

Vejamos uma breve notícia de cunho histórico e geográfico. Jericó é uma das cidades mais citadas nos evangelhos, porque era já naquela época uma das cidades mais importantes da Palestina. Sua conquista pelos hebreus, sob o comando de Josué, quando estavam retornando do Egito, foi uma das mais memoráveis (quando as muralhas caíram), então esta cidade era um ícone da nacionalidade hebraica, um lugar muito visitado. Geograficamente, situa-se a 27 km de Jerusalém e a 10 km do Mar Morto, sendo considerada pelos historiadores uma das cidades mais antigas do mundo, pois há evidências de ter moradias lá desde pelo menos 9.000 anos antes de Cristo. Este fato fazia com que muitas pessoas passassem diariamente por Jericó e, com isso, havia muitos pedintes na entrada da cidade, como ainda hoje se vê nas nossas cidades que são alvo romarias religiosas.

Pois bem. Jesus passava por Jericó, a caminho de Jerusalém, onde o desfecho da sua vida iria acontecer. Na entrada da cidade, havia um grupo de cegos pedindo esmolas aos viajantes. O Padre Uchoa, que foi meu professor de Bíblia, comentava que havia verdadeiros bandos de pedintes nas entradas das grandes cidades, explorando a caridade pública, além de vendedores de quinquilharias e souvenirs diversos, tal como vemos nas cidades turísticas, em geral. Em Jericó, devia ser algo assemelhado. Ao saber que Jesus estava passando, um cego de nome Bartimeu começou a gritar: “Filho de Davi, tem piedade de mim”. De tanto gritar e insistir, Jesus mandou chamá-lo. Diz o evangelista que ele deu um pulo, largou o manto onde recolhia as moedas que lhe jogavam como esmola e foi até onde Jesus se encontrava. “Que queres que eu te faça?”, perguntou Jesus. (Mc 10, 51) E ele respondeu: Mestre, eu quero ver. E Jesus disse: Assim será, a tua fé te curou. E ele passou a enxergar e saiu acompanhando Jesus. Ao sair do comodismo do seu lugar de pedinte, o cego Bartimeu assumiu uma nova realidade de vida, iniciou um novo caminho, armou-se de disposição para seguir o Mestre.

Neste diálogo de Jesus com o cego Bartimeu, podemos ver um exemplo de que o milagre divino não se opera sem a colaboração do beneficiário. Por certo, junto com Bartimeu, havia outros cegos, aleijados e necessitados, porém não foram beneficiados com o fato milagroso, porque não creram. Jesus fez questão de dizer a ele que foi “a tua fé que te curou”. O poder divino de Jesus não agiria na sua deficiência, se não houvesse a sua cooperação com a fé, a sua disponibilidade para aceitar, a sua coragem para assumir aquela nova situação. É óbvio que Jesus, pelo seu conhecimento divino, sabia quem estava a gritar por Ele, sabia que era uma pessoa das mais pobres e excluídas da sociedade. E também pela sua sabedoria divina, Jesus conhecia a intensidade da fé daquele mendigo, sabia o que estava subentendido naquela prece insistente: “Tem piedade de mim”. É como se ele dissesse: com o teu poder, tira-me dessa situação. E Jesus retribuiu a sua oração com o milagre da cura, mas foi logo avisando: foi a tua fé que te curou, ou seja, persevera com esta fé, ela te renderá a salvação, mantém a fé operante e firme, pela fé tu és incluído no rol dos sobreviventes. Inspirada neste e noutros exemplos similares é que a teologia da graça divina ensina que, embora Deus dê a todos a graça, esta somente age no coração dos que a aceitam e a ela aderem. Ou por outras palavras, o efeito do poder divino na nossa vida será proporcional à intensidade da nossa fé.

Por isso, podemos dizer que, para o milagre acontecer nas nossas vidas, embora o poder de Deus seja pleno e absoluto, nossa participação através da fé é indispensável, porque o poder de Deus não se sobrepõe à nossa vontade, e a fé é a manifestação mais completa do ato da vontade humana.

