sábado, 28 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMILIA - 29.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 29.12.2024


Caros amigos,


No domingo do que medeia entre o Natal e o Ano Novo, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré. A festa litúrgica traz para a consideração das famílias cristãs o exemplo da família sagrada, encerrando o ano civil com um incentivo à reflexão sobre a situação das nossas famílias, local onde a humanidade se perpetua, não apenas no aspecto biológico, mas e principalmente, no aspecto cultural, valorativo, religioso, ético, atingindo a personalidade inteira das pessoas. Não é por outro motivo que vivemos em num mundo repleto de desajustes em todos os sentidos, ou seja, a falta de estrutura e segurança no ambiente familiar produz adultos insatisfeitos, imaturos, violentos, egoístas e despreparados para a vida.


Neste início do século XXI, a organização familiar passa por um período de turbulência nunca antes verificado. Com efeito, o modelo familiar tradicional, constituído por um homem, uma mulher e seus filhos, está agora competindo com outras modalidades familiares que não existiam no passado, quais sejam, as famílias resultantes de uniões homoafetivas, com filhos adotados, e ainda as famílias monoparentais: pai e filhos de diferentes mães, mãe e filhos de diferentes pais, famílias multigenéticas decorrentes de diversas uniões matrimoniais. Essas situações eram totalmente reprimidas e rejeitadas no passado, mas atualmente, a sociedade as aceita sem restrições. A religião católica tem bravamente resistido a essas mudanças, que são consequências diretas da maior assimilação dos comportamentos sexuais alternativos na nossa sociedade, os quais se tornam cada vez mais frequentes e gozam de reconhecimento jurídico pelo Estado. Não pretendo fazer aqui um juízo de valor sobre os diversos modelos familiares, deixo isso para a consideração de cada um. A análise que faço é apenas para destacar que a instituição social mais antiga que se conhece, que é a família tradicional, vem passando por uma reforma substancial, sendo motivo também de discussão legislativa no Congresso Nacional (Estatuto da Família).


Voltando ao tema inicial, a liturgia deste domingo coloca a família de Nazaré como o modelo da família perfeita, até mesmo com as eventuais vicissitudes que ocorrem em todos os grupos familiares: por exemplo, o 'pito' que Maria deu no menino Jesus, depois da estressante procura por Ele, na ocasião do retorno de Jerusalém para Nazaré, depois da Festa da Páscoa. Um puxão de orelhas educativo (agora proibido pela lei dos castigos corporais) nunca fez mal a ninguém, desde os tempos bíblicos.


Na primeira leitura, temos um trecho do livro do Eclesiástico (Eclo, 3, 3-17), também conhecido como Ben Sirac ou Sirácide, em alusão ao seu escritor. Este era um judeu chamado Jesus Ben Sirac, que escreveu uma meditação sobre a felicidade, partindo da sabedoria tradicional do povo hebreu, numa época em que a cultura grega se espalhava entre os judeus. O autor quis reforçar os valores hebraicos tradicionais, que não devem ser substituídos pela cultura alienígena, detalhando-os para ensinamento dos mais jovens. Este livro não fazia parte da antiga bíblia judaica, motivo pelo qual não é aceito pelos judeus, sendo por isso considerado deuterocanônico. Ele foi incluído no cânon da Bíblia Católica após muitas discussões sobre a pertinência disso, porque nem todos os Padres da Igreja antiga assim o consideravam. Foi um dos motivos do protesto de Lutero, que não concordava com a sua inclusão na Bíblia.


Dentro do tema geral do livro, que trata da felicidade, a leitura escolhida pela liturgia traz conselhos aos filhos sobre o respeito para com os pais, fato que tem a aprovação e a bênção de Javé. O cuidado dos filhos com os pais idosos, mesmo quando já sem lucidez, além de ser uma obrigação moral deles, torna-se também motivo de santificação, para perdão dos pecados, cuja recompensa será devolvida por Javé. O conteúdo do texto se aplica perfeitamente na nossa sociedade, como aliás se aplicou em todas as épocas, porque a relação pais e filhos foi sempre um dos pontos fundamentais de sustentação da sociedade e as admoestações da sabedoria antiga são, podemos dizer, perenes e supraculturais.


A segunda leitura, de Paulo aos Colossenses (Cl 3, 12-21) exorta os membros daquela comunidade ao exercício da caridade, da tolerância e do amor fraterno, como regra básica para a harmonia que deve marcar a vivência dos cristãos. Paulo escreveu esta carta quando estava na prisão em Roma e soube de algumas desavenças que ocorriam entre os cristãos de Colossos. Conclama as esposas a serem solícitas com os maridos e estes a amarem as esposas e não ser grosseiros com elas. Depois, admoesta os filhos para obedecerem aos pais, até parece que Paulo procura complementar ou atualizar a leitura do Sirácide, texto que ele devia muito bem conhecer.


