COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO
COMUM – HOSPITALIDADE CRISTÖ 21.07.2019
Neste 16º domingo
comum, as leituras tratam do tema da hospitalidade. Abraão recebe a
visita de visitantes ilustres e os recepciona da melhor maneira.
Jesus é recebido com simpatia na casa das irmãs Marta e Maria.
Esses relatos trazem à tona a ideia da boa hospitalidade. Numa
abordagem metafórica, esse fenômeno da visita pode também
estender-se à visita no sentido espiritual, de tratar bem os irmãos,
percebendo Deus na sua presença.
Na primeira leitura (Gn 18, 1-10),
vemos como Abraão recebeu a visita de três desconhecidos
forasteiros e trata-os com toda cortesia, percebendo em sua
sensibilidade a presença de Deus através daqueles estranhos. Nâo
precisa grande esforço exegético para divisarmos nessa imagem uma
prefiguração remota da Trindade Santa, pois os três visitantes
eram anjos do Senhor. Etimologicamente, a palavra anjo chegou à
língua portuguesa através do latim “angelus”, que é uma
transliteração do grego “anghelos” e que significa
“mensageiro”. Com efeito, aqueles três visitantes vieram trazer
a Abraão uma importantíssima mensagem de Javeh: a gravidez de Sara.
Vendo avançar a idade e sem gerar filhos legítimos, Abraão foi
servir-se da regra tradicional hebraica para casos similares, qual
seja, de gerar um filho na pessoa de uma escrava. Mas para cumprir a
sua promessa, Javeh não se contentaria com esse filho enviesado e
assim os mensageiros vieram trazer a notícia de que Abraão geraria
um filho na sua esposa Sara, apesar da idade avançada de ambos. Este
episódio traz também logo à mente um caso semelhante de gravidez
em avançada idade, acontecido com Isabel, prima de Maria, quando
nasceu João Batista. Podemos perceber o quanto os fatos do Antigo
Testamento se entrelaçam com os do Novo Testamento, em contextos
diferenciados.
Mas o que chama a atenção nesse
episódio é a hospitalidade de Abraão para com aqueles viajantes
desconhecidos. Implorou para que não seguissem viagem, mas parassem
na tenda dele e mandou preparar o melhor alimento: pão, leite
coalhada e o cordeiro mais tenro, para que os viajantes de
recuperassem da cansativa viagem. Meus amigos, todos se recordam que
esse era o costume do sertão, até algum tempo atrás. Hospedava-se
um viajante desconhecido, oferecendo-lhe o que havia de melhor em
casa. O exemplo de Abraão, infelizmente, foi desbancado pelas
rotinas de violência e de insegurança dos tempos modernos. Hoje em
dia, ninguém mais tem coragem de oferecer abrigo e pousada para um
desconhecido. Desconfia-se até de quem lhe pede um copo d'água, e
não é sem propósito. No caso de Abraão, os visitantes predisseram
a gravidez de Sara para dentro de um ano, levando Sara a rir
incrédula quando ouviu a notícia. Ao nascer a criança, ela
colocou-lhe o nome de Isaac – aquele que me fez rir. Em síntese, a
hospitalidade devotada por Abraão àqueles viajantes decorreu do
fato de ter ele percebido, através deles, a presença de Javeh.
Tempos depois, Jesus vai dizer na sua pregação que quem recebe a um
pequenino é a Ele que recebe. A presença de Deus através do irmão
é a outra lição que podemos colher da leitura deste fato
extraordinário.
Na leitura do evangelho (Lc 10, 38-42),
temos o conhecido diálogo entre Marta e Jesus, a respeito do
comportamento da irmã dela, Maria, que não a ajudava no trabalho da
casa. Uma curiosidade que nos chama a atenção nesse trecho de Lucas
é quando ele diz que “uma certa mulher de nome Marta o recebeu em
sua casa”. Ora, nós sabemos que os três irmãos (Marta, Maria e
Lázaro), que moravam em Betãnia, eram pessoas que desfrutavam de
grande amizade com Jesus. Causa estranheza o modo como o evangelista
Lucas se refere a Marta identificando-a como 'uma certa mulher'. E
também a referência que ele faz ao lugar: “Jesus entrou num
povoado...”, como se o local fosse desconhecido e aquela passagem
fosse casual. Pelas leituras de outros trechos do NT, sabemos que
Jesus hospedava-se com frequência naquela residência, onde ele até
operou um de seus milagres mais emotivos, a ressurreição de Lázaro,
ocasião em que Jesus chorou. (Jo 11, 35). Trata-se, sem dúvida, de
um modo inesperado como o evangelista Lucas se refere à família com
a qual Jesus tinha grandes relações de amizade.