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sábado, 20 de outubro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 29º DOMINGO COMUM - 21.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO COMUM – A RECOMPENSA – 21.10.2018

Caros Leitores,

Neste 29º domingo comum, último domingo do mês de outubro, a liturgia celebra o Dia Mundial das Missões, reverenciando todos aqueles que, no mundo tudo, levam a palavra de Cristo aos irmãos mais distantes, especialmente para aqueles que ainda não conhecem a Redenção. Todos nós somos convidados a ser missionários e, pelo batismo, fomos ungidos para esta missão. Todavia, é uma missão a ser exercida com humildade e na caridade, por isso, ninguém deve gloriar-se com os resultados ou entristecer-se com os eventuais fracassos, porque nessa tarefa interessa apenas a fidelidade ao mandamento de Jesus. Nesse contexto, a liturgia nos põe como tema de reflexão o diálogo de Tiago e João com Jesus, sobre a recompensa pela opção que fizeram, encomendando desde já um “lugar” que cada um queria ter no reino de Deus. Foi quando Jesus disse que será melhor recompensado aquele que melhor servir.

Inicialmente, faço uma observação exegética sobre o trecho do evangelho lido neste domingo, retirado de Marcos 10, 35-45. Fazendo um estudo comparativo entre os evangelhos, podemos cotejar essa passagem com o texto análogo de Mateus 20, 20, onde é narrado o mesmo episódio. No evangelho da liturgia de hoje (Mc 10, 35), lemos: “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram:”. No evangelho de Mateus (20, 20), lemos: “Então, aproximou-se d'Ele a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos, adorando-o e pedindo algo a Ele.” A análise desses dois pequenos trechos nos mostra que devemos ter muito cuidado com a leitura fundamentalista da Sagrada Escritura, porque os textos às vezes se mostram incoerentes. Afinal, quem foi fazer o pedido a Jesus: os filhos de Zebedeu sozinhos ou acompanhados da mãe deles? Por que Marcos não menciona a mãe dos apóstolos, enquanto Mateus a inclui? Embora não seja esse um detalhe significativo no contexto da mensagem de Jesus, no entanto, é por causa de detalhes como esse que algumas pessoas dizem que a Bíblia é cheia de imprecisões e mentiras.

Os biblistas explicam essa divergência dizendo que os textos de Marcos e de Mateus possuem origens geográficas e históricas diferentes. Os estudos históricos confirmam que os ensinamentos de Jesus, durante vários anos, existiam nas comunidades apenas em forma oral, passando a ser escritos somente uns 20 a 30 anos após a morte d'Ele. Havia muitos textos esparsos e os evangelistas os colheram e, com base neles, compuseram seus evangelhos, procurando observar a ordem cronológica dos acontecimentos. Podemos verificar que, também na Bíblia, funciona aquela máxima popular que diz: quem conta um conto aumenta um ponto. Desse modo, embora o evangelho de Mateus venha em primeiro lugar no cânon bíblico, contudo o texto de Marcos é mais antigo. Ainda sobre o evangelho de Mateus suscita polêmica entre os estudiosos, inclusive dúvidas sobre a sua autoria. O seu texto original foi escrito em aramaico e só depois traduzido para o grego, enquanto os demais foram escritos originalmente em grego. Não vou adentrar aqui na polêmica acerca do texto desse evangelho que, segundo os estudiosos, devia ter como título “genealogia de Jesus”, escrito por um autor desconhecido. Quem tiver interesse sobre o assunto, procure livros específicos, que abordam a questão com profundidade.

Pois bem, passemos agora ao tema da leitura, o pedido que os filhos de Zebedeu fizeram a Jesus: que um deles tivesse assento à direita e outro à esquerda, no reino da Sua glória. Jesus ficou intrigado com aquilo e falou: vocês têm certeza do que estão pedindo? Vocês estão dispostos a beber o mesmo cálice que eu? Eles confirmaram e, por fim, Jesus arrematou: 'Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado'. (Mc 10, 39) E diz mais o evangelista que os outros dez ficaram indignados quando souberam do pedido dos dois irmãos, provavelmente, eles também queriam pedir aquilo, mas não tiveram coragem. Ademais, por que razão haveriam aqueles dois de ser privilegiados com um lugar de honra? Foi quando Jesus os repreendeu, dizendo que a autoridade cristã não é símbolo de honraria, mas de serviço. (Mc 10, 43)