No evangelho de Lucas (Lc 2, 41-52), temos mais um daqueles detalhes da vida de Jesus que somente este evangelista veio a saber, por conta da sua convivência cotidiana com Maria. Inicia Lucas dando amostras da fidelidade da família de Nazaré ao cumprimento da Lei de Moisés, afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. Pela Lei mosaica, os jovens só tinham obrigação de acompanhar os pais para a celebração da Páscoa a partir dos 13 anos de idade, mas José e Maria levaram Jesus um pouco mais cedo, aos 12 anos, deduzindo-se desse fato que aquela teria sido a sua primeira participação. No retorno, o menino se desgarrou do grupo e isso não foi percebido pelos seus pais, pois essas viagens a pé eram feitas em caravanas compostas de parentes e pessoas residentes em Nazaré e em cidades próximas. Nesse grande grupo, por certo as crianças maiores tinham liberdade para circular entre os parentes e conhecidos, de modo que a ausência de Jesus não foi notada de imediato durante a caminhada do dia. Provavelmente foi na primeira dormida, por não ter ele voltado para o grupo dos pais, que deram conta de sua falta. Por isso, diz Lucas que eles haviam caminhado já um dia inteiro quando perceberam a ausência do menino e voltaram a Jerusalém para procurá-lo.


Cada um de nós, pela experiência de pais e mães, pode imaginar a aflição de José e Maria por terem 'perdido' o menino numa cidade grande, cheia de estrangeiros, no meio destes também gente de maus costumes (porque isso há em todo lugar), pode supor o que se passava na cabeça e no coração deles. E ainda demorou um tempo enorme: três dias de buscas, que devem ter parecido uma eternidade. Jerusalém, em tempos de festa da Páscoa, devia ficar assim como ficam as nossas cidades romeiras de Canindé e Juazeiro do Norte, na época dos festejos. Quem já esteve lá nesses períodos, pode fazer melhor uma ideia do ambiente. Vê-se que, apesar de toda a fé, que certamente nunca lhes faltou, a situação psicológica de José e Maria era de grande estresse e angústia, tanto que, ao encontrarem o menino na sinagoga, em vez de se sentirem aliviados, deram-lhe um 'puxão de orelhas': porque você fez isso conosco, disse Maria?


Eu fico aqui imaginando a cena de Maria contando essas histórias para Lucas. Com certeza, um grande exercício de paciência deste, porque penso que somente a muito custo Maria concordava em revelar certos detalhes. E para ela falar no 'pito' que deu no menino após a angustiante procura, deve ter sido permeado de reticências, as quais Lucas ia completando com o conhecimento que ele tinha da personalidade de Maria. E a resposta de Jesus até parece indelicada, pois o mais esperado seria um pedido de desculpas. No entanto, Ele chegou a ser até arrogante ao dizer: eu estava cuidando das coisas do meu Pai... e Maria se acalmou e conservou mais este mistério em seu coração.


Com este episódio, o evangelista Lucas conclui a parte em que trata da infância de Jesus. Certamente, Maria deve ter contado a ele outros detalhes que, no entanto, não foram incluídos neste escrito. Depois deste fato, Jesus já vai aparecer adulto, com cerca de 30 anos. As especulações dos estudiosos indicam que, nesse meio tempo, ele frequentou uma escola rabínica, provavelmente a escola dos Essênios, uma comunidade que existiu nas margens do Mar Morto e que foi destruída por ocasião da dominação romana. Embora sendo Deus, Jesus não 'nasceu sabendo' as escrituras, ele precisou estudar e assim, quando iniciou sua missão no deserto, após o batismo por João, Ele já tinha conhecimento suficiente da Lei de Moisés e dos Profetas, como os doutores do seu tempo. O que o evangelista fez questão de ressaltar foi que, superado esse episódio, o menino foi obediente em tudo aos seus pais. Esse exemplo de harmonia familiar é o grande legado que devemos aprender da Sagrada Família de Nazaré, o qual deve ser assimilado também pelos modelos familiares alternativos, para que sempre se orientem no sentido dos verdadeiros ensinamentos cristãos.


Cordial abraço a todos. Renovados votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

sábado, 21 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DO ADVENTO - 22.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – PRIMEIRA TESTEMUNHA – 22.12.2024


Caros Confrades,


Aproxima-se o Natal e a liturgia deste quarto domingo do Advento nos lembra quem foi a primeira testemunha da iminente chegada do Salvador: foi Isabel, esposa de Zacarias, quem recebeu a primeira notícia da chegada do Messias, através da reação de menino João, em seu ventre. A liturgia comemora a visita de Maria à sua prima Isabel, que morava nas montanhas, aonde ela foi apressadamente a fim de dar-lhe assistência nas primeiras semanas após o nascimento de João. A gravidez de Maria, então incipiente, era segredo apenas dela, nem José ainda sabia, mas “o menino exultou de alegria” nas entranhas de Isabel e ela foi inspirada pelo Espírito Santo para reconhecer e interpretar aquele fato.


Antes de prosseguir no tema da visita de Maria, eu gostaria de ressaltar aqui a espetacular previsão do profeta Miqueias, com um grau de acerto de cem por cento, sobre o local onde nasceria o Messias: Belém de Judá. Miqueias era natural também do reino de Judá, morador na cidade de Mirasti, próxima de Belém e era contemporâneo do profeta Isaías, tendo vivido por volta de 700 anos antes de Cristo. Ele é um dos chamados 'profetas menores', porque o seu livro tem apenas sete capítulos, contudo, foi Miqueias o único dos profetas a afirmar que Belém seria o berço terreno do Messias. Observemos como se pode perceber o dedo de Javé conduzindo as ações humanas na história, para a realização de suas promessas a Abraão. Quando Miqueias profetizou a chegada do Messias em Belém, foi cerca de 700 anos antes de José e Maria se casarem. Na época dos fatos, eles não moravam em Belém, e sim em Nazaré, porém as circunstâncias levaram o casal até Belém. São Tomás de Aquino afirmava que Deus age por “causas segundas”, isto é, não de modo direto, mas servindo-se dos acontecimentos. No caso, o agente da vontade de Javé foi o governador da Síria, Quirino (Lc 2,2), que era pagão, determinando um recenseamento de todos os moradores do império romano. Quando o rei Arquelau, da Síria, foi vencido pelos romanos, Quirino era o magistrado (governador) romano supremo na região do Oriente Médio, tendo ordenado o recenseamento dos habitantes do seu território, o qual, conforme estudos históricos, se deu entre os anos 8 e 6 a. C. Na Galileia, o governador era Herodes, mas o evangelista Lucas, se refere a Quirino porque Herodes era só o governador local, subordinado a Quirino, que era a autoridade romana máxima da região.


