COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO
COMUM – MATRIMÔNIO EM DISCUSSÃO – 07.10.2018
Caros Leitores,
Neste 27º domingo comum, a liturgia
comemora o dia da família e enfoca o matrimônio cristão, trazendo
para nossa reflexão as leituras do Gênesis e do evangelho de
Marcos. O tema traz para o debate a questão do modelo familiar
tradicional, composto por homem-mulher-filhos, colocando em discussão
os modelos alternativos, que desconhecem a natureza do gênero
masculino e feminino. É a duvidosa ideologia do gênero, tão do
gosto de muitos políticos e intelectuais autoproclamados
progressistas. Outra questão também relacionada com o tema do
matrimônio cristão é a grande preocupação do Papa com a situação
dos casais de segunda união, isto é, aqueles que são casados pelo
rito religioso e divorciados pelo rito civil, tendo contraído
segundas núpcias. O papa Francisco até já expediu um documento
abrindo conversações sobre o tema, que enfrenta profundas
divergências no Vaticano e, em geral, na cúpula da hierarquia
eclesiástica no mundo inteiro. Afinal, o matrimônio cristão é
mesmo intocável ou é passível de flexibilização, dentro da
realidade concreta de cada caso ou situação existencial? Esse é um
tema sensível e controverso, que não pode ser ignorado.
Na primeira leitura, retirada do livro
do Gênesis (2, 18-24), temos a conhecida narração bíblica da
denominação dos animais, feita por Adão, seguida de outra narração
também muito enraizada na nossa cultura, que é a da criação da
mulher a partir da costela do homem. Naturalmente, são duas
narrativas metafóricas, isto é, de sentido figurado pois, embora no
passado se aceitasse que fossem descrições de fatos acontecidos, na
hermenêutica bíblica contemporânea entende-se como histórias
narradas com um conteúdo pedagógico, para ensinamento do povo
hebreu. Na verdade, são duas parábolas, que devem ser entendidas
dentro da simbologia e do alegorismo.
Nesse sentido alegórico, a parábola
diz que Deus chamou Adão e mandou que ele “desse nome” aos
animais. Esse “poder” de dar o nome significa, na cultura
hebraica, o domínio que o homem devia ter sobre os animais. Para a
cultura hebraica, dar o nome significava exercer influência sobre o
nominado, quem dá o nome a algo ou a alguém tem autoridade sobre
aquilo ou aquele. Ainda hoje, prevalece a regra de que o nome dado
aos filhos pelos pais não pode ser modificado, salvo raras e
específicas situações. No caso, ao dar nomes aos animais, o
personagem Adão simbolizava todos os homens em relação aos
animais, ou seja, a superioridade do homem e o poder dado por Deus
para que o homem utilizasse os animais para se alimentar e para
auxiliar no trabalho de transporte de objetos e no aproveitamento de
sua força física. E para dar destaque à posição da mulher nesse
contexto, de acordo com a descrição bíblica, Adão não encontrou
no meio desses animais “uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2,
20), requerendo uma ação especial do Criador.
Esse detalhe tem a finalidade
pedagógica de ensinar ao povo que a mulher está numa posição
diferente dos animais no seu relacionamento com o homem, ou seja, que
ela está na mesma hierarquia do homem. Sim, porque nas culturas
antigas, era comum a mulher ser considerada uma propriedade do homem,
um objeto do qual ele podia dispor como quisesse. O autor bíblico
está ensinando que não é assim, mas que a mulher deve receber do
homem um tratamento diferente dos animais, porque ela é uma espécie
de 'auxiliar' (adjutorium, em latim) para ele. Para explicar isso, o
narrador sagrado construiu uma historieta, que a hermenêutica
bíblica chama de “legenda”: o sono de Adão e a retirada de sua
costela. Observemos que não há verossimilhança nisso, porque se
assim fosse, haveria um número diferente das costelas do homem no
lado esquerdo em relação ao direito, e não há. O texto bíblico
diz que o lugar de onde teria sido retirada a costela foi preenchido
com carne (Gn 2, 21). Ora, se nós fôssemos tomar essa narrativa ao
pé da letra, como um fato ocorrido, os homens teriam uma costela
faltando, o que não é verídico.
Outro detalhe que merece explicação é
a afirmação de Adão (Gn 2, 23): “Ela
será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem'.”
Na nossa língua, essa frase não faz sentido, mas na língua
hebraica, o autor bíblico faz uma espécie de trocadilho, do
seguinte modo. A palavra 'homem' diz-se em hebraico 'ish' e a palavra
mulher diz-se 'isha'. Por isso ela foi chamada mulher (isha) porque
foi tirada do homem (ish). Apesar disso, historicamente, sabe-se que
tanto a sociedade hebraica, e ainda mais a sociedade romana, baseadas
no patriarcalismo, sempre colocaram a mulher numa posição social de
inferioridade, o que só veio a se modificar nos tempos atuais.