Esse diálogo de Cristo com os discípulos nos deixa algumas lições importantes. Primeiro: será que nós sabemos pedir? Quando oramos, quando fazemos nossos pedidos a Deus, que tipo de oração fazemos? Será que caímos no mesmo disparate dos filhos de Zebedeu, reprovado por Jesus? Pois é, muitas vezes, a nossa oração contém uma dose significativa de egoísmo. Pedimos preferencialmente algo bom para cada um de nós, para os nossos parentes e amigos, esquecendo que o próprio Cristo ensinou que devemos buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e que o resto nos será dado por acréscimo. Em geral, as orações dirigidas a Deus são pedidos de favorecimentos, de bens materiais, de bem-estar, de uma conquista profissional, etc. Sem deixar de falar numa prática ainda mais extravagante que é a de fazer um “negócio” com Deus, uma certa 'promessa': se eu conseguir tal coisa, vou fazer tal tarefa. Meus amigos, quanta pretensão. Se passássemos a vida toda fazendo penitências, nem assim mereceríamos um único favor divino, por menorzinho que seja, Deus nos dá tudo gratuitamente, sem precisar de nada de nós e sem nós merecermos, ele age por plena e inefável benevolência. As nossas orações, portanto, devem ser muito mais para agradecer do que para pedir.

Em segundo lugar, lembremos que a oração modelar para nós deve ser inspirada no exemplo dado pelo próprio Jesus: quando orardes, dizei algo assim: Pai, santificado seja o Teu nome, venha o Teu reino, faça-se a Tua vontade... é o tipo da oração altruísta, a oração que agrada a Deus. De orações egoístas, Deus se distancia, vira o rosto para o outro lado. Quando Jesus perguntou aos dois filhos de Zebedeu: vocês estão dispostos a 'beber o mesmo cálice' que eu beberei e eles confirmaram, Jesus disse: mas isso não garantirá o atendimento ao que estais pedindo, pois não é assim que se conquista um lugar no Reino. E arremata: o lugar é para aqueles a quem foi reservado. (Mc 10, 40)

Esta resposta de Jesus é, a um só tempo, enigmática e esperançosa. Enigmática, porque ele não revelou quem são esses a quem está reservado o melhor lugar. Esperançosa, porque a reserva pode ser para qualquer um deles e qualquer um de nós. Como podemos interpretar esse enigma-esperança? A resposta, a meu ver, está na frase seguinte do evangelho (Mc 10, 45): o Filho do Homem não veio para ser servido, mas pra servir... ou seja, quem seguir o exemplo de Jesus na prestação do serviço aos irmãos, é para estes que o lugar está reservado. Foi isso que Ele deu a entender quando ensinou: quem quiser ser grande, que seja o servo; quem quiser ser o maior, que seja o escravo. Então, o 'lugar reservado' se destina a quem realizar o 'serviço' tal como Ele realizou, isto é, com humildade e sem reserva, dando tudo de si até o fim das suas forças. Esta será a nossa melhor recompensa.

Meus amigos, o recado de Cristo está dado para todos nós. O lugar está reservado para quem for capaz de seguir o exemplo dele no serviço aos irmãos, superando as tendências naturais e sociais associadas ao ganho de prestígio e de honrarias, especialmente quando exercemos profissões que são consideradas relevantes socialmente. Humildade não significa vestir trapos e andar descalço, mas é uma atitude que mora dentro do coração. Tomando emprestado palavras do Papa Francisco aos peregrinos em Roma, vejamos o que ele pensa: “À vista de tantos que lutam por obter o poder e o sucesso, por dar nas vistas, frente a tantos que querem fazer valer os seus méritos, as suas realizações, os discípulos são chamados a fazer o contrário. Por isso adverte-os: «Sabeis como aqueles que são considerados governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo» (10, 42-43). Com estas palavras, Jesus indica o serviço como estilo da autoridade na comunidade cristã. Quem serve os outros e não goza efetivamente de prestígio, exerce a verdadeira autoridade na Igreja. Jesus convida-nos a mudar a nossa mentalidade e a passar da ambição do poder à alegria de se ocultar e servir; a desarraigar o instinto de domínio sobre os outros e exercer a virtude da humildade. Todos nós, que acompanhamos pela imprensa as notícias sobre a atuação do Papa, sabemos que essas palavras dele não são apenas discurso mas a sua prática concreta, pois ele assim vivencia no seu cotidiano. Que nós tenhamos a ousadia e a coragem de seguir o seu exemplo de autêntico cristão.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 28º DOMINGO COMUM - 14.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO COMUM – A CORDA NA AGULHA – 14.10.2018