Por que essa referência a Herodes, que nem foi citado na leitura do evangelho? Porque este fato está associado com a visita dos magos do oriente, que chegaram ao palácio do rei Herodes perguntando onde estava o rei dos Judeus recém-nascido... para Herodes aquilo foi um choque, pois o rei era ele e não havia nascido nenhum filho dele. De todo modo, Herodes chamou os seus sacerdotes e adivinhos para saber do que se tratava, porque aquilo podia ser um sinal de alguma insurreição popular contra os romanos, talvez algum descendente real de uma tribo daquele povo. Logo, logo os sacerdotes lembraram da profecia de Miqueias: Belém, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel, e então os magos foram orientados para irem até Belém. E depois Herodes mandou matar todos os recém-nascidos da região, por via de dúvidas, embora ele não acreditasse naquelas balelas de profecias. A narrativa do evangelista Lucas, que é como sempre recheada de detalhes históricos, nos ajuda a contextualizar os fatos e a fundamentar historicamente a época do nascimento de Cristo.


Na segunda leitura, da carta aos Hebreus, o autor desconhecido desse texto sagrado faz referência ao nascimento de Cristo, dizendo que Javé não se satisfazia com os holocaustos e oferendas de animais, sacrifícios imperfeitos que não expiavam os pecados da humanidade, por isso mandou seu próprio Filho para tornar-se a oferenda definitiva. Cristo, sacrificando-se de uma vez por todas, suprime e substitui todos os demais holocaustos e redime a humanidade. Ele veio para cumprir a promessa: “Eis que eu venho. No livro está escrito a meu respeito: Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade.' ” (Heb 10, 7) O “livro” onde isso está escrito não é outro senão “a Bíblia (biblos)”, ou simplesmente, “o livro” escrito pelos profetas. São vários os profetas, mas o livro é um só, porque todos os seus escritores colocaram ali um conteúdo que se integra e se correlaciona, daí que não interessam os nomes dos autores materiais, já que um só é o seu autor intelectual: Javé. (Apenas para esclarecer aos colegas, esta carta era antigamente atribuída a Paulo e se dizia “carta de São Paulo aos Hebreus”, mas estudos posteriores dos biblistas levaram à conclusão de que não foi Paulo o seu autor, e visto que não se sabe quem foi, diz-se apenas “carta aos Hebreus”.)


No evangelho de Lucas (Lc 1, 39-45), lemos o relato muito conhecido da visita de Maria a Isabel, que se tornou a primeira testemunha da gravidez divina de Maria, por inspiração do Espírito Santo. A narração de Lucas é bastante rica em detalhes e, ao longo da história, estimulou a imaginação dos artistas dos mais variados modos, motivando a produção de inúmeras obras de arte retratando o tema. E Lucas foi aquele agente escolhido, pela sua convivência com Maria após a morte de Cristo, tendo sido escolhido por Deus para recolher d'Ela os segredos mais reveladores da vinda de Cristo, que não teriam sido conhecidos pela humanidade se não fosse essa situação privilegiada de ser ele uma pessoa letrada e da total confiança de Maria. Por conta disso, o seu evangelho tem uma característica singular, no que diz respeito ao conhecimento da infância de Jesus e à vida pessoal de Maria.


Pois bem. Diz Lucas que Maria foi apressadamente à região das montanhas, para visitar sua prima Isabel, que estava nos dias próximos do parto. Maria também estava grávida, embora de pouco tempo, gravidez ainda não perceptível, portanto, a própria Isabel não tinha conhecimento disso. E como era costume (e ainda é em grande parte da região interiorana do Nordeste), as parentas próximas (mãe, irmãs, primas) vão prestar assistência à parturiente, no período pós-parto, denominado de “resguardo”, especialmente quando se trata do primeiro filho. Tem aquela tradição que diz que Isabel mandou acender uma grande fogueira em frente da sua casa lá no alto, para que Maria e os parentes, que moravam no vale fossem avisados da proximidade do seu parto. Evidentemente não há embasamento bíblico para esse justificar tal procedimento, mas de qualquer modo, essa seria a origem das fogueiras juninas, que ainda hoje anunciam São João.


