COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO COMUM – A VINHA DO SENHOR – 08.10.2023
Caros Confrades,
Neste 27º domingo comum, o tema da liturgia nos traz, mais uma vez, a imagem da vinha para representar o povo de Deus, naquela época constituído pela casa de Israel. Curiosamente, no seu sermão perante os fariseus, Jesus repete quase integralmente a mesma metáfora do profeta Isaías composta 700 anos antes, utilizando a figura do vinhedo. Percebe-se uma nítida preferência de Jesus pelos ensinamentos deste Profeta, que ele reproduz diversas vezes nos seus discursos. Só que os doutores da lei, fechados nas suas convicções e formalismos, nada entenderam. Faltou pouco para Jesus dar os “nomes dos bois”. Mas essa atitude dos fariseus não é algo do passado, pois isso também acontece conosco, quando nós estamos tão embevecidos com a nossa soberba e autossuficiência, nosso apego à tradição, de modo que não conseguimos ver a mensagem de Deus através dos acontecimentos.
Na primeira leitura, o profeta Isaías (cap 5, 1-7) fala de Jerusalém usando a figura da vinha, construída pelo seu proprietário, e arrendada a vinhateiros, que dela não cuidaram devidamente. Resultado: em vez de produzir uvas de boa qualidade, produziu uvas selvagens. Para a nossa realidade nordestina, a figura do vinhedo não é tão significativa, como é, por exemplo, para os gaúchos, donos das mais famosas vinícolas do nosso país. Por não ser uma realidade típica do ambiente nordestino, a leitura do evangelho não proporciona uma exata visão da metáfora usada por Jesus. Talvez se ele tivesse comparado com um roçado de milho e feijão, fosse uma figura mental mais apropriada para a nossa compreensão cultural. No entanto, esse era um assunto bastante comum para o povo de Israel, assim como o arrendamento dessas plantações para agricultores, o que se tornava um assunto bem familiar para eles. E nem era preciso grande esforço para alcançar o sentido figurado da imagem, porque o Profeta explicou bem claramente: “a vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e o povo de Judá, sua dileta plantação; eu esperava deles frutos de justiça — e eis injustiça; esperava obras de bondade — e eis iniquidade.” (Is 5, 7) A época histórica do profeta Isaías foi um período de grandes convulsões sociais e políticas, em que a nação hebraica vivia em permanente ameaça de invasão por estrangeiros, principalmente egípcios e assírios. O Profeta alertava para o perigo da idolatria e consequente afastamento de Javeh, que ameaçava: “vou mostrar-vos o que farei com minha vinha: vou desmanchar a cerca, e ela será devastada; vou derrubar o muro, e ela será pisoteada” (Is 5, 5). Por fim, depois de tanto falar sem ser ouvido e incomodar as autoridades, consta que o profeta Isaías foi serrado ao meio, por ordem do rei, sendo assim a sua morte. O que ocorreu logo depois foi a derrota dos assírios para os babilônios e, por causa da aliança que o rei de Israel havia feito com os assírios, os babilônios invadiram Jerusalém e levaram o povo cativo. Aconteceu exatamente como o Profeta anunciara.
Temos neste domingo um salmo responsorial totalmente contextualizado com a primeira leitura, como se fosse uma continuação desta. Consta ser esse um salmo de Assaf, um personagem que viveu na época pós-exílica, quando ocorria a reconstrução de Jerusalém. O salmista personifica a alma do hebreu arrependido, que compreendeu o castigo merecido do exílio e agora pedia perdão a Javeh, prometendo não mais afastar-se dele. “E nunca mais vos deixaremos, Senhor Deus!/ Dai-nos vida, e louvaremos vosso nome!/ Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo,/ e sobre nós iluminai a vossa face!/ Se voltardes para nós, seremos salvos!”, diz ele, após ter feito uma súplica de arrependimento: “Voltai-vos para nós, Deus do universo!/ Olhai dos altos céus e observai./ Visitai a vossa vinha e protegei-a!” O texto do salmo reflete o ânimo predominante no povo hebreu, naquele momento de retorno à terra prometida, liberto do cativeiro. Consta, no livro das Crônicas (1Cro 16, 7) que Assaf foi nomeado por Davi para ser o chefe dos cantores que vinham à frente da Arca da Aliança, quando essa relíquia foi trazida de volta para Jerusalém, após a libertação do povo e que os filhos de Assaf foram os cantores que levaram a Arca para o templo, já no tempo de Salomão, após a restauração. Desse modo, a salmodia funciona, ao mesmo tempo, como eco e como complementação da leitura do profeta Isaías.