Caros Leitores,

Neste domingo, a liturgia nos convida a refletir sobre o tema da riqueza, através do diálogo de Jesus com o jovem rico, que não abriu mão de seus bens. Mas todos conhecemos também o oposto disso, a história do jovem Francisco de Assis, que seguiu literalmente o convite de Jesus, ao ler esta passagem do evangelho, e abandonou realmente tudo o que possuía, deixou a casa paterna com seu conforto, entregou até as roupas que vestia para o pai, largando tudo para seguir a Cristo na total pobreza e na plena fé de que receberia elevado percentual de recompensa nesta vida e ainda a vida eterna no mundo que há de vir. Nos dias atuais, em que se fala muito acerca do grande distanciamento que há entre as classes sociais (algumas em exagerada abundância e outras em grandes necessidades), o tema da riqueza é bastante oportuno para a reflexão. De fato, a questão que se coloca não é a riqueza em si mesma, porque quando ela é fruto do trabalho, deve ser recebida como justa recompensa. A questão é quando esse acúmulo de bens é fruto de atividades pérfidas, realizadas com o desrespeito do bem e da moralidade, porque é esse tipo de riqueza que não se coaduna com a justa recompensa e é esta que causa a perigosa convulsão da violência em todas as suas formas de manifestação – abertas ou veladas.

A primeira leitura, retirada do Livro da Sabedoria (7, 7-11), fala sobre a verdadeira riqueza, que não está no poder terreno nem na posse dos bens materiais, mas na prudência, na sabedoria, junto da qual todo o ouro do mundo é semelhante a um punhado de areia e toda a prata parece com a lama. E diz mais que, cultivando a sabedoria, todos os bens e riquezas materiais chegam como consequência, pois quem age com sabedoria tem em mãos a maior de todas as riquezas. Por outras palavras, a riqueza deve estar acompanhada da sabedoria para ser legítima. Quando a riqueza é amealhada com esperteza, tornando-se ilegítima, então aplica-se aí a metáfora da areia para o ouro e da lama para a prata.

A segunda leitura, da Carta aos Hebreus (4, 12-13), faz uma comparação interessante entre os conceitos de alma e espírito, os quais são usualmente tidos como sinônimos, no nosso idioma, mas etimologicamente pertencem a funções mentais distintas. A alma (do termo latino “anima”, mas que vem do grego “psiché”) se relaciona com o pensamento lógico, o raciocínio, o conhecimento das coisas do mundo. Por outro lado, o espírito (do termo latino “spiritus”, mas que em hebraico se diz “nefesh”) se relaciona com a respiração, o sopro vital, aquilo que nos mantém vivos, relacionando-se com a consciência e a moralidade. Por isso, o escritor sagrado diz que a palavra de Deus é “mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra até dividir alma e espírito”, isto é, repercute tanto no conhecimento, no raciocínio, quanto na consciência, na responsabilidade. Isso está explicado, com outras palavras, no versículo seguinte, quando diz: “Ela julga os pensamentos e as intenções do coração. ” Podemos ver aqui a seguinte relação com o tema da riqueza, abordado na leitura anterior: quando o acúmulo de bens decorre do uso dos conhecimentos mundanos para obtê-los, mas não está acompanhado de atitudes bem intencionadas, perde-se na ganância e na insensatez, o que não é compatível com a verdadeira sabedoria, e assim vai ocasionar conflitos sociais que se transmudam em violência e infelicidade para todos. E então, adverte o escritor, o avarento se torna réu do julgamento da palavra de Deus, porque “tudo está nu e descoberto aos seus olhos, e é a ela que devemos prestar contas.” Conceitualmente, a palavra de Deus é a suprema sabedoria.

A leitura do evangelho de Marcos (10, 17-27), relata o diálogo de Cristo com um jovem rico de bens materiais, mas que entristeceu-se com a possibilidade de vir a desfazer-se deles. Vemos novamente o tema da riqueza, que se põe no plano do saber interesseiro, e não ultrapassa para o nível das intenções do coração. O diálogo de Cristo com esse jovem é permeado por vários ensinamentos, que o breve conteúdo narrativo condensa. Primeiro, a ideia do Bem. O jovem chamou Jesus de 'bom mestre' e ele disse que somente Deus é bom. Ora, Cristo sendo Deus, por que razão questionaria alguém que o chamasse de 'bom mestre'? O destaque é dado pelo evangelista para significar que o jovem, ao chamar Jesus de 'bom', já estava reconhecendo nele uma pessoa do bem. Mas Jesus quis pô-lo à prova, para saber se ele era também um conhecedor do verdadeiro bem. Pelo que se constata, o jovem tinha demasiado apego à riqueza, visando apenas ao plano da materialidade, por isso não foi capaz de captar a nobreza do convite que lhe foi feito.