Ao se encontrarem, Isabel fez aquele célebre discurso teológico, que se tornou o tema da oração mais tipicamente mariana: ave, cheia de graça, bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Com certeza, Lucas relata esses detalhes para destacar o reconhecimento da divindade de Cristo, mesmo antes do seu nascimento. Isabel, como as mulheres judias daquele tempo, não era uma pessoa letrada, mas devia frequentar a sinagoga, como todos os judeus, e certamente sabia das promessas de Deus através dos profetas, pela explicação dos rabinos, acerca da vinda do Salvador. Muito provavelmente, o discurso teológico de Isabel foi recomposto por Lucas, a partir de sucintas narrações feitas por Maria, que na sua humildade e tendo sido ela e Isabel as únicas pessoas a testemunharem o evento, não iria fazer para si mesma um cântico de exaltação. Diz Lucas que Isabel ficou cheia do Espírito Santo quando Maria chegou e sentiu o bebê mover-se de modo diferente no seu ventre, o que a levou a proferir essas palavras inspiradas sobre a gravidez da prima. Na tradição teológica, diz-se que a primeira manifestação do Espírito Santo ocorreu no batismo de Cristo, quando ele já era adulto, juntamente com a “voz” do Pai, ou seja, a primeira manifestação da trindade divina. Mas podemos dizer que foi, de fato, Isabel a primeira pessoa que sentiu a inspiração do Espírito Santo com a presença de Maria, ao mesmo tempo em que isso indica a missão especial que deveria ter o filho dela, Isabel, na preparação do povo judeu para o reconhecimento do Cristo Messias.


Por fim, é importante destacar que a celebração da festa do Natal em 25 de dezembro não corresponde aos fatos históricos narrados por Lucas. Provavelmente, o nascimento de Jesus ocorreu no mês de março, isso também não ficou registrado. No entanto, foi uma imposição do imperador romano Constantino a data de 25 de dezembro para a celebração do Natal, sacralizando a festa pagã do deus saturno (saturnalia), que acontecia tradicionalmente em Roma nesta época da passagem do solstício de inverno, entre os dias 17 e 23 de dezembro, festas acompanhadas de lautos banquetes e distribuição de presentes. Depois dessa festividade, todos se recolhiam até terminar o inverno. Independentemente disso, porém, para nós cristãos, o que interessa é o nascimento de Cristo, que aconteceu uma vez na história, mas que se repete constantemente em nossos corações, quando renovamos nosso compromisso de viver segundo o evangelho.


Com sinceros votos de Feliz Natal a todos.

Antonio Carlos

sábado, 14 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3 DOMINGO DO ADVENTO - 15.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DO ADVENTO – ALEGRA-TE JERUSALÉM – 15.12.2024


Caros Confrades,


Neste 3º domingo do advento, a liturgia retoma o tema da alegria sobre Jerusalém, servindo-se das palavras do profeta Sofonias. Alegra-te, Jerusalém, diz ele, o Senhor teu Deus está no meio de ti. O contexto em que o Profeta faz essa invocação é bem diferente deste que se celebra no Advento, como explicarei em seguida, mas o texto aqui é utilizado para invocar o Senhor que está para chegar. Este domingo é também conhecido como o “domingo laetare” (alegrar-se), em que a liturgia nos convida a ficarmos alegres com a aproximação do Natal. E a leitura do evangelho escrito por Lucas nos traz uma interessante sugestão de reflexão, na perspectiva do ano novo litúrgico, que nos conclama à revisão de nossas atitudes e a renovar nossos compromissos de cristãos.


O profeta Sofonias (3, 14-18) convida o povo a se alegrar, porque o Senhor afastou os inimigos de Jerusalém. Este profeta viveu antes do cativeiro da Babilônia, numa época em que o povo hebreu dividia suas preferências políticas entre os reinos do Egito e da Assíria, buscando qual seria o melhor para fazer aliança. Dentre as autoridades hebraicas, havia os simpatizantes da aliança com o Egito e os que defendiam a aliança com a Assíria, tendência esta que era a favorita do rei de Judá, na época de Sofonias (por volta do ano 630 a.C.), o rei Josias. Não demorou muito para que a Assíria fosse dominada pelos exércitos babilônicos, liderados por Nabucodonosor. Visto que os hebreus tinham essa aliança com a Assíria, tiveram a mesma sorte que os seus amigos assírios e foram levados cativos por Nabucodonosor para a Babilônia. Então, Sofonias profetizou nessa época anterior ao domínio babilônico, conclamando o povo a alegrar-se, porque Javé é o valente guerreiro que salva seu povo. Era uma tentativa de exaltar o nacionalismo judaico diante das ameaças de dominação por povos estrangeiros. Hoje nós sabemos que essa alegria durou pouco tempo, porque logo veio a escravidão. Então, a liturgia retira o texto de Sofonias do seu contexto histórico para encaixá-lo na temática do Advento.


A segunda leitura, extraída de Paulo aos Filipenses, também está deslocada do seu contexto histórico, porque quando o Apóstolo recomendava aos cristãos de Filipos que se alegrassem sempre no Senhor, pois Ele está próximo, queria referir-se à segunda vinda de Cristo que, conforme era o entendimento da época, acreditava-se que seria 'em breve'. Outra vez, precisamos abstrair da situação concreta do texto para que possamos compreendê-lo na perspectiva da temática do Advento. O fato de Paulo exortar os Filipenses à alegria sobre a proximidade da vinda do Senhor passa a ser então apropriado dentro do roteiro do “domingo laetare”, nessa etapa de preparação para a celebração do Natal. Portanto, a liturgia faz uma espécie de silepse histórica, levando-nos a fazer um certo exercício mental para compreendermos dentro do contexto do Advento dois textos que se referem a outras circunstâncias históricas. Na verdade, parece-me que a única justificativa é porque ambos contemplam o tema da alegria, que a liturgia pretende atribuir a este terceiro domingo.


