sábado, 12 de março de 2022

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - 13.03.2022

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – CORPO GLORIOSO – 13.03.2022


Caros Confrades,

Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos Pedro, Tiago e João, exibindo diante deles o seu corpo glorioso, tal qual se manifestaria mais tarde aos doze, após a ressurreição. Transfigurando-se, Jesus dá demonstração do seu poder e da sua origem divina. Nas outras leituras, lemos sobre a glória de Javeh manifestando-se a Abrão, dando início à aliança com o povo eleito, e ainda sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados um dia, tal como aconteceu com Cristo.


Na primeira leitura, lemos o início das tratativas entre Abrão e Javeh, com vistas à formação da aliança, que deu origem ao povo de Israel. Abrão pede um sinal e Javeh mandou que ele trouxesse animais e aves para sacrificar em sua homenagem, ocasião em que Javeh mandou o fogo do céu para a consumação do sacrifício, prometendo a Abrão uma descendência mais numerosa do que as estrelas. Esta passagem do Gênesis (Gn 15, 17), assim como outras similares, formam aquele conjunto de conteúdos legendários da memória hebraica, sustentados durante séculos por uma tradição oral, com imensas probabilidades de alterações ao longo do tempo, pois nenhuma tradição oral se mantém incólume por muito tempo. E reflete também a cosmologia da época, naquilo que se refere à contagem das estrelas, pois estas eram entendidas como se estivessem penduradas na abóbada celeste. De fato, Abrão ficou com certo temor de acreditar nessa promessa de ter uma geração numerosa, por isso, pediu a Javeh um sinal, para que pudesse acreditar. Com efeito, Abrão era já idoso, assim como sua mulher Sarah, e não tinham conseguido gerar filhos até então, quanto mais a idade de ambos avançava, mais isso ficaria impossível. E como se cumpriria a promessa? Essa era a dúvida dele. O sinal dado por Javeh reacendeu-lhe a esperança.


É no contexto dessa dúvida de Abrão que, com o consentimento de Sarah, ele gerou um filho na sua escrava egípcia Agar (a quem chamou de Ismael), antes que Sarah gerasse Isaac. Essas narrações legendárias incluídas no Pentateuco têm por finalidade explicar que todos os povos daquela região seriam descendentes de Abrão, porém enquanto os israelitas eram descendentes pelo lado legítimo da filiação de Isaac, filho da esposa, os outros povos eram descendentes de Abrão pelo lado ilegítimo de Ismael, filho da concubina dele. Essas histórias explicavam também porque aqueles povos habitavam naquela região “entre o rio do Egito (Nilo) e o rio Eufrates” (Gn 15, 18), no entanto, os verdadeiros “donos da terra” eram os israelitas, por serem filhos da esposa legítima de Abrão, os herdeiros da promessa de Javeh a Abrão.


Na segunda leitura, da carta de Paulo à comunidade de Filipos, uma das primeiras comunidades cristãs fundada por ele, pela qual ele tinha grande estima, constata-se a angústia de Paulo (Fl 3, 18) quando ele escreve: muitos de vocês estão se comportando como inimigos da cruz de Cristo..., sede meus imitadores, vivam de acordo com o evangelho que eu vos dei. Não deem maus exemplos, pensando só nas coisas terrenas, porque nós somos cidadãos do céu. Então, Paulo faz o seu discurso futurológico, ao afirmar que (Fl 3, 21), se vivermos de acordo com o evangelho, teremos no céu um corpo glorioso, semelhante ao corpo de Cristo. Os povos gregos eram os grandes comerciantes daquela região do Mediterrâneo. Os filipenses ouviram e aceitaram a pregação de Paulo, convertendo-se ao cristianismo. Mas quando Paulo viajou para fundar outras comunidades, os filipenses se voltaram aos seus afazeres materiais, diversões, comes e bebes, deixando de lado a vivência da fé cristã. Daí a chamada de atenção de Paulo: ouvi dizer que alguns de vocês se comportam como inimigos da cruz de Cristo… não façam isso, o fim destes é a perdição, o deus deles é o estômago e a sua glória está na vergonha. Esta advertência de Paulo cabe bem nos nossos dias, quando percebemos fiéis que esquecem os compromissos de cristãos sufocados pelas urgentes e inadiáveis necessidades do dia a dia. Não podemos deixar que o nosso deus seja a gula nem que a nossa glória esteja nos bens materiais. A vivência da fé deve iluminar nossas atividades profissionais e nossos compromissos cotidianos e não pode ser um empecilho para o exercício destes. Da mesma forma que essas atividades não podem se antepor aos nossos compromissos de fé, mas ambas devem conciliar-se mutuamente.