O segundo ensinamento é o reforço à lei de Moisés. Jesus fez questão de recitar os mandamentos e dizer que a sua prática conduz à salvação. Por diversas vezes, Jesus afirmou publicamente que não veio modificar a lei mosaica, ao contrário, veio cumpri-la. Porém, o seu cumprimento não devia ser igual ao dos fariseus, que tomavam tudo ao pé da letra e achavam que isso bastava. Aparentemente, o jovem interlocutor também cumpria a lei mosaica sob esse prisma literal, no plano da exterioridade, sem alcançar o patamar das intenções do coração. Tendo percebido isso, Jesus completou: 'Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu.' (Mc 10, 21). Com certeza, não era isso o que o jovem pretendia, mas Jesus utilizou o seu diálogo para ensinar os seus discípulos a importância da riqueza bem adquirida e bem administrada.

O terceiro ensinamento do evangelho é sobre a vida de perfeição. Foi nesse ponto que Francisco de Assis se fixou e com ele traçou um plano de vida, que veio a transformar-se no franciscanismo da regra e dos ensinamentos, que ele demonstrou e viveu. Jesus quis ensinar que a riqueza não é, por si mesma, empecilho para a salvação, mas se o seu detentor não estiver disposto a abrir mão dela, então o seu coração está preso na materialidade e não conseguirá alcançar o verdadeiro sentido do uso dos bens com sabedoria. Daí o comentário de Jesus: como é difícil a um rico entrar no reino do céu. Jesus não disse que os ricos estão necessariamente excluídos da salvação, mas sim que a posse dos bens materiais torna mais difícil levar uma vida agradável a Deus. Evidentemente, a causa disso não seria a simples posse dos bens, mas o apego a eles. Nós sabemos que, assim como há pessoas ricas generosas, há pessoas pobres mesquinhas, por isso o ensinamento de Cristo é a pobreza de espírito, que é mais importante do que a simples falta de bens.

Podemos então retirar daqui um quarto ensinamento do evangelho, que é a ideia do desapego. Esse é o grande problema da sociedade contemporânea, aquilo que ocasiona o grande “abismo social” entre pessoas que se apropriam (muitas vezes, de forma ilícita) de grandes fortunas, que ficam depositadas em instituições financeiras de outros países, ocultas para não prestarem contas delas conforme manda a lei, contando com a possibilidade de, ao deixarem seus cargos, poderem usufruir desses bens indignos em territórios estrangeiros, onde não são conhecidos. Quase diariamente, os meios de comunicação trazem informações sobre cidadãos destituídos de consciência, que terminam sendo apanhados em negócios escusos e, em geral, fazem de conta que não é com eles, continuando como se nada estivesse acontecendo. Em outras sociedades, onde ainda pulsa o sentimento da moralidade, esses episódios ganhariam outros contornos. Entre nós, porém, vence a desfaçatez e a desonra. Quando não posam de vítimas de algum inimigo de outra facção.

Por isso, continua sempre atual a metáfora do buraco da agulha para comparar com a dificuldade (ou impossibilidade) de um rico alcançar a salvação. Para superar tal dificuldade ou para viabilizar essa possibilidade, as riquezas materiais devem estar a serviço da fé do seu possuidor. Aquele que valoriza a sua fé não deixará que o poder político e os bens materiais prendam a sua alma e saberá utilizar desses controles sociais para transformá-los em um maior serviço aos irmãos. Quem exerce um cargo relevante na sociedade tem nas mãos uma oportunidade extraordinária de fazer o bem aos outros mais do que quem não está nessa situação. Quem obteve com seu trabalho um acúmulo considerável de bens não pode se considerar culpado porque outras pessoas não possuem tanto, mas deve transformar esses bens em maiores serviços às pessoas necessitadas.

Ecoa no ar a pergunta dos apóstolos: então, quem poderá salvar-se? A resposta pode ser: quem faz uso dos bens materiais em coerência com a verdadeira fé cristã.