Agora, afastando-nos do tema da alegria, examinemos o evangelho de Lucas (3, 10-18), que destaca a figura de profética de João Batista, pregando o batismo da conversão e batizando no Jordão. Diz Lucas que as pessoas convertidas procuravam João perguntando “o que devemos fazer” para viverem em coerência com o batismo da conversão. E João exortava a todos, de acordo com a atividade social exercida pelo batizado, recomendando-lhes o fiel cumprimento da missão de cada um. Aos vendedores e compradores, ele dizia: quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo. Ou seja, saibam partilhar os bens com os mais pobres. Aos cobradores de impostos, esses que, desde aquele tempo, já eram vistos pelo povo como corruptos, pecadores públicos, João dizia: não cobreis mais do que foi estabelecido, ou seja, pratiquem a sua atividade com justiça, não façam extorsão. Aos soldados, esses que eram também considerados pessoas costumeiramente violentas e perversas, João dizia: não tomeis à força dinheiro de ninguém, nem façais falsas acusações, ou seja, não exerçam o poder com abuso de autoridade. E mais: ficai satisfeitos com o vosso salário, ou seja, controlem a ambição de sempre querer mais. È proveitoso meditarmos sobre esse discurso de João, exortando os convertidos a viverem conforme sua conversão.


Com efeito, o discurso de João até parece que está direcionado para a sociedade dos nossos dias. O tempo do Advento é uma época adequada para fazermos um exame das nossas atitudes e avaliarmos como está a fidelidade à nossa vocação. João Batista está mostrando que, para cada um de nós, o Menino Deus tem um pedido especial, qual seja, a de vivermos com dignidade a nossa missão no dia a dia. Se tivermos o cuidado de 'ouvir' a voz de Deus nas nossas consciências em cada decisão que tomamos na vida, poderemos perceber que, em cada situação, Ele nos pede e espera de nós uma atitude de compromisso com a solidariedade, com a justiça, sempre no sentido do melhor cumprimento das verdades que Ele ensinou. Essa leitura do evangelho de Lucas nos sugere que, antes de cada tarefa e diante de cada nova missão que assumamos, na vida pessoal ou profissional, façamos perante a nossa própria consciência aquela indagação dos discípulos de João: para podermos viver a cada dia a nossa constante conversão ao chamado de Cristo, o que devemos fazer? E fiquemos atentos para o que Deus falará ao nosso coração.


E João Batista, ciente de sua própria missão, quis deixar claro, para aqueles seus discípulos que viam nele a figura de um provável Messias, quem era ele, confessando humildemente: eu não sou o Messias, mas virá aquele que é mais forte do que eu e eu não sou digno de desamarrar os cadarços da Suas sandálias (Lc 3, 16) e Ele vos batizará no espírito santo e no fogo. E completa: Ele virá com uma pá para limpar sua eira e uma peneira para separar o trigo do carrapicho. Embora o texto apresentado na versão oficial da CNBB use a expressão pá na mão, no texto latino, a palavra é “ventilabrum”, cuja tradução mais própria seria “joeira”, palavra que não é comum na nossa cultura, e que é algo mais parecido com a peneira. A ideia é fazer aquilo que os produtores rurais fazem com o feijão, o milho, o arroz depois que eles põem pra secar, a fim de separar os grãos quebrados dos inteiros, separar os grãos de suas palhas: peneirar. No nosso meio sertanejo, além da peneira, faz-se também a prática de “ventilar” o feijão, o milho, ou seja, passar pelo vento, pra separar os grãos das cascas, é outra técnica rudimentar que tem o mesmo objetivo.


A meu ver, seria essa a mensagem que João Batista queria transmitir. Eu não sou o Messias, mas ele está perto de chegar e virá com uma peneira pra separar os grãos perfeitos das cascas, os grãos inteiros dos quebradiços. Os grãos selecionados serão recolhidos ao celeiro, enquanto as palhas serão lançadas ao fogo (Lc 3, 17). Então, o caminho de preparação para a celebração do Natal coloca na nossa frente os desafios que devemos enfrentar para sermos dignos de vê-Lo nascer em nosso espírito, em nossas famílias, em nossa comunidade. Traz um alerta para que não relaxemos nos nossos compromissos de cristãos e uma oportunidade para fazermos um balanço sobre as práticas realizadas no período que termina. Ou seja, a liturgia nos remete à reflexão sobre o modo como realizamos, no dia a dia das nossas atividades, aquelas ações e práticas que devem espelhar o estilo de vida do verdadeiro cristão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 7 de dezembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA IMACULADA CONCEIÇÃO - 08.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DO ADVENTO – FESTIVIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO – 08.12.2024


Caros Confrades,


Neste segundo domingo do advento, a liturgia dominical cede lugar para a celebração da festividade da Imaculada Conceição de Maria. Trata-se de um dos dogmas da Igreja Católica Romana acerca de Maria, proclamado em 1854, pelo Papa Pio IX. Contudo, a tradição já acreditava nessa verdade desde os primeiros tempos do cristianismo. Quando em 431, no Concílio de Éfeso, foi proclamado o dogma de Maria Mãe de Deus (Teotokos), a crença na sua Imaculada Conceição já existia. A argumentação teológica para justificar o dogma é o fato de Maria ter sido beneficiada, por antecipação, da redenção que seria trazida por Jesus Cristo. Embora não haja um fundamento bíblico para o fato, chega-se a essa conclusão por um raciocínio de lógica teológica, dentro da economia da salvação.


