COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO – 02.07.2023
Caros Confrades:
A liturgia do 13ª domingo comum cede espaço para a solenidade de São Pedro e São Paulo, ambos martirizados no ano 67, sob as ordens do imperador Nero. Ambos tiveram importante função na igreja cristã primitiva. Até o ano 45, Pedro chefiava a Igreja de Antioquia, a mais importante da região oriental, indo então para Roma, e Paulo foi o grande divulgador do cristianismo no mundo greco-romano. Ambos deram seus testemunhos de fé e perseverança, cumprindo o mandato do Mestre e seguindo-o também no martírio: Pedro através da cruz, Paulo através da espada. Pedro foi crucificado, Paulo foi degolado. A fé semeada por eles e regada com o próprio sangue frutificou intensamente em todo o continente europeu, espalhando-se daí para o solo americano.
Tendo saído de Antioquia, no ano 45, Pedro foi ser o chefe da Igreja de Roma, então ainda persiste até hoje a polêmica sobre a autoridade de Pedro para todas as comunidades católicas. A igreja ortodoxa de Antioquia reivindica o direito de primazia sobre Roma, pois ele exerceu a chefia ali por primeiro, mas não reconhece a autoridade do Papa de Roma. Em relação às demais igrejas ortodoxas, essas não o reconhecem, no caso, cada uma delas possui seu próprio Patriarca. Desde o Papa Paulo VI, nos anos 60, iniciou-se um trabalho de aproximação de Roma com as igrejas orientais, passados 900 anos desde que houve a separação entre oriente e ocidente. O Papa Francisco vem mantendo essa nova tradição, estreitando sempre mais os laços entre as igrejas irmãs. Não faz muito tempo, ele e o Patriarca da Armênia celebraram missa e participaram de diversas solenidades ali. A igreja armeniana é considerada a primeira igreja cristã oficialmente reconhecida pelo Estado, no ano 301, enquanto que o cristianismo só foi reconhecido em Roma vinte anos depois, em 321, quando do reinado do imperador Constantino. A Igreja de Antioquia veladamente reclama a sua originalidade, pois foi ali onde Pedro foi bispo, antes de mudar-se para Roma. Novos contatos e entendimentos deverão ensejar vitoriosos passos visando ao congraçamento de todas.
As leituras litúrgicas deste domingo recordam fatos extraordinários atinentes à vida pessoal dos apóstolos Pedro e Paulo. Sobre Pedro, o escritor São Lucas narra, nos Atos dos Apóstolos (12, 1-11) a miraculosa libertação dele da prisão do rei Herodes, que o prendera para agradar os judeus adversários dos cristãos. Lucas destaca a liderança de Pedro e tamanho da fé que a comunidade romana tinha nele. O rei Herodes sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, se comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração que havia entre a comunidade de judeus convertidos e Pedro, destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para libertá-lo da prisão. A oração das nossas comunidades em prol dos seus pastores, assim como o apoio nas iniciativas da paróquia, faz parte da obrigação dos fiéis e demonstra a presença do espírito comunitário cristão.
A narrativa da libertação de Pedro tem um certo tom cinematográfico, assim como se costuma ver nos filmes de ficção científica. Na véspera do dia em que Herodes iria apresentá-lo ao público judeu, Pedro recebeu a visita do anjo do Senhor, que o conduziu para fora da prisão. Lucas diz (At 12, 9) que Pedro ficou sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele estava apenas tendo uma visão. Imaginemos a cena: Pedro dormia e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que dormiam ao lado dele. As correntes que lhe prendiam as mãos se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a atenção dos demais guardas. Os portões abriram-se sozinhos diante dele e os guardas de plantão nada perceberam. Pedro seguia o anjo e via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Podemos imaginar a grande festa que aconteceu na comunidade dos novos cristãos com a chegada de Pedro. E podemos imaginar também a ira e a decepção de Herodes, quando soube que Pedro não estava mais na prisão e ninguém sabia explicar como ele havia saído de lá. O fato é que a mão do Senhor não poderia faltar nessa hora crucial para a Igreja primitiva. A libertação de Pedro veio confirmar para a comunidade o valor da oração e atestar a proteção divina para com o seu líder.
Na segunda leitura, da Carta a Timóteo, o apóstolo Paulo, preso em Roma, diz que aguardava só a hora do seu sacrifício, expressando a sua fé e a confiança na salvação, segundo a promessa de Cristo, que ele anunciara por todas aquelas paragens. Combati o bom combate, terminei a corrida, mantive a fé, diz ele numa expressão que se transformou numa espécie de hino da vitória, que todo bom cristão pode entoar. A coroa da justiça, diz ele, está reservada não apenas para mim, mas para todo aquele que espera, com amor, a manifestação gloriosa de Cristo. As palavras de Paulo podem ser entendidas também como uma espécie de testamento espiritual, que ele depositou nas mãos do seu discípulo Timóteo, para ser distribuído com todos os cristãos. Ao chegar em Roma como prisioneiro, Paulo sabia que o seu fim estava próximo. Não foi necessário que a mão do Senhor providenciasse para ele a mesma atuação miraculosa que dedicara a Pedro, em outra circunstância similar, pois o trabalho de Paulo já estava concluído, conforme ele mesmo compreendera.
A leitura do evangelho de Mateus (Mt 16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de “pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com Pedro, porém não mencionam o detalhe das “chaves do reino do céu”, somente Mateus. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz tal referência, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Esse trecho foi o que, por volta do século IV, deu origem à doutrina da autoridade superior do bispo de Roma sobre todas as demais igrejas, o que não é aceito pelas igrejas orientais. Sabemos, pela história, que a igreja cristã de Roma foi a última a ser constituída. As igrejas de Constantinopla, de Antioquia, de Alexandria, de Esmirna, da Capadócia, de Éfeso, da Armênia, por exemplo, são todas mais antigas do que a de Roma. Então, por que o bispo de Roma teria autoridade sobre as igrejas mais antigas? Os líderes dessas igrejas orientais nunca aceitaram esse fato, alegando alterações no texto, o que foi objeto de calorosas discussões em diversos concílios, vindo por fim a provocar o cisma das igrejas de língua grega com a igreja de língua latina, no ano 1054. Somente após o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI começou um movimento de reaproximação da igreja romana com as igrejas orientais, o que vem sendo continuado pelos papas seguintes, com expressivos progressos. O papa Bento XVI, em sinal de deferência, nomeou como cardeais dois prelados orientais e espera-se que, num breve futuro, os elementos de discórdia sejam superados. O Papa Francisco mantém vivos laços de amizade com os líderes orientais, tanto católicos, quando judeus e islâmicos.
Pois bem, podemos concluir que Pedro e Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa reflexão, quando nos deparamos com a existência de tendências e grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de Cristo com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época. Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre deverá ser a fiel e esclarecida adesão à mensagem de Cristo, que tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo com fidelidade.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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