segunda-feira, 19 de agosto de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - 21.07.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – HOSPITALIDADE CRISTÖ 21.07.2019



Neste 16º domingo comum, as leituras tratam do tema da hospitalidade. Abraão recebe a visita de visitantes ilustres e os recepciona da melhor maneira. Jesus é recebido com simpatia na casa das irmãs Marta e Maria. Esses relatos trazem à tona a ideia da boa hospitalidade. Numa abordagem metafórica, esse fenômeno da visita pode também estender-se à visita no sentido espiritual, de tratar bem os irmãos, percebendo Deus na sua presença.

Na primeira leitura (Gn 18, 1-10), vemos como Abraão recebeu a visita de três desconhecidos forasteiros e trata-os com toda cortesia, percebendo em sua sensibilidade a presença de Deus através daqueles estranhos. Nâo precisa grande esforço exegético para divisarmos nessa imagem uma prefiguração remota da Trindade Santa, pois os três visitantes eram anjos do Senhor. Etimologicamente, a palavra anjo chegou à língua portuguesa através do latim “angelus”, que é uma transliteração do grego “anghelos” e que significa “mensageiro”. Com efeito, aqueles três visitantes vieram trazer a Abraão uma importantíssima mensagem de Javeh: a gravidez de Sara. Vendo avançar a idade e sem gerar filhos legítimos, Abraão foi servir-se da regra tradicional hebraica para casos similares, qual seja, de gerar um filho na pessoa de uma escrava. Mas para cumprir a sua promessa, Javeh não se contentaria com esse filho enviesado e assim os mensageiros vieram trazer a notícia de que Abraão geraria um filho na sua esposa Sara, apesar da idade avançada de ambos. Este episódio traz também logo à mente um caso semelhante de gravidez em avançada idade, acontecido com Isabel, prima de Maria, quando nasceu João Batista. Podemos perceber o quanto os fatos do Antigo Testamento se entrelaçam com os do Novo Testamento, em contextos diferenciados.

Mas o que chama a atenção nesse episódio é a hospitalidade de Abraão para com aqueles viajantes desconhecidos. Implorou para que não seguissem viagem, mas parassem na tenda dele e mandou preparar o melhor alimento: pão, leite coalhada e o cordeiro mais tenro, para que os viajantes de recuperassem da cansativa viagem. Meus amigos, todos se recordam que esse era o costume do sertão, até algum tempo atrás. Hospedava-se um viajante desconhecido, oferecendo-lhe o que havia de melhor em casa. O exemplo de Abraão, infelizmente, foi desbancado pelas rotinas de violência e de insegurança dos tempos modernos. Hoje em dia, ninguém mais tem coragem de oferecer abrigo e pousada para um desconhecido. Desconfia-se até de quem lhe pede um copo d'água, e não é sem propósito. No caso de Abraão, os visitantes predisseram a gravidez de Sara para dentro de um ano, levando Sara a rir incrédula quando ouviu a notícia. Ao nascer a criança, ela colocou-lhe o nome de Isaac – aquele que me fez rir. Em síntese, a hospitalidade devotada por Abraão àqueles viajantes decorreu do fato de ter ele percebido, através deles, a presença de Javeh. Tempos depois, Jesus vai dizer na sua pregação que quem recebe a um pequenino é a Ele que recebe. A presença de Deus através do irmão é a outra lição que podemos colher da leitura deste fato extraordinário.

Na leitura do evangelho (Lc 10, 38-42), temos o conhecido diálogo entre Marta e Jesus, a respeito do comportamento da irmã dela, Maria, que não a ajudava no trabalho da casa. Uma curiosidade que nos chama a atenção nesse trecho de Lucas é quando ele diz que “uma certa mulher de nome Marta o recebeu em sua casa”. Ora, nós sabemos que os três irmãos (Marta, Maria e Lázaro), que moravam em Betãnia, eram pessoas que desfrutavam de grande amizade com Jesus. Causa estranheza o modo como o evangelista Lucas se refere a Marta identificando-a como 'uma certa mulher'. E também a referência que ele faz ao lugar: “Jesus entrou num povoado...”, como se o local fosse desconhecido e aquela passagem fosse casual. Pelas leituras de outros trechos do NT, sabemos que Jesus hospedava-se com frequência naquela residência, onde ele até operou um de seus milagres mais emotivos, a ressurreição de Lázaro, ocasião em que Jesus chorou. (Jo 11, 35). Trata-se, sem dúvida, de um modo inesperado como o evangelista Lucas se refere à família com a qual Jesus tinha grandes relações de amizade.

