COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO – 07.02.2021
Caros Confrades,
A liturgia deste 5º domingo comum nos convida a refletir sobre as enfermidades, tanto às doenças do corpo quanto às doenças do espírito. Nos dias de hoje, como no passado, é firme a convicção de que a máxima latina “mens sana in corpore sano” permanece em pleno vigor, na medida em que cada vez mais se descobre o quanto as preocupações e achaques mentais terminam por transformarem-se em enfermidades no corpo (somatização), causando aquelas doenças graves, de causas genéricas e de cura desconhecida, ou seja, se a mente não está sã, o corpo também não estará são. Hoje, muito mais do que no passado, os profissionais da área da saúde com frequência atestam que a fonte e a causa de grande parte dos males que acometem o corpo decorrem de perturbações de ordem mental e espiritual. Com o evento da pandemia em curso, o agravamento das doenças provocadas pelo estresse tem sido uma frequente causa de distúrbios nas famílias e de ausência do trabalho. É nesse ponto que a fé e a religião podem ter uma função importante no processo de cura.
Quado se fala em sofrimento, a figura emblemática que logo nos chega à lembrança é a de Jó, pois toda a tradição hebraico-cristã tem nesse personagem o protótipo do justo sofredor. Vários estudiosos da Bíblia colocam em dúvida a existência histórica desse personagem, que mais se assemelha a um protagonista de um romance de natureza didático-religiosa, em cuja figura o seu autor (ou seus autores, porque isso também é controverso) pretende desmistificar uma certa noção que havia naquela época acerca da doença e do sofrimento como castigo divino. O livro de Jó é classificado na Bíblia dentre os livros sapienciais e esses são os livros que colecionam os ditos e ensinamentos dos antigos sábios hebreus. A finalidade do livro de Jó é demonstrar que o sofrimento não é consequência do pecado, ou seja, não se deve correlacionar a ideia de que os pecadores sofrem por seus pecados e os justos não devem sofrer. Assim era a antiga crença hebraica. Então, a figura de Jó, o justo que sofre, perde tudo que possui e depois readquire tudo novamente, é o símbolo da pedagogia do sofrimento, isto é, da visão do sofrimento como um período de reflexão para nos levar a um estado de vida mais purificado e mais santificado.
Diz assim a primeira leitura: (Jo 7,2) “tive por ganho meses de decepção, e couberam-me noites de sofrimento. Se me deito, penso: Quando poderei levantar-me? E, ao amanhecer, espero novamente a tarde e me encho de sofrimentos até ao anoitecer.” Este trecho caracteriza muito bem a situação em que se encontra uma pessoa acometida de grave enfermidade crônica: a pessoa vê os dias se passando um após o outro e a sua situação não melhora. Parece que Deus se esqueceu dela. E a pessoa então se desmancha em queixumes e desesperanças, a vida torna-se um pesado fardo, algumas pessoas chegam a pedir a chegada da morte por não aguentarem tanto sofrimento. O livro de Jó ensinava os hebreus e continua a nos ensinar hoje a não cair no desespero diante das mazelas da vida, mas fortalecer a nossa fé através da oração confiante, porque Deus vela pelos que sofrem. A liturgia deste domingo procura exatamente chamar a atenção para esse fato de que o sofrimento é algo que faz parte da nossa existência humana e ainda conclamar os cristãos a terem solidariedade para com os enfermos, visitando-os e orando com eles. E também sem esquecer de valorizar aqueles profissionais que trabalham na área da saúde e que estão em permanente contato com pessoas enfermas, para que não enxerguem o ser humano doente como se fosse uma máquina com defeito, mas estejam sempre conscientes e dispostos a praticarem uma medicina humanizada. Com tantos recursos tecnológicos utilizados atualmente no campo da medicina, muitas vezes os cientistas da área são levados a confundir os seres humanos com as máquinas que lhes auxiliam no seu trabalho, esquecendo que o corpo é templo de Deus e morada do Espírito Santo. Esse é o sentido que deve ter o cristão acerca da enfermidade e do sofrimento.