Vocês devem ter observado que, acima, eu destaquei que se trata de um dogma da igreja Católica Romana. Sim, porque as outras Igrejas Católicas, as orientais ortodoxas, não reconhecem esse fato como verdade de fé. Segundo a doutrina do catolicismo ortodoxo, Maria nasceu do mesmo modo que todas as meninas, sem nenhum diferencial na sua pessoa. Tempos depois, na adolescência, quando Maria recebeu a visita do anjo Gabriel, que a convidou para ser a mãe de Jesus, o Filho de Deus, e quando ela aceitou, então, por ação do Espírito Santo, ela foi purificada de todo pecado, para que assim fosse digna da gestação divina. Portanto, ela somente se tornou imaculada nessa ocasião, não foi desde a sua concepção biológica, conforme afirma a Igreja Católica Romana. Talvez algum de vocês esteja questionando: com que autoridade as igrejas ortodoxas discordam da igreja romana? Então, elas são heréticas? Pois bem, essa é uma longa história de controvérsias, que já rendeu muitas ocasiões de discussões entre os teólogos no passado. Mas vejamos algumas informações acerca das igrejas ortodoxas, que são muito pouco conhecidas no meio do catolicismo romano.


Todos sabemos que a igreja de Cristo surgiu em Jerusalém, naquele evento da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, Maria e a pequena comunidade de fiéis reunida com eles. É o que chamamos de Pentecostes, dia em que muitos judeus se converteram. Então, essa é a primeira igreja cristã, que ficou sob a direção de Tiago, o irmão do Senhor. De Jerusalém, o cristianismo foi levado para Antioquia, onde havia grande comunidade de judeus, e ali também houve muitas conversões, resultado das pregações de Barnabé e de Paulo. Assim surgiu nova igreja cristã, que ficou sub a direção de Pedro. Em seguida, isso também aconteceu na cidade de Alexandria, onde também havia grande comunidade de judeus, que também se converteram. Essa igreja ficou sob a direção de Marcos, o evangelista. Depois, esses fatos se repetiram em Constantinopla, e ali surgiu nova igreja cristã, que ficou sob a direção de André, irmão de Pedro. Na sequência, Barnabé fundou a igreja cristã de Chipre, terra natal dele e Paulo fundou as diversas igrejas em território grego (Filipos, Éfeso, Tessalônica, Corinto), surgindo assim a igreja cristã grega. Por fim, o mesmo Paulo levou o cristianismo para Roma, fundando a igreja romana. Por ser Roma a cidade mais importante, Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o levou para dirigir a Igreja em Roma. Essas igrejas todas receberam o nome de “católicas”, palavra grega que significa “universal”, porque a mensagem cristã estava ganhando dimensões mundiais. Atualmente, existem 14 igrejas católicas no oriente, com sedes em diferentes países, e apenas uma igreja católica no ocidente, essa é a que tem sede em Roma. As igrejas orientais não são subordinadas ao bispo de Roma, que chamamos Papa, mas cada uma delas tem seu Patriarca, com a mesma função. Dito isso, é possível perceber melhor a questão de que uma declaração dada pela Igreja de Roma pode não ser aceita pelas igrejas ortodoxas, pois cada uma delas tem sua autoridade. Da mesma forma que uma declaração das igrejas ortodoxas pode não ser aceita pelo Papa. Nas igrejas ortodoxas, portanto, não existe essa celebração da Imaculada Conceição e, por isso, no domingo de hoje, celebra-se a liturgia normal do tempo do advento.


Interrompo aqui esse tema, que poderei retomar em outra ocasião. Agora, reporto-me à liturgia de hoje. A primeira leitura (Gn 3, 9-20) narra o diálogo de Deus com Adão e Eva, logo após terem comido do fruto proibido, no qual consta o trecho onde diz que a mulher irá esmagar a cabeça da serpente e essa é uma das imagens bíblicas mais icônicas relacionadas com o culto a Maria. Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 1, 3-6), temos a pregação do Apóstolo ensinando que nós somos filhos adotivos de Deus, por intermédio da encarnação de Jesus, que se deu através de Maria. Paulo não menciona essa última parte, ela fica apenas subentendida. E o evangelho de Lucas (1, 26-38) narra o episódio da anunciação do anjo Gabriel a Maria.


No catolicismo romano, desde há muito tempo, existe uma grande devoção a Maria, que assume inúmeros títulos, fato que muitas vezes até leva a desviar a atenção dos fiéis em relação aos mistérios centrais da religião. Para muitos fiéis, a devoção a Maria e aos Santos está acima da fé em Jesus Cristo e do conhecimento dos textos bíblicos. A recitação do terço é considerada por alguns fiéis como superior à participação na missa. Proliferam no mundo todo relatos miraculosos sobre aparições de Maria a diversas pessoas, sendo as mais conhecidas Fátima e Lourdes, mas há também Guadalupe (comemorada no dia 12), Aparecida, Medjugorje, Loreto, etc. Nesse contexto, a religião católica torna-se mais mariológica do que cristológica, indicando uma real inversão dos valores do cristianismo, onde a figura de Cristo deve ocupar sempre o lugar de destaque.


Sem desmerecer a figura de Maria e a sua importância dentro da economia da salvação, devemos reconhecer que, de fato, existe uma exacerbação devocional da sua pessoa. E não apenas por parte dos fiéis leigos, mas também dentro da hierarquia. Embora os textos evangélicos sejam centrados na pessoa de Cristo e a menção ao nome de Maria se faça em poucas ocasiões, a tradição religiosa se encarregou de desenvolver-lhe todo um culto paralelo desde os inícios do cristianismo. Os dogmas relacionados à figura de Maria demonstram a força dessa tradição, que é invocada para fundamentar as verdades da fé: Maria Mãe de Deus, a Virgindade de Maria, a Imaculada Conceição de Maria, a Assunção de Maria.