Mas não ficam por aí as estranhezas dessa narração de Lucas. No trecho seguinte (Lc 10, 39-40), ele diz: “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres.” Para em seguida, narrar a queixa de Marta a Jesus porque a irmã Maria ficava ali sentada aos pés dele, enquanto ela, Marta, ficava com todo o encargo das tarefas domésticas. Convenhamos, Jesus não andava sozinho, os discípulos sempre o acompanhavam, então a chegada daquele grupo numeroso numa casa implicava uma certa quantidade de tarefas fora da rotina e eram elas, Marta e Maria, as donas da casa, as responsáveis por aquele trabalho. Com certeza, chegando de viagem a pé, os visitantes queriam tomar um banho, alimentar-se, repousar, e isso significava aumento do serviço doméstico. Só que Maria ficou sentada ouvindo Jesus a conversar, enquanto Marta fazia todo o trabalho. E quando esta foi se queixar, Jesus ainda caçoou dela, dizendo que ela se preocupava demais e que Maria tinha escolhido a melhor parte.

Meus amigos, com todo respeito dos que pensam em contrário, parece-me que Lucas queria dar algum recado direcionado a alguém ou a algum grupo, quando escreveu essa história com esses pormenores. Apenas Lucas narra esse diálogo entre Jesus e Marta que, embora não se possa entender como uma repreensão, todavia soa incoerente naquele contexto. Sabendo que a Sua presença ali fazia aumentar o trabalho doméstico e vendo Marta a cuidar das atividades, enquanto Maria nada fazia, era de esperar que Jesus dissesse a Maria que fosse ajudar a irmã. Acerca dessa atitude pouco colaborativa de Jesus, eu li dois comentários. Um comentarista dizia que, com isso, Jesus estava colocando um valor mais acentuado na pessoa d'Ele do que no trabalho, como se ele estivesse a dizer a Marta que deixasse aquelas tarefas pra depois e fosse ouvi-Lo também. Assim, disse esse comentarista, devemos colocar Deus em primeiro lugar e tudo o mais virá como consequência. Parece-me que essa interpretação já foi muito usada, inclusive nos conventos, para colocarem-se os clérigos nas tarefas intelectuais (Maria) e os leigos nas tarefas domésticas (Marta). Evidentemente, dando mais importância às lides intelectuais, num seguimento literal àquilo que Jesus dissera. Não gostei dessa explicação.

Outro comentarista interpretou dizendo que cada uma das irmãs, Marta e Maria, amavam muito a Jesus, porém, ao seu modo: Marta através do trabalho prestativo, Maria através da atenção aos seus ensinamentos. Com isso, esse comentarista queria significar que cada pessoa tem um modo próprio de amar a Jesus e Ele ama cada um de acordo com o modo como cada qual é. Parece uma interpretação interessante, menos literal do que a anterior e teologicamente mais consistente. Porém, em relação ao trabalho, nós sempre aprendemos que existe tempo para tudo: tempus orandi, tempus laborandi, tempus ludendi, tempus ridendi, tempus dormiendi, etc (tempo de orar, de trabalhar, de divertir-se, de rir, de dormir, etc), o que não significa a pessoa deva escolher uma opção, mas o conjunto deles é que compõe a vida. Quem não se lembra que, no Noviciado, nós rezávamos enquanto fazíamos as tarefas domésticas e uma coisa não atrapalhava a outra. Era lavando os pratos e rezando a ladainha, cavando a horta e rezando o terço, “ora et labora”, dizia o Padre Mestre. O fato é que esse episódio narrado por Lucas já serviu pra muita gente justificar a preguiça, afirmando que tinha escolhido “a melhor parte”, como fez Maria. Continua me parecendo uma incoerência a narrativa de Lucas em relação aos ensinamentos de Jesus. É como se fosse, repito, um escrito destinado a dar um recado para determinadas pessoas, o que hoje nos dificulta a compreensão.

Mas abstraindo essa incógnita, observa-se nas atitudes de Abraão e de Marta o cuidado em bem receber. A hospitalidade verdadeira é aquela que decorre da caridade, que por sua vez é decorrente do amor de Deus, que nós enxergamos através da pessoa do irmão. Não precisa ser hospedando em casa, mas pode ser também no trato cordial, no gesto fraterno, no cumprimento respeitoso, na conversa bem humorada, na delicadeza dos gestos, são outras atitudes que equivalem a uma boa hospitalidade que podemos devotar aos irmãos.

Que o divino Mestre nos ensine a saber unir as duas atitudes (de Marta e de Maria) nas nossas tarefas do dia a dia.

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