COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO
COMUM – IGREJA EM SAÍDA – 28.10.2018
Caros Leitores,
Na liturgia deste 30º domingo comum, a
leitura do profeta Jeremias faz alusão ao “resto de Israel”, uma
expressão também usada pelo profeta Isaías (10, 20), referindo-se
aos israelitas que foram libertados do cativeiro da Babilônia e
haviam de retornar a Jerusalém. O “resto” significa o povo
sobrevivente, aqueles que foram submetidos ao jugo do inimigo e agora
retornam à liberdade. Num certo sentido, todos nós, que caminhamos
no meio das tribulações da vida, fazemos parte deste “resto” do
povo de Deus, a caminho da casa do Pai. O Papa Francisco tem
enfatizado, em seus discursos, a imagem da Igreja “em saída”, ou
seja, em constante atividade de evangelização, contrastando com a
imagem tradicional da Igreja burocrática, embarreirada pelos seus
muros e acomodada em seu lugar de conforto. O seguimento de Cristo
exige presença e ação no mundo, para que o cristão seja sempre
fermento, sal e luz.
A palavra inspirada do profeta Jeremias
é bastante significativa tanto no contexto histórico do povo
hebreu, quanto no caminhar geral de toda a humanidade. Diz ele: “Eis
que eu os trarei do país do Norte e os reunirei desde as
extremidades da terra; entre eles há cegos e aleijados, mulheres
grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam
” (Jr 31, 8). Num primeiro momento, a profecia se dirige aos
cativos da Babilônia, mas no momento seguinte, se refere a todos os
crentes localizados em todos os confins da terra e esse grupo inclui
pessoas sadias e pessoas em situações especiais, porque as
vicissitudes da existência afetam as pessoas de diversas maneiras.
Mas essas provações não devem abalar a fé do cristão, pois mesmo
estando cego, aleijado, parido, necessitado de cuidados, todos serão
conduzidos por um caminho reto para a terra prometida. A descrição
do profeta Isaías sobre o “resto de Israel” é também bastante
ilustrativa: “Um resto
voltará, um resto de Jacó, para o Deus forte. Ainda que teu povo
fosse inumerável como a areia do mar, dele só voltará um resto. A
destruição está resolvida, a justiça vai tirar a desforra."
(Is
10,20) .
Isaías é mais enfático em relação àqueles que não aceitarão a
salvação oferecida por Javeh. Embora, em tese, toda a humanidade
seja convidada à salvação, no entanto, nem todos atenderão e
assim a redenção trazida por Cristo não alcançará a todos, mas
apenas ao “resto”, aos sobreviventes da tentação. E por que
isso ocorrerá? Porque Deus não interfere na liberdade das pessoas,
Ele oferece a salvação, mas espera que haja adesão da vontade,
espera que o crente exercite a sua fé na Sua palavra.
A segunda leitura, da carta aos
Hebreus, faz referência ao sacramento da salvação, que é mediado
pelo sumo sacerdote. Trata-se de uma alusão indireta à comunidade
eclesial, onde o crente pratica a sua fé e recebe os meios para
superar os desafios que a vida cotidiana interpõe no nosso meio. O
sacrifício expiatório de Cristo é rememorado pelo sumo sacerdote.
Ele é retirado do meio do povo e, por isso, conhece as dificuldades
e os entraves do existir temporal, portanto, sabe compreender as
fraquezas dos irmãos, porque ele é também afetado por essa
fraqueza. Então, ao oferecer o sacrifício da cruz, ele reza tanto
pelos pecados dos outros, quanto por seus próprios pecados. Cristo
encarregou seus apóstolos, e esses os seus sucessores, para
continuarem a guiar o “resto” do povo pelos caminhos do mundo,
mostrando onde ficam as torrentes de água e ensinando o caminho reto
que conduz ao destino esperado. A carta aos Hebreus faz referência
ao sacerdócio de Melquisedec, personagem que é interpretado como
sendo o precursor do sacerdócio de Cristo e, por intermédio de
Cristo, esse mesmo sacerdócio se reproduz nos presbíteros
ordenados. Aquele refrão que antigamente era cantado nas missas
solenes de ordenação é bastante forte e emblemático: tu es
sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedech. O sacerdote é,
desse modo, aquele que deve liderar o povo sobrevivente das tormentas
do cotidiano, o “resto” da humanidade salva por Cristo, aqueles
“144 mil assinalados”, de que fala o Apocalipse. Daí decorre a
necessidade de que o fiel se integre na comunidade eclesial, porque
essa condução pelo caminho reto é obra coletiva, não se resolve
individualmente.