A concepção imaculada de Maria é deduzida da sua condição de Mãe de Deus, por uma dedução lógica de que, para ser a Mãe de Deus, ela não devia ter pecado nenhum. A isto se liga diretamente o dogma da Virgindade. E associado aos dois, o dogma cristológico de ser Jesus o Filho Unigênito, ou seja, Maria não teve outros filhos. E indiretamente associada a tudo isso está a doutrina teológica católica que, desde os primeiros tempos, encara com pessimismo tudo que se relaciona ao sexo, a ponto de Sto Agostinho ter sugerido que o pecado de Adão e Eva teria sido um pecado sexual. A moral católica considera, ainda hoje, que o sexo se destina exclusivamente à procriação, sendo permitido apenas com essa finalidade. E na sequência disso, repudia qualquer outra finalidade da sexualidade, bem como rejeita qualquer método ou medicamento que, de alguma forma, impeça, vede ou obstacule a concepção. A supervalorização da virgindade de Maria, o título de Sempre Virgem Maria, exerce uma pressão subliminar dentro do catolicismo acerca da exclusão da sexualidade, sobretudo em relação às mulheres. Estas sempre foram mais tolhidas no seu comportamento, ao longo da história, diferentemente dos homens que, mesmo estando submetidos aos mesmos paradigmas sexuais, contudo sempre obtiveram maior tolerância neste aspecto. Só muito recentemente a Igreja Romana tem procurado mudar essa tradição, reconhecendo e atribuindo maior valor às mulheres e possibilitando a participação delas em órgãos oficiais do Vaticano. Até já se fala em ordenação de diaconisas e sacerdotisas, mas isso ainda depende da superação de barreiras milenares, o que deverá demandar muito tempo.


Pois bem. Quero deixar claro que as ideias apresentadas acima não significam que, da minha parte, haja qualquer restrição às verdades de fé proclamadas acerca de Maria. Eu não me coloco do lado dos não-católicos, que consideram Maria uma mulher como as outras, eu creio que ela foi especial, não tenho dúvidas disso. No entanto, sou honesto em admitir que o exagero devocional que a tradição cultural criou acerca da personalidade de Maria se põe como obstáculo a uma mais adequada vivência do cristianismo. Que Maria nos ensine a compreender essas verdades, dentro da mais autêntica dimensão da nossa fé.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 30 de novembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DO ADVENTO - 01.12.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – O FINAL E O COMEÇO – 01.12.2024


Caros Confrades,


O calendário litúrgico da Igreja Católica não segue o calendário comum da sociedade, por isso, neste domingo, dá início ao novo ano litúrgico católico, que costumeiramente coincide com o final de novembro ou início de dezembro do ano anterior, de acordo com a posição do dia de Natal no calendário civil, pois o ano litúrgico se inicia quatro domingos antes do Natal. A organização litúrgica da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a história da salvação, que historicamente demorou vários séculos, fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da intervenção de Deus junto aos homens. Esta prática de dividir a Bíblia em porções correspondentes ao número de semanas do ano já existia entre os judeus, desde os tempos de Esdras, quando o povo retornou da escravidão da Babilônia. Este dirigente judeu dividiu a Bíblia hebraica em porções semanais, de modo que durante um ano, toda a Torá fosse lida nas sinagogas. A Igreja Católica segue essa tradição, porém de um modo diferente. Os anos litúrgicos são classificados com as letras A, B e C, pois a Bíblia católica tem mais livros do que a Bíblia judaica. Assim, as leituras litúrgicas dominicais não se repetem a cada ano, mas somente a cada três anos. No domingo passado, terminamos o ano B da liturgia e com a liturgia de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de 2025. De acordo com as regras da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, este ano litúrgico que se inicia é identificado com a letra C.


Neste primeiro domingo do advento, a liturgia nos leva a refletir sobre as “coisas que hão de vir”, ou seja, os fenômenos indicadores do “final dos tempos”, também denominados de escatologia (coisas futuras). Ao mesmo tempo, prepara-se o coração dos fiéis para o Menino que vai chegar (adveniens), donde o nome “advento”, convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito renovado. É curioso esse contraponto que a liturgia faz entre o “final” e o “começo”, colocando leituras com temas escatológicos e apocalípticos (evangelho de Lucas) junto da leitura do profeta Jeremias, anunciando aquele que vai chegar, para fazer valer a lei e a justiça sobre a terra, isto é, o Messias. Essa junção de temas conflitantes vem marcar a constante renovação que deve ocorrer em nossas vidas, demonstrando que o fim pode ser sempre um novo começo. O advento recorda a primeira vinda de Jesus, em forma humana e no tempo histórico; as coisas futuras recordam a segunda vinda de Jesus, não mais como criança nem no plano cronológico, mas como supremo juiz.


