COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – 31-01-2021 -
O PROFETISMO E O PROFETA
Neste 4º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas refletem sobre o profetismo. Conforme já comentamos aqui em ocasiões anteriores, o profeta não é aquele que adivinha coisas futuras, como é compreensão comum desta palavra na mente popular, mas profeta é o porta-voz, o arauto, o que fala em nome de Deus. Moisés foi o maior profeta do Antigo Testamento, pois quando ele se comunicava com Javeh, seu rosto ficava resplandescente, de modo que os hebreus não conseguiam nem olhar para ele, tal o brilho que emanava de sua face. No entanto, Jesus Cristo é maior do que Moisés, maior do que qualquer profeta, porque Ele fala em seu próprio nome, fala como quem tem autoridade.
Na primeira leitura, do livro do Deuteronômio (Dt 18, 15-20), lemos a comunicação de Moisés ao povo, estando ele já bastante idoso e sentindo que sua morte se aproxima, dizendo que Javeh vai suscitar no meio do seu povo um outro profeta semelhante a ele, a quem todos deverão ouvir e atender. “Farei surgir para eles, do meio de seus irmãos, um profeta semelhante a ti. Porei em sua boca as minhas palavras e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar.” (Dt 18, 18) E foi assim que Javeh sempre manteve no meio do seu povo um porta-voz, um profeta que transmitia as suas ordens. Contudo, o estilo de comunicação de Javeh com os demais profetas foi diferente do modo como Ele se comunicava com Moisés. Este foi o único com quem Javeh falava diretamente. Quanto aos demais, Javeh se manifestava em sonhos, eles não tiveram mais a face resplandescente como a de Moisés, que atemorizava o povo. Porém, o profeta enquanto porta-voz tem a obrigação de ser fiel à revelação recebida e comunicá-la sem distorções. Daí a advertência de Javeh: “o profeta que tiver a ousadia de dizer em meu nome alguma coisa que não lhe mandei ou se falar em nome de outros deuses, esse profeta deverá morrer ” (Dt 18, 20), este é um falso profeta.
Vemos, assim, que a missão do profeta é importante e perigosa. Importante, porque ele fala em nome da maior autoridade que pode existir; perigosa porque quando Javeh mandar, ele irá falar seja onde for, pra quem for, o que for e isso pode levá-lo a alguma situação de risco, como de fato já levou; e perigosa tb porque se ele falar algo que Javeh não mandou, ou se falar em nome de outros deuses, o próprio Javeh tomará satisfação com ele. Esse temor que o Javeh do Antigo Testamento suscitava no povo, através dos seus profetas, foi o que fez a tradição judaica deixar de pronunciar o “seu santo nome”, pois as ameaças eram fortes e as consequências imprevisíveis. Observando os tempos posteriores, até os dias de hoje, constatamos o quanto as pessoas que hoje se arvoram em “donos” de igrejas e de religiões perderam esse temor. Os falsos profetas de hoje conseguem, com recursos técnológicos e econômicos, seduzir multidões e dominá-las, tornando-se com isso ricos e poderosos.
É ainda oportuno, nesse contexto, lembrar o caso dos fanáticos do islamismo, que se utilizam da sua religião (que em essência é muito parecida com a tradição judaico-cristã) numa interpretação literal e temerária da violência expressa nos textos, e realizam atos bárbaros de ataques públicos e de homicídios, com publicidade nos meios de comunicação, como uma forma de demonstrar poder e impor o medo nas demais culturas. Ouso dizer que, fazendo analogia com o texto do Deuteronômio, esses fanáticos não falam em nome de Alá, mas em nome da própria insanidade, servindo-se do véu religioso dos textos para finalidades totalmente contraditórias. É bem verdade, é forçoso admitir, que em outras épocas, as autoridades cristãs da Europa, também em nome da religião e sob o mesmo pretexto, praticaram barbaridades seja na própria Europa (por exemplo, queimaram Joana D’Arc), seja com os povos do oriente médio (por exemplo: guerras das cruzadas). No entanto, é imperioso analisar esses fatos trágicos dentro de uma visão histórica e crítica, sem transformá-los em motivação para a prática de novos crimes. Creio que, assim como Javeh ameaçou, também Alá adotará severas providências contra tal fanatismo irracionalista.