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COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - 07.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – MATRIMÔNIO EM DISCUSSÃO – 07.10.2018

Caros Leitores,

Neste 27º domingo comum, a liturgia comemora o dia da família e enfoca o matrimônio cristão, trazendo para nossa reflexão as leituras do Gênesis e do evangelho de Marcos. O tema traz para o debate a questão do modelo familiar tradicional, composto por homem-mulher-filhos, colocando em discussão os modelos alternativos, que desconhecem a natureza do gênero masculino e feminino. É a duvidosa ideologia do gênero, tão do gosto de muitos políticos e intelectuais autoproclamados progressistas. Outra questão também relacionada com o tema do matrimônio cristão é a grande preocupação do Papa com a situação dos casais de segunda união, isto é, aqueles que são casados pelo rito religioso e divorciados pelo rito civil, tendo contraído segundas núpcias. O papa Francisco até já expediu um documento abrindo conversações sobre o tema, que enfrenta profundas divergências no Vaticano e, em geral, na cúpula da hierarquia eclesiástica no mundo inteiro. Afinal, o matrimônio cristão é mesmo intocável ou é passível de flexibilização, dentro da realidade concreta de cada caso ou situação existencial? Esse é um tema sensível e controverso, que não pode ser ignorado.

Na primeira leitura, retirada do livro do Gênesis (2, 18-24), temos a conhecida narração bíblica da denominação dos animais, feita por Adão, seguida de outra narração também muito enraizada na nossa cultura, que é a da criação da mulher a partir da costela do homem. Naturalmente, são duas narrativas metafóricas, isto é, de sentido figurado pois, embora no passado se aceitasse que fossem descrições de fatos acontecidos, na hermenêutica bíblica contemporânea entende-se como histórias narradas com um conteúdo pedagógico, para ensinamento do povo hebreu. Na verdade, são duas parábolas, que devem ser entendidas dentro da simbologia e do alegorismo.

Nesse sentido alegórico, a parábola diz que Deus chamou Adão e mandou que ele “desse nome” aos animais. Esse “poder” de dar o nome significa, na cultura hebraica, o domínio que o homem devia ter sobre os animais. Para a cultura hebraica, dar o nome significava exercer influência sobre o nominado, quem dá o nome a algo ou a alguém tem autoridade sobre aquilo ou aquele. Ainda hoje, prevalece a regra de que o nome dado aos filhos pelos pais não pode ser modificado, salvo raras e específicas situações. No caso, ao dar nomes aos animais, o personagem Adão simbolizava todos os homens em relação aos animais, ou seja, a superioridade do homem e o poder dado por Deus para que o homem utilizasse os animais para se alimentar e para auxiliar no trabalho de transporte de objetos e no aproveitamento de sua força física. E para dar destaque à posição da mulher nesse contexto, de acordo com a descrição bíblica, Adão não encontrou no meio desses animais “uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 20), requerendo uma ação especial do Criador.

Esse detalhe tem a finalidade pedagógica de ensinar ao povo que a mulher está numa posição diferente dos animais no seu relacionamento com o homem, ou seja, que ela está na mesma hierarquia do homem. Sim, porque nas culturas antigas, era comum a mulher ser considerada uma propriedade do homem, um objeto do qual ele podia dispor como quisesse. O autor bíblico está ensinando que não é assim, mas que a mulher deve receber do homem um tratamento diferente dos animais, porque ela é uma espécie de 'auxiliar' (adjutorium, em latim) para ele. Para explicar isso, o narrador sagrado construiu uma historieta, que a hermenêutica bíblica chama de “legenda”: o sono de Adão e a retirada de sua costela. Observemos que não há verossimilhança nisso, porque se assim fosse, haveria um número diferente das costelas do homem no lado esquerdo em relação ao direito, e não há. O texto bíblico diz que o lugar de onde teria sido retirada a costela foi preenchido com carne (Gn 2, 21). Ora, se nós fôssemos tomar essa narrativa ao pé da letra, como um fato ocorrido, os homens teriam uma costela faltando, o que não é verídico.

Outro detalhe que merece explicação é a afirmação de Adão (Gn 2, 23): “Ela será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem'.” Na nossa língua, essa frase não faz sentido, mas na língua hebraica, o autor bíblico faz uma espécie de trocadilho, do seguinte modo. A palavra 'homem' diz-se em hebraico 'ish' e a palavra mulher diz-se 'isha'. Por isso ela foi chamada mulher (isha) porque foi tirada do homem (ish). Apesar disso, historicamente, sabe-se que tanto a sociedade hebraica, e ainda mais a sociedade romana, baseadas no patriarcalismo, sempre colocaram a mulher numa posição social de inferioridade, o que só veio a se modificar nos tempos atuais.