Mas não ficam por aí as estranhezas
dessa narração de Lucas. No trecho seguinte (Lc 10, 39-40), ele
diz: “Sua
irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua
palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres.”
Para em seguida, narrar a queixa de Marta a Jesus porque a irmã
Maria ficava ali sentada aos pés dele, enquanto ela, Marta, ficava
com todo o encargo das tarefas domésticas. Convenhamos, Jesus não
andava sozinho, os discípulos sempre o acompanhavam, então a
chegada daquele grupo numeroso numa casa implicava uma certa
quantidade de tarefas fora da rotina e eram elas, Marta e Maria, as
donas da casa, as responsáveis por aquele trabalho. Com certeza,
chegando de viagem a pé, os visitantes queriam tomar um banho,
alimentar-se, repousar, e isso significava aumento do serviço
doméstico. Só que Maria ficou sentada ouvindo Jesus a conversar,
enquanto Marta fazia todo o trabalho. E quando esta foi se queixar,
Jesus ainda caçoou dela, dizendo que ela se preocupava demais e que
Maria tinha escolhido a melhor parte.
Meus amigos, com todo respeito dos que
pensam em contrário, parece-me que Lucas queria dar algum recado
direcionado a alguém ou a algum grupo, quando escreveu essa história
com esses pormenores. Apenas Lucas narra esse diálogo entre Jesus e
Marta que, embora não se possa entender como uma repreensão,
todavia soa incoerente naquele contexto. Sabendo que a Sua presença
ali fazia aumentar o trabalho doméstico e vendo Marta a cuidar das
atividades, enquanto Maria nada fazia, era de esperar que Jesus
dissesse a Maria que fosse ajudar a irmã. Acerca dessa atitude pouco
colaborativa de Jesus, eu li dois comentários. Um comentarista dizia
que, com isso, Jesus estava colocando um valor mais acentuado na
pessoa d'Ele do que no trabalho, como se ele estivesse a dizer a
Marta que deixasse aquelas tarefas pra depois e fosse ouvi-Lo também.
Assim, disse esse comentarista, devemos colocar Deus em primeiro
lugar e tudo o mais virá como consequência. Parece-me que essa
interpretação já foi muito usada, inclusive nos conventos, para
colocarem-se os clérigos nas tarefas intelectuais (Maria) e os
leigos nas tarefas domésticas (Marta). Evidentemente, dando mais
importância às lides intelectuais, num seguimento literal àquilo
que Jesus dissera. Não gostei dessa explicação.
Outro comentarista interpretou dizendo
que cada uma das irmãs, Marta e Maria, amavam muito a Jesus, porém,
ao seu modo: Marta através do trabalho prestativo, Maria através da
atenção aos seus ensinamentos. Com isso, esse comentarista queria
significar que cada pessoa tem um modo próprio de amar a Jesus e Ele
ama cada um de acordo com o modo como cada qual é. Parece uma
interpretação interessante, menos literal do que a anterior e
teologicamente mais consistente. Porém, em relação ao trabalho,
nós sempre aprendemos que existe tempo para tudo: tempus orandi,
tempus laborandi, tempus ludendi, tempus ridendi, tempus dormiendi,
etc (tempo de orar, de trabalhar, de divertir-se, de rir, de dormir,
etc), o que não significa a pessoa deva escolher uma opção, mas o
conjunto deles é que compõe a vida. Quem não se lembra que, no
Noviciado, nós rezávamos enquanto fazíamos as tarefas domésticas
e uma coisa não atrapalhava a outra. Era lavando os pratos e rezando
a ladainha, cavando a horta e rezando o terço, “ora et labora”,
dizia o Padre Mestre. O fato é que esse episódio narrado por Lucas
já serviu pra muita gente justificar a preguiça, afirmando que
tinha escolhido “a melhor parte”, como fez Maria. Continua me
parecendo uma incoerência a narrativa de Lucas em relação aos
ensinamentos de Jesus. É como se fosse, repito, um escrito destinado
a dar um recado para determinadas pessoas, o que hoje nos dificulta a
compreensão.
Mas abstraindo essa incógnita,
observa-se nas atitudes de Abraão e de Marta o cuidado em bem
receber. A hospitalidade verdadeira é aquela que decorre da
caridade, que por sua vez é decorrente do amor de Deus, que nós
enxergamos através da pessoa do irmão. Não precisa ser hospedando
em casa, mas pode ser também no trato cordial, no gesto fraterno, no
cumprimento respeitoso, na conversa bem humorada, na delicadeza dos
gestos, são outras atitudes que equivalem a uma boa hospitalidade
que podemos devotar aos irmãos.
Que o divino Mestre nos ensine a saber
unir as duas atitudes (de Marta e de Maria) nas nossas tarefas do dia
a dia.
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