Na leitura do evangelho de Marcos (1, 21-28), temos a notícia que Jesus ensinava na sinagoga de Cafarnaum, cidade onde ele desenvolveu a maior parte de sua atividade missionária, e o povo o considerava um profeta, mas achava que era um profeta diferente. Ora, na liturgia comemorativa do batismo de Jesus, vimos que Ele dissera, a respeito de João Batista, que este era mais do que um profeta, portanto, o próprio Jesus não poderia ser qualificado como profeta. Diz o evangelista que “Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei.” (Mc 1, 22) Ora, eles não sabiam ainda, mas a diferença estava exatamente no fato de Jesus não falava em nome de Javeh, mas falava em nome próprio, porque Ele era um com o Pai. Daí porque, mesmo perante um povo acostumado a ouvir profetas, a voz de Jesus soava de um modo diferente dos outros, de um modo novo, inaugurado por Ele. Outro detalhe que chama a atenção na leitura é que isso ocorreu num dia de sábado, portanto, Jesus igual a todos os judeus guardava o sábado, comparecia à sinagoga aos sábados. Não é essa a única referência dos evangelhos ao fato de que Jesus cumpria o preceito religioso tradicional dos judeus. Embora tendo autoridade e falando com autoridade, Jesus não deixava de cumprir a lei nem se aproveitava de sua autoridade para diversificá-la.
Na sequência da leitura desse texto (Mc 1, 23-25), o evangelista faz um relato intrigante sobre um dos presentes na sinagoga, que estava “possuído por um espírito mau”. Há pessoas inadvertidas que, interpretando literalmente esse texto, enxergam aí uma prova de que, nos tempos de Jesus, já havia o “espiritismo”, ou seja, veem como se o evangelho estivesse validando a doutrina que hoje leva essa denominação. Muitos biblistas de hoje afirmam que essa referência aos espíritos maus, diversas vezes encontrada nos evangelhos, diz respeito a pessoas com doenças mentais. Não raras vezes, ocorrem nos dias de hoje casos de pessoas portadoras de algum desequilíbrio psíquico que adentram os templos na hora das celebrações e precisam ser contidas ou retiradas, porque passam a fazer ações incompatíveis com o local. E ninguém hoje diz que essas pessoas estão “possuídas por um espírito mau”, porque sabemos (ou ao menos supomos) que se trata de uma enfermidade. Mas naquela época, não se tinha esse conhecimento e a explicação dada era a da possessão por um espírito maligno.
Pois bem, de acordo com o texto, esse homem interpelou Jesus, dizendo: 'que queres tu, Jesus Nazareno, vieste aqui para nos destruir?' Vamos tentar contextualizar essa afirmação, sem pensar em espíritos maus. O que significaria esse “nos destruir”. Lembremo-nos que, naquela época, a Galiléia estava dominada pelos romanos e a população tinha medo dos soldados, pelas violências que eles praticavam contra os que se rebelavam. Jesus era identificado por muitas pessoas como sendo um líder rebelde, como alguém que estaria provocando um levante político naquele momento contra os romanos. Então, essa pessoa pode ter dito isso com esse referencial, isto é, tinha um viés político a sua fala. Quando Jesus disse a esse interlocutor: “'Cala-te e sai dele!' Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu”, neste momento, Jesus operou a cura da enfermidade psicológica daquela pessoa. E agora, vocês podem perguntar: por que então o “espírito mau” possuidor daquele homem teria dito: “Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus'”? Meus amigos, lembremo-nos de que os atos praticados por Jesus não foram documentados imediatamente, não havia repórteres nem escribas acompanhando seus passos. Esses fatos miraculosos eram transmitidos oralmente, de boca em boca, de cidade em cidade, e assim ficaram durante muitos anos antes de serem escritos. Penso que aqui vale a regra “quem conta um conto aumenta um ponto”. O objetivo do evangelho de Marcos era mostrar que Jesus é Filho de Deus, portanto, é possível que esse episódio, certamente verídico, tenha tido uma descrição adaptada ao objetivo do seu escritor. Os biblistas afirmam que o evangelho de Marcos não foi escrito para povos judeus, mas para povos gentios, isto é, pessoas de cultura grega, de costumes gregos. Através da descrição de obras maravilhosas feitas por Jesus, o evangelista queria demonstrar a Sua origem divina. Portanto, a meu ver, o texto citado não contém qualquer suporte a doutrinas ou ensinamentos sobre espíritos, mas tem a finalidade de mostrar a divindade de Jesus através de seus milagres.
Meus amigos, quando nós fomos batizados em do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós recebemos a missão profética de ser sinal para os irmãos, de ser luz do mundo e sal da terra. Reflitamos sobre a maneira como cada um de nós está pondo em prática a nossa missão profética, examinando a nossa fidelidade com esse compromisso.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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