Na leitura do evangelho de Marcos (10,
5), o tema central é o matrimônio e as questões sobre a sua
dissolução. Os fariseus perguntaram a Jesus sobre e legitimidade do
divórcio que, segundo eles, teria sido permitido por Moisés.
Disseram que Moisés havia instituído uma espécie de 'carta de
repúdio' que o homem podia fazer para despedir a mulher. Foi quando
Cristo os censurou, dizendo que Moisés só havia consentido naquilo
por causa da dureza dos corações dos seus ancestrais, mas isso não
pode mudar o projeto divino, pois desde o começo da criação, Deus
fez homem e mulher (“ossos dos meus ossos, carne da minha carne”,
como disse Adão), para que os dois sejam uma só carne, através do
matrimônio, isto é, os dois devem formar juntos as duas metades de
um mesmo ser. E arremata taxativamente: o que Deus uniu, o homem não
separe. (Mc 10, 9)
O texto mosaico referido nessa
discussão dos fariseus, na verdade, encontra-se em Deuteronômio
(24, 1): “Se um homem casar-se com uma mulher e depois não a
quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão
de divórcio à mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da
casa, ela se tornar mulher de outro homem, e este não gostar mais
dela, lhe dará certidão de divórcio, e a mandará embora”. O
livro do Deuteronômio contém inúmeros preceitos que, sob a
aparência de norma religiosa, são de fato normas civis gerais, que
eram usadas pelos juízes para o julgamento das questões entre os
hebreus. No caso específico da condição “por encontrar nela
algo que ele reprova”, de acordo com os biblistas, isso tinha
relação com a origem familiar da mulher e com a sua situação
sócio-religiosa, que talvez fosse ignorada pelo homem, ao contrair
matrimônio. Durante o percurso no deserto, o povo hebreu recebeu
muitas influências dos povos com os quais tiveram contato, sobretudo
moabitas e amonitas, sendo este o principal motivo das frequentes
“crises” de idolatria que ocorreram e que deram muito trabalho
aos líderes do povo e aos profetas. Por exemplo, na religião desses
povos, havia uma função feminina de “prostituta sagrada”, que
se fantasiava na ocasião dos cultos e sua identidade era, em geral,
desconhecida. Um hebreu poderia casar-se com uma delas sem saber
dessa particularidade, vindo a saber somente depois. Portanto, quando
Jesus disse que, no início não era assim, pois desde
o começo da criação, Deus
os fez homem e mulher
para serem uma só carne, ele quer dizer que a regra do divórcio
fora tolerada por Moisés, aplicando-se casos específicos, mas
depois havia sido transformada numa regra geral pelos fariseus.
Pois bem. Conforme aludi antes, um dos
graves problemas da pastoral religiosa dos nossos dias é o caso dos
casais de 'segunda união matrimonial' entre católicos, para o qual
o Papa tem demonstrado uma preocupação intensa e tem enfrentado
sérias resistências no meio eclesiástico, em especial por parte
dos conservadores. Não se pode partir da premissa de que isso ocorre
apenas com pessoas que possam ser chamada de inconsequentes e
levianas. Ocorre também com pessoas responsáveis e bem
intencionadas. A Igreja Católica não pode ficar adiando o
enfrentamento desse problema, pois é grave e progride a todo
momento. Cabe à pastoral religiosa oferecer alternativas concretas
de solução, não sendo justo apenas reprovar e proibir a
participação nos sacramentos. A caridade de Jesus vai muito além
disso. Portanto, o grande desafio é buscar uma resposta coerente com
o evangelho pois, como lemos hoje, Cristo foi taxativo contra o
divórcio, no entanto, o Papa lembra, no documento citado antes, que
o Senhor Jesus é um juiz compassivo e por isso, pastoralmente, é
necessário analisar com maior benignidade os casos concretos de cada
casal envolvido, deixando de lado o rigorismo e o formalismo. Mais
importante do que as normas são as pessoas e é imperiosa uma
abordagem mais humanística da realidade matrimonial vivenciada, com
todas as vicissitudes e contingências da condição humana. Deve-se
analisar com seriedade e profundidade o real motivo existencial
daquelas pessoas que, pelas mais diversas razões, tiveram uma união
matrimonial anterior mal sucedida, para que possam reorganizar suas
vidas não somente perante a sociedade civil, mas também perante a
comunidade eclesial. Nem a sociedade nem a religião podem admitir
atitudes discriminatórias. Aquela, por razões de justiça; esta,
por razões de fé, esperança e caridade.
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