Temos na leitura do evangelho de hoje (Mt 21, 33-43), outra parábola contada por Cristo, na tentativa de ser entendido pelos fariseus e doutores da lei. Os dois domingos anteriores trouxeram também parábolas similares, todavia, nessa parábola da vinha, Jesus foi ainda mais claro e os fariseus entenderam a história contada, só não compreenderam que aquilo tinha a ver com eles. Eles já conheciam o discurso sobre a vinha, feito pelo profeta Isaías, porque na condição de doutores da lei e sacerdotes, a Tanach era o seu livro de leitura diária na sinagoga, não havia como não relacionar de imediato a parábola contada por Jesus com a advertência do Profeta, em época histórica diversa. Percebe-se, pela leitura, que os fariseus ficaram indignados com a reação daqueles “vinhateiros rebeldes”, pois sugeriram que eles deviam ser castigados com morte violenta e a vinha devia ser entregue a outros operários. Porém, a sua mente preconceituosa contra Jesus não permitia que eles enxergassem, na pessoa deste, a figura do “filho do dono da vinha”. E assim, a história contada por Jesus entrou nos ouvidos deles como “história de trancoso”, como se Jesus estivesse apenas testando o senso de justiça deles.
O evangelista Mateus, no versículo 39, coloca na boca de Jesus a previsão do que iria acontecer com Ele, algum tempo depois, por ação dos fariseus instigando o povo: “Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram.” Outra vez, a figura da vinha representava a cidade de Jerusalém, para fora da qual Jesus foi levado a fim de ser crucificado. E ainda segundo o evangelista Mateus, Jesus teria encerrado dizendo que: o reino de Deus será tirado de vocês e será entregue a outro povo, que produzirá bons frutos”. (vers 43) Na minha opinião, diria que essa parte final não deve fazer parte da parábola original contada por Jesus aos fariseus, porque assim Ele estaria sendo direto demais e até grosseiro, esse não era o estilo de Jesus. Parece-me mais um “comentário” feito pelo evangelista por ocasião da produção do seu texto, pois aquele evangelho se destinava aos convertidos de Antioquia, um grupo composto por judeus da diáspora e por pagãos de outras nacionalidades, todos afastados do judaísmo tradicional. Por isso, Mateus faz questão de salientar que o reino de Deus, que outrora havia sido prometido aos judeus (leia-se fariseus), agora havia sido retirado deles e passado para os outros povos. Como se sabe, as palavras de Jesus não foram escritas na hora em que ele falava, mas foram guardadas na memória e na fé dos seus seguidores por muito tempo, até serem escritas, vários anos após a sua morte e ressurreição. Por isso, não se pode entender o texto do evangelho como se fossem transcrição literal de palavras pronunciadas por Jesus, mas sim como testemunhos das verdades por Ele ensinadas.
Meus amigos, aproveito o espaço para fazer uma referência à memória litúrgica de São Francisco, celebrada faz poucos dias, a grande festa religiosa do nordeste, fazendo ecoar em diversas localidades o hino “cheio de amor, as chagas trazes do Salvador.” É curioso como algumas pessoas têm uma vida breve, porém muito fecunda. São Francisco viveu apenas 44 anos e foi canonizado logo dois anos após sua morte. Quantas realizações fez ele em tão curto espaço de tempo vivido, quanta densidade na sua biografia e nos seus exemplos e ensinamentos. A imagem do santo pobre e humilde se encaixou muito bem no tipo cultural do povo nordestino, de modo que a empatia foi instantânea e profunda. Nós somos testemunhas vivas e herdeiros dessa formação franciscanista, que cada um incorporou ao seu modo. Os diversos santuários e as diversas obras sociais espalhadas por diferentes cidades atestam a presença vibrante do franciscanismo no meio da sociedade nordestina. É certo que não foi apenas no nordeste que se desenvolveu a devoção a São Francisco, mas é também certo que é no nordeste onde essa devoção tem seus adeptos mais fervorosos e suas marcas mais visíveis. Basta lembrar a gigantesca estátua de São Francisco, em Canindé, que deve ser a maior do mundo erguida para este Santo. Isso mostra, numa dimensão material, o tamanho da credibilidade que São Francisco tem entre o nosso povo.
E pensar que ele, na sua sincera humildade, não pretendia jamais tal popularidade nem tanta fama. No entanto, nele se cumpriu aquilo que Maria falou quando recebeu a saudação do anjo: pôs os olhos na humildade de sua serva e por isso todas as gerações me chamarão bem-aventurada. A vida de São Francisco e a obra dos seus seguidores vem comprovar, sem nenhuma dúvida, que Deus exalta os humildes. O nosso Papa Francisco é uma pessoa que, no nosso tempo, incorpora a alegria e a humildade franciscanas, fato que conquista a simpatia de pessoas das mais diversas origens e crenças ao redor do mundo. É a prova de que o carisma franciscano continua atual e ativo, numa época em que o mundo tanto necessita de pessoas com esse perfil. São Francisco, rogai por nós.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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