Na leitura do evangelho de Marcos (10, 5), o tema central é o matrimônio e as questões sobre a sua dissolução. Os fariseus perguntaram a Jesus sobre e legitimidade do divórcio que, segundo eles, teria sido permitido por Moisés. Disseram que Moisés havia instituído uma espécie de 'carta de repúdio' que o homem podia fazer para despedir a mulher. Foi quando Cristo os censurou, dizendo que Moisés só havia consentido naquilo por causa da dureza dos corações dos seus ancestrais, mas isso não pode mudar o projeto divino, pois desde o começo da criação, Deus fez homem e mulher (“ossos dos meus ossos, carne da minha carne”, como disse Adão), para que os dois sejam uma só carne, através do matrimônio, isto é, os dois devem formar juntos as duas metades de um mesmo ser. E arremata taxativamente: o que Deus uniu, o homem não separe. (Mc 10, 9)

O texto mosaico referido nessa discussão dos fariseus, na verdade, encontra-se em Deuteronômio (24, 1): “Se um homem casar-se com uma mulher e depois não a quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão de divórcio à mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da casa, ela se tornar mulher de outro homem, e este não gostar mais dela, lhe dará certidão de divórcio, e a mandará embora”. O livro do Deuteronômio contém inúmeros preceitos que, sob a aparência de norma religiosa, são de fato normas civis gerais, que eram usadas pelos juízes para o julgamento das questões entre os hebreus. No caso específico da condição “por encontrar nela algo que ele reprova”, de acordo com os biblistas, isso tinha relação com a origem familiar da mulher e com a sua situação sócio-religiosa, que talvez fosse ignorada pelo homem, ao contrair matrimônio. Durante o percurso no deserto, o povo hebreu recebeu muitas influências dos povos com os quais tiveram contato, sobretudo moabitas e amonitas, sendo este o principal motivo das frequentes “crises” de idolatria que ocorreram e que deram muito trabalho aos líderes do povo e aos profetas. Por exemplo, na religião desses povos, havia uma função feminina de “prostituta sagrada”, que se fantasiava na ocasião dos cultos e sua identidade era, em geral, desconhecida. Um hebreu poderia casar-se com uma delas sem saber dessa particularidade, vindo a saber somente depois. Portanto, quando Jesus disse que, no início não era assim, pois desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher para serem uma só carne, ele quer dizer que a regra do divórcio fora tolerada por Moisés, aplicando-se casos específicos, mas depois havia sido transformada numa regra geral pelos fariseus.

Pois bem. Conforme aludi antes, um dos graves problemas da pastoral religiosa dos nossos dias é o caso dos casais de 'segunda união matrimonial' entre católicos, para o qual o Papa tem demonstrado uma preocupação intensa e tem enfrentado sérias resistências no meio eclesiástico, em especial por parte dos conservadores. Não se pode partir da premissa de que isso ocorre apenas com pessoas que possam ser chamada de inconsequentes e levianas. Ocorre também com pessoas responsáveis e bem intencionadas. A Igreja Católica não pode ficar adiando o enfrentamento desse problema, pois é grave e progride a todo momento. Cabe à pastoral religiosa oferecer alternativas concretas de solução, não sendo justo apenas reprovar e proibir a participação nos sacramentos. A caridade de Jesus vai muito além disso. Portanto, o grande desafio é buscar uma resposta coerente com o evangelho pois, como lemos hoje, Cristo foi taxativo contra o divórcio, no entanto, o Papa lembra, no documento citado antes, que o Senhor Jesus é um juiz compassivo e por isso, pastoralmente, é necessário analisar com maior benignidade os casos concretos de cada casal envolvido, deixando de lado o rigorismo e o formalismo. Mais importante do que as normas são as pessoas e é imperiosa uma abordagem mais humanística da realidade matrimonial vivenciada, com todas as vicissitudes e contingências da condição humana. Deve-se analisar com seriedade e profundidade o real motivo existencial daquelas pessoas que, pelas mais diversas razões, tiveram uma união matrimonial anterior mal sucedida, para que possam reorganizar suas vidas não somente perante a sociedade civil, mas também perante a comunidade eclesial. Nem a sociedade nem a religião podem admitir atitudes discriminatórias. Aquela, por razões de justiça; esta, por razões de fé, esperança e caridade.

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