Na leitura do evangelho de Lucas (9, 29-36), o tema é a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Pela narração do evangelista, deduz-se que eles não entenderam nada daquilo, agarraram no sono e quando acordaram, Jesus já estava se despedindo. O completo entendimento desse episódio somente chegou para eles muito tempo depois, quando Jesus já havia ressuscitado. Chega-se a essa conclusão pelo contexto da narrativa. Primeiro, aquela visão espiritualizada de Cristo conversando com dois personagens também espirituais; segundo, o assunto da conversa (de acordo com Lucas, Jesus conversava com Moisés e Elias sobre a sua futura paixão e morte, coisa que ele já tinha explicado diversas vezes para os apóstolos, mas eles não conseguiam entender); terceiro, os discípulos devem ter ficado hipnotizados com aquela visão fantástica e quedaram-se em profunda letargia, êxtase, talvez. Diz Lucas (9, 36) que aqueles discípulos não falaram nada daquilo pra ninguém e nem conversavam entre eles sobre o assunto. Cada um deve ter pensado que tivera um sonho (ou um pesadelo) e até um teve receio de comentar com o outro, pois não sabia se o outro também tinha visto aquilo.


Uma observação textual merece ser aqui destacada. O evangelista Lucas diz que uma nuvem os encobriu a todos, os discípulos também ficaram cobertos pela nuvem, de onde saiu uma voz, que dizia: este é o meu filho dileto, escutai-o. O texto oficial da CNBB escreve “meu filho escolhido”, mas essa não me parece a melhor tradução. A palavra grega escrita por Lucas é “eklelegménos”, conjugação do verbo “legow”, que São Jerônimo traduziu por 'dilectus'. Conforme o dicionário, o verbo “legow” tem o significado de escolher, mas tem também o sentido de anunciar, declarar, então no contexto da história da salvação, parece-me que este último sentido estaria mais apropriado. Daí eu preferiria traduzir a expressão por “meu filho prometido”, porque assim fica mais coerente com a leitura do Gênesis (primeira leitura), onde se rememora a aliança com Abrão, o futuro desta promessa era a vinda do Salvador. Jesus é, portanto, aquele que fora prometido desde o início. “Escolhido”, como traduziu a CNBB, dá a impressão que Javeh teria vários filhos e escolheu Jesus, por isso não me parece uma tradução apropriada.


Os dois personagens com os quais Jesus dialogava (Moisés e Elias), de acordo com a explicação tradicional da exegese, representam a Lei e os Profetas. Esse entendimento também se encontra na fé judaica, como se pode ver na palavra “tanach”, com a qual os judeus resumem toda a sua Bíblia. A palavra “tanach” é formada de um acróstico com as sílabas iniciais de “torah” (lei de Moisés), “neviim” (profetas representados por Elias) e “chetuvim” (os escritos sapienciais). Ao transfigurar-se e aparecer junto com Moisés e Elias, Jesus estava referendando a Lei e os Profetas e acrescentando a elas os seus próprios ensinamentos. Assim é que se faz o entendimento cristão da presença dos três personagens no episódio da transfiguração.


Agora, ponho outra questão: por que Jesus não chamou todos os doze apóstolos para testemunharem aquela demonstração de sua divindade, mas apenas aqueles três? Fica difícil saber com certeza, mas podemos fazer conjeturas. Talvez, um reconhecimento da liderança de Pedro, fato que seria posteriormente tomado como argumento para justificar o primado do Papa. Talvez o fato de João e Tiago terem parentesco com Jesus (lembremo-nos que, na hora da morte, Jesus confiou Maria, sua mãe, aos cuidados de João) e Tiago é muitas vezes citado como “o irmão do Senhor”, ambos apontados como filhos de Salomé (mulher de Zebedeu), que talvez seria irmã de Maria, mãe de Jesus. Essas genealogias são repletas de controvérsias, no entanto, o fato de terem sido eles dois escolhidos para testemunhar o fato miraculoso reforça essa tese, por serem pessoas de sua maior confiança.


À margem dessa polêmica, exsurge o fato de que nós, cristãos, somos todos escolhidos por Jesus para conhecer sua doutrina e chamados a participar da construção do céu na terra. Aos apóstolos, Jesus não se mostrou a todos, mas a nós, Ele se revelou sem restrição. Daí o conselho de Paulo, que pediu chorando aos Filipenses para que eles não se deixassem levar pela atração das coisas terrenas, porque assim estavam se desviando do foco da missão que ele, Paulo, lhe havia deixado. E quanto a nós, Paulo nos adverte que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, nunca perdendo o foco nas promessas do nosso batismo.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos


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