Na leitura do evangelho de Marcos,
temos o conhecido episódio da cura do cego de Jericó (10, 46-52),
personagem este que simboliza a multidão referida pelo profeta
Jeremias, na primeira leitura. Entre os sobreviventes, há cegos,
aleijados, gestantes e parturientes. A liturgia coloca para nossa
reflexão a figura do cego, simbolizando nele todos aqueles que estão
expostos aos perigos e às tentações do mundo infiel, aos
estratagemas da ideologia do poder e do dinheiro, às seduções da
corrupção e da injustiça, ou seja, todos nós. O cego de Jericó é
o protótipo do cristão santo e pecador, crente e duvidoso, sadio,
mas nem tanto, pois que precisa que Jesus lhe abra os olhos, para que
possa ver melhor o mundo onde habita e progredir na fidelidade à
mensagem cristã.
Vejamos uma breve notícia de cunho
histórico e geográfico. Jericó é uma das cidades mais citadas nos
evangelhos, porque era já naquela época uma das cidades mais
importantes da Palestina. Sua conquista pelos hebreus, sob o comando
de Josué, quando estavam retornando do Egito, foi uma das mais
memoráveis (quando as muralhas caíram), então esta cidade era um
ícone da nacionalidade hebraica, um lugar muito visitado.
Geograficamente, situa-se a 27 km de Jerusalém e a 10 km do Mar
Morto, sendo considerada pelos historiadores uma das cidades mais
antigas do mundo, pois há evidências de ter moradias lá desde pelo
menos 9.000 anos antes de Cristo. Este fato fazia com que muitas
pessoas passassem diariamente por Jericó e, com isso, havia muitos
pedintes na entrada da cidade, como ainda hoje se vê nas nossas
cidades que são alvo romarias religiosas.
Pois bem. Jesus passava por Jericó, a
caminho de Jerusalém, onde o desfecho da sua vida iria acontecer. Na
entrada da cidade, havia um grupo de cegos pedindo esmolas aos
viajantes. O Padre Uchoa, que foi meu professor de Bíblia, comentava
que havia verdadeiros bandos de pedintes nas entradas das grandes
cidades, explorando a caridade pública, além de vendedores de
quinquilharias e souvenirs diversos, tal como vemos nas cidades
turísticas, em geral. Em Jericó, devia ser algo assemelhado. Ao
saber que Jesus estava passando, um cego de nome Bartimeu começou a
gritar: “Filho de Davi, tem piedade de mim”. De tanto gritar e
insistir, Jesus mandou chamá-lo. Diz o evangelista que ele deu um
pulo, largou o manto onde recolhia as moedas que lhe jogavam como
esmola e foi até onde Jesus se encontrava. “Que queres que eu te
faça?”, perguntou Jesus. (Mc 10, 51) E ele respondeu: Mestre, eu
quero ver. E Jesus disse: Assim será, a tua fé te curou. E ele
passou a enxergar e saiu acompanhando Jesus. Ao sair do comodismo do
seu lugar de pedinte, o cego Bartimeu assumiu uma nova realidade de
vida, iniciou um novo caminho, armou-se de disposição para seguir o
Mestre.
Neste diálogo de Jesus com o cego
Bartimeu, podemos ver um exemplo de que o milagre divino não se
opera sem a colaboração do beneficiário. Por certo, junto com
Bartimeu, havia outros cegos, aleijados e necessitados, porém não
foram beneficiados com o fato milagroso, porque não creram. Jesus
fez questão de dizer a ele que foi “a tua fé que te curou”. O
poder divino de Jesus não agiria na sua deficiência, se não
houvesse a sua cooperação com a fé, a sua disponibilidade para
aceitar, a sua coragem para assumir aquela nova situação. É óbvio
que Jesus, pelo seu conhecimento divino, sabia quem estava a gritar
por Ele, sabia que era uma pessoa das mais pobres e excluídas da
sociedade. E também pela sua sabedoria divina, Jesus conhecia a
intensidade da fé daquele mendigo, sabia o que estava subentendido
naquela prece insistente: “Tem piedade de mim”. É como se ele
dissesse: com o teu poder, tira-me dessa situação. E Jesus
retribuiu a sua oração com o milagre da cura, mas foi logo
avisando: foi a tua fé que te curou, ou seja, persevera com esta fé,
ela te renderá a salvação, mantém a fé operante e firme, pela fé
tu és incluído no rol dos sobreviventes. Inspirada neste e noutros
exemplos similares é que a teologia da graça divina ensina que,
embora Deus dê a todos a graça, esta somente age no coração dos
que a aceitam e a ela aderem. Ou por outras palavras, o efeito do
poder divino na nossa vida será proporcional à intensidade da nossa
fé.
Por isso, podemos dizer que, para o
milagre acontecer nas nossas vidas, embora o poder de Deus seja pleno
e absoluto, nossa participação através da fé é indispensável,
porque o poder de Deus não se sobrepõe à nossa vontade, e a fé é
a manifestação mais completa do ato da vontade humana.
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