sábado, 20 de outubro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 27º DOMINGO COMUM - 07.10.2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – MATRIMÔNIO EM DISCUSSÃO – 07.10.2018

Caros Leitores,

Neste 27º domingo comum, a liturgia comemora o dia da família e enfoca o matrimônio cristão, trazendo para nossa reflexão as leituras do Gênesis e do evangelho de Marcos. O tema traz para o debate a questão do modelo familiar tradicional, composto por homem-mulher-filhos, colocando em discussão os modelos alternativos, que desconhecem a natureza do gênero masculino e feminino. É a duvidosa ideologia do gênero, tão do gosto de muitos políticos e intelectuais autoproclamados progressistas. Outra questão também relacionada com o tema do matrimônio cristão é a grande preocupação do Papa com a situação dos casais de segunda união, isto é, aqueles que são casados pelo rito religioso e divorciados pelo rito civil, tendo contraído segundas núpcias. O papa Francisco até já expediu um documento abrindo conversações sobre o tema, que enfrenta profundas divergências no Vaticano e, em geral, na cúpula da hierarquia eclesiástica no mundo inteiro. Afinal, o matrimônio cristão é mesmo intocável ou é passível de flexibilização, dentro da realidade concreta de cada caso ou situação existencial? Esse é um tema sensível e controverso, que não pode ser ignorado.

Na primeira leitura, retirada do livro do Gênesis (2, 18-24), temos a conhecida narração bíblica da denominação dos animais, feita por Adão, seguida de outra narração também muito enraizada na nossa cultura, que é a da criação da mulher a partir da costela do homem. Naturalmente, são duas narrativas metafóricas, isto é, de sentido figurado pois, embora no passado se aceitasse que fossem descrições de fatos acontecidos, na hermenêutica bíblica contemporânea entende-se como histórias narradas com um conteúdo pedagógico, para ensinamento do povo hebreu. Na verdade, são duas parábolas, que devem ser entendidas dentro da simbologia e do alegorismo.

Nesse sentido alegórico, a parábola diz que Deus chamou Adão e mandou que ele “desse nome” aos animais. Esse “poder” de dar o nome significa, na cultura hebraica, o domínio que o homem devia ter sobre os animais. Para a cultura hebraica, dar o nome significava exercer influência sobre o nominado, quem dá o nome a algo ou a alguém tem autoridade sobre aquilo ou aquele. Ainda hoje, prevalece a regra de que o nome dado aos filhos pelos pais não pode ser modificado, salvo raras e específicas situações. No caso, ao dar nomes aos animais, o personagem Adão simbolizava todos os homens em relação aos animais, ou seja, a superioridade do homem e o poder dado por Deus para que o homem utilizasse os animais para se alimentar e para auxiliar no trabalho de transporte de objetos e no aproveitamento de sua força física. E para dar destaque à posição da mulher nesse contexto, de acordo com a descrição bíblica, Adão não encontrou no meio desses animais “uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 20), requerendo uma ação especial do Criador.

Esse detalhe tem a finalidade pedagógica de ensinar ao povo que a mulher está numa posição diferente dos animais no seu relacionamento com o homem, ou seja, que ela está na mesma hierarquia do homem. Sim, porque nas culturas antigas, era comum a mulher ser considerada uma propriedade do homem, um objeto do qual ele podia dispor como quisesse. O autor bíblico está ensinando que não é assim, mas que a mulher deve receber do homem um tratamento diferente dos animais, porque ela é uma espécie de 'auxiliar' (adjutorium, em latim) para ele. Para explicar isso, o narrador sagrado construiu uma historieta, que a hermenêutica bíblica chama de “legenda”: o sono de Adão e a retirada de sua costela. Observemos que não há verossimilhança nisso, porque se assim fosse, haveria um número diferente das costelas do homem no lado esquerdo em relação ao direito, e não há. O texto bíblico diz que o lugar de onde teria sido retirada a costela foi preenchido com carne (Gn 2, 21). Ora, se nós fôssemos tomar essa narrativa ao pé da letra, como um fato ocorrido, os homens teriam uma costela faltando, o que não é verídico.

Outro detalhe que merece explicação é a afirmação de Adão (Gn 2, 23): “Ela será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem'.” Na nossa língua, essa frase não faz sentido, mas na língua hebraica, o autor bíblico faz uma espécie de trocadilho, do seguinte modo. A palavra 'homem' diz-se em hebraico 'ish' e a palavra mulher diz-se 'isha'. Por isso ela foi chamada mulher (isha) porque foi tirada do homem (ish). Apesar disso, historicamente, sabe-se que tanto a sociedade hebraica, e ainda mais a sociedade romana, baseadas no patriarcalismo, sempre colocaram a mulher numa posição social de inferioridade, o que só veio a se modificar nos tempos atuais.