Na segunda leitura, da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 9,16), ele comenta sobre as agruras suportadas por causa de sua missão de pregar o Evangelho: sem descanso, sem salário, sem reconhecimento, com perseguições, e mesmo assim, fazendo isso como uma necessidade interna que ele sentia. Por causa do Evangelho, ele se tornou um escravo de todos. O sofrimento a que Paulo se refere já não é tanto aquele decorrente de uma enfermidade corporal, mas decorre da sua própria missão e das preocupações associadas a ela. Diz ele (9, 18): “Em que consiste então o meu salário? Em pregar o evangelho, oferecendo-o de graça, sem usar os direitos que o evangelho me dá. ” Fico pensando em quais seriam esses “direitos” que o evangelho dá a ele e dos quais ele não usufrui. Suponho que seria a tranquilidade de estabelecer-se num certo local e dedicar-se aos fiéis daquela comunidade, assim como muitos líderes religiosos daquela época e de hoje fazem. Ao contrário, Paulo era aquele apóstolo itinerante, que não tinha um pouso nem uma morada. Cuidava de todas as igrejas, no entanto, não estava vinculado a nenhuma delas. Essa foi a sua opção para atender com fidelidade à missão de pregar o evangelho. Por isso, ele conclui no vers. 19: “Assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos.” A preocupação com a pregação do evangelho era o sofrimento dele de cada dia.
No evangelho de Marcos (Mc 1, 29), vemos mais uma vez a intenção desse evangelista de mostrar o poder de Jesus, especialmente através da cura dos doentes e da expulsão dos demônios. Procurando entender essas expressões numa linguagem atual, poderíamos ler aí como se estivesse escrito a cura das doenças do corpo e do espírito. Conforme já foi mencionado em outros comentários, o entendimento daquela época acerca das doenças psicológicas era de que se tratava de possessão pelo demônio. O evangelista Marcos procura destacar o poder que Jesus tem sobre os males do corpo e do espírito devolvendo a saúde aos paralíticos e leprosos, mas também expulsando e proibindo os demônios de falarem ao povo quem é Ele. Jesus está fazendo milagres em Cafarnaum, no início de sua missão. Começou curando a sogra de Pedro, que estava com febre e apenas com o toque da sua mão, a curou. A notícia se espalhou e logo a frente da casa de Pedro estava tomada por uma multidão de enfermos e pessoas “possessas”, pedindo para serem curados, e Jesus curou a todos.
Estes relatos do evangelista Marcos nos mostram a missão de Jesus como aquele que veio para retirar os sofrimentos das pessoas, corroborando aquele ensinamento já tratado no livro de Jó, acerca do sofrimento não como um castigo de Deus. Jesus veio mostrar o Pai como alguém que está ao lado dos que sofrem, para minimizar-lhes os sofrimentos, não para castigá-los ainda mais. Depois de curar os enfermos em Cafarnaum, Jesus quis ir com os discípulos para as cidades e aldeia da Galiléia, a fim de ali também pregar sua palavra, pois para isso foi que ele veio. Essa imagem literária da ida às cidades e aldeias vizinhas significa o universalismo da doutrina cristã. Jesus demonstrou que Ele não deveria ficar só em um determinado lugar e as pessoas virem a ele, mas que Ele mesmo deveria ir aonde as pessoas estivessem passando por necessidades. A escolha da região da Galileia tem esse significado de universalismo, porque ali moravam pessoas das mais diversas origens e nacionalidades. Foi esse exemplo de Jesus que o apóstolo Paulo seguiu, percorrendo o mundo de cidade em cidade e pregando o evangelho.
Há uma referência nesse evangelho de Marcos, que eu gostaria de destacar: a cura que Jesus faz da sogra de Simão, estando hospedado na casa deste (Mc 1, 30-31): “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus. E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu.” Simão era casado e morava em Cafarnaum. O evangelho não refere que ele tinha filhos, o que não significa que não os tivesse. O evangelista faz referência à sogra de Simão assim de passagem, porque o interesse dele é mostrar o poder de Jesus para curar os enfermos, talvez por isso não entre em detalhes sobre os demais familiares. Assim como Simão, certamente outros discípulos também eram casados. Sabemos que Jesus não tinha uma moradia dele, mas hospedava-se nas casas dos amigos. Um local bastante conhecido para isso era a casa de Betânia, onde moravam os irmãos Marta, Maria e Lázaro, mas é bem possível que ele também se hospedasse em casa de algum outro discípulo. Ressalto isso para defender que não há incompatibilidade entre o discipulado e o matrimônio, que o celibato não foi uma imposição que Jesus fez aos seus discípulos.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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