Na leitura do evangelho de Marcos (10, 5), o tema central é o matrimônio e as questões sobre a sua dissolução. Os fariseus perguntaram a Jesus sobre e legitimidade do divórcio que, segundo eles, teria sido permitido por Moisés. Disseram que Moisés havia instituído uma espécie de 'carta de repúdio' que o homem podia fazer para despedir a mulher. Foi quando Cristo os censurou, dizendo que Moisés só havia consentido naquilo por causa da dureza dos corações dos seus ancestrais, mas isso não pode mudar o projeto divino, pois desde o começo da criação, Deus fez homem e mulher (“ossos dos meus ossos, carne da minha carne”, como disse Adão), para que os dois sejam uma só carne, através do matrimônio, isto é, os dois devem formar juntos as duas metades de um mesmo ser. E arremata taxativamente: o que Deus uniu, o homem não separe. (Mc 10, 9)

O texto mosaico referido nessa discussão dos fariseus, na verdade, encontra-se em Deuteronômio (24, 1): “Se um homem casar-se com uma mulher e depois não a quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão de divórcio à mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da casa, ela se tornar mulher de outro homem, e este não gostar mais dela, lhe dará certidão de divórcio, e a mandará embora”. O livro do Deuteronômio contém inúmeros preceitos que, sob a aparência de norma religiosa, são de fato normas civis gerais, que eram usadas pelos juízes para o julgamento das questões entre os hebreus. No caso específico da condição “por encontrar nela algo que ele reprova”, de acordo com os biblistas, isso tinha relação com a origem familiar da mulher e com a sua situação sócio-religiosa, que talvez fosse ignorada pelo homem, ao contrair matrimônio. Durante o percurso no deserto, o povo hebreu recebeu muitas influências dos povos com os quais tiveram contato, sobretudo moabitas e amonitas, sendo este o principal motivo das frequentes “crises” de idolatria que ocorreram e que deram muito trabalho aos líderes do povo e aos profetas. Por exemplo, na religião desses povos, havia uma função feminina de “prostituta sagrada”, que se fantasiava na ocasião dos cultos e sua identidade era, em geral, desconhecida. Um hebreu poderia casar-se com uma delas sem saber dessa particularidade, vindo a saber somente depois. Portanto, quando Jesus disse que, no início não era assim, pois desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher para serem uma só carne, ele quer dizer que a regra do divórcio fora tolerada por Moisés, aplicando-se casos específicos, mas depois havia sido transformada numa regra geral pelos fariseus.

Pois bem. Conforme aludi antes, um dos graves problemas da pastoral religiosa dos nossos dias é o caso dos casais de 'segunda união matrimonial' entre católicos, para o qual o Papa tem demonstrado uma preocupação intensa e tem enfrentado sérias resistências no meio eclesiástico, em especial por parte dos conservadores. Não se pode partir da premissa de que isso ocorre apenas com pessoas que possam ser chamada de inconsequentes e levianas. Ocorre também com pessoas responsáveis e bem intencionadas. A Igreja Católica não pode ficar adiando o enfrentamento desse problema, pois é grave e progride a todo momento. Cabe à pastoral religiosa oferecer alternativas concretas de solução, não sendo justo apenas reprovar e proibir a participação nos sacramentos. A caridade de Jesus vai muito além disso. Portanto, o grande desafio é buscar uma resposta coerente com o evangelho pois, como lemos hoje, Cristo foi taxativo contra o divórcio, no entanto, o Papa lembra, no documento citado antes, que o Senhor Jesus é um juiz compassivo e por isso, pastoralmente, é necessário analisar com maior benignidade os casos concretos de cada casal envolvido, deixando de lado o rigorismo e o formalismo. Mais importante do que as normas são as pessoas e é imperiosa uma abordagem mais humanística da realidade matrimonial vivenciada, com todas as vicissitudes e contingências da condição humana. Deve-se analisar com seriedade e profundidade o real motivo existencial daquelas pessoas que, pelas mais diversas razões, tiveram uma união matrimonial anterior mal sucedida, para que possam reorganizar suas vidas não somente perante a sociedade civil, mas também perante a comunidade eclesial. Nem a sociedade nem a religião podem admitir atitudes discriminatórias. Aquela, por razões de justiça; esta, por razões de fé, esperança e caridade.

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