Esse tema da segunda vinda de Jesus, conforme abordamos em comentários anteriores, foi muito caro aos primeiros cristãos, que esperavam isto como algo imediato, para os próximos dias, de modo que alguns até deixaram de trabalhar, porque “ele estava já chegando”. O próprio apóstolo Paulo era um dos que esperavam ver a segunda vinda de Jesus (ele não tinha visto Jesus em forma humana). Porém com a demora desse retorno, a compreensão foi mudando de perspectiva e, ao longo dos tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Agora, muitos séculos depois e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve pensar numa “data” determinada, um dia marcado no calendário, nem mesmo num dia incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa circunstância que se realizará na dimensão atemporal, no plano da eternidade, quando ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os seus seguidores de coração sincero.


Na primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias, farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como 'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). A Igreja é a nova Jerusalém, lembrando aquela que um dia foi destruída, mas Deus a restaurou com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça” significa que devemos considerar que a justiça divina não tem comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco, porque se Ele fosse nos julgar, do modo como nós costumamos julgar os nossos semelhantes, coitados de nós.


Então, no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso, Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso, preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da época, se daria dentro de pouco tempo.


O evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.” Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é assustadoramente dramático: “Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas.” Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos, tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar, porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae” (como dizia o antigo cântico gregoriano, que cantávamos nas missas de finados: dia de ira, aquele dia), o que nós devemos fazer é seguir o que Jesus recomendou: “Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra.” (Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá escapar. Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.


É curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos, que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias, porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção não deve se voltar para “o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”, mas para o dia em que cada um de nós deveremos subir para ficar em pé diante d'Ele.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 23 de novembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 34º DOMINGO COMUM - FESTA DE CRISTO REI

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 24.11.2021.


Caros Confrades,


Neste 34º domingo comum, encerra-se o ano litúrgico católico, com a festa de Cristo Rei do Universo. Esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, com um objetivo religioso-político, no período histórico que mediou entre as duas grandes guerras mundiais e num contexto de grande ascensão do ateísmo no mundo, com a vitória dos regimes comunistas na Ásia. O objetivo do Papa era, ao mesmo tempo, contrapor-se à teologia modernista, muito em voga no início do século XX, na Europa, e também chamar a atenção da comunidade internacional para a figura de Cristo, o soberano acima de todos os dirigentes políticos.


A motivação teológica desta festa litúrgica se concentra na “segunda vinda” de Cristo, quando ele virá concretizar as profecias que falam de sua eterna glória e do seu grande poder, como a que lemos na primeira leitura de hoje, retirada do profeta Daniel. O profeta, que havia sido conduzido cativo para a Babilônia, teve uma visão terrível de quatro grandes animais que desciam do céu e foi dado a cada um grande poder de destruição. Esses animais representavam os grandes impérios dominadores da época (século VI a.C.): babilônios, persas, gregos e romanos. Depois da imagem dos animais, ele viu um ancião sentado num trono de fogo, e logo em seguida, viu “um tipo de filho do homem”: eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, naçðes e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá. (Dn 7, 13-14). Na sequência da leitura, que não está na liturgia, o próprio Daniel ficou espantado com a visão e pediu que lhe fosse explicado aquilo, então ele soube que os animais eram reis de grande poder que surgiram ali, mas seriam submetidos pelo poder daquele que virá por último. Tal figura protagoniza a vinda de Cristo, corroborada assim no Apocalipse: Jesus Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos, o soberano dos reis da terra.(Ap 1, 5). E ainda no evangelho de Marcos diz: “Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória. Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra. (Mc 13, 26-27). Embora a liturgia de hoje não tenha escolhido este trecho do evangelho de Marcos, ele se encaixa totalmente no contexto das duas leituras anteriores.


Conforme eu já tive oportunidade de expressar aqui neste espaço virtual, na minha opinião particular (que não é doutrina oficial da Igreja Católica, mas um comentário reservado meu), eu não concordo com essa exaltação dada pela liturgia à figura de Cristo Rei do Universo. Em toda a sua pregação, Ele nunca quis ser exaltado como chefe, como senhor, ele sempre repreendeu os discípulos e pessoas da comunidade, quando queriam enaltecê-lo, assim como repreendia os discípulos, quando entre si disputavam quem seria o maior, dizendo que o maior de todos deve ser o que serve a todos. Ele deu muitos exemplos disso. Em diversos pontos dos evangelhos, Jesus se identifica com a figura do “filho de homem”, descrita por Daniel e por Ezequiel, diferente do Messias guerreiro, que os judeus esperavam. Então, fica me parecendo essa homenagem a Cristo Rei como um contrassenso a tudo o que ele pregou. Fico com a impressão de que Ele rejeitaria tal homenagem, se tivessem lhe perguntado antes. Além do mais, essa imagem do rei é algo que recorda os tempos antigos e medievais, nos quais a figura real era algo que fazia parte do dia a dia das pessoas, porque a autoridade maior em toda parte era a de um rei. Mas no nosso tempo, a figura do rei perdeu muito a sua importância, politicamente existem poucos reis. O próprio Papa, quando assume o governo político do Vaticano como um monarca, recebe críticas dos teólogos, por não ser essa uma imagem própria da Igreja de Jesus Cristo. Na época em que o Papa instituiu essa festa, ainda havia reinados na Europa, mas estes se extinguiram com a 2a guerra mundial. Por outro lado, o arquétipo real tornou-se entre nós algo folclórico, presente nos folguedos populares, de modo que a imagem do rei já não transmite um significado de algo verdadeiro, mas faz parte muito mais do mundo da fantasia.


Eu ainda vejo nisso outro agravante. A celebração de Cristo Rei do Universo nos leva a questionar o alcance desse reinado. Até onde nos é dado saber, Cristo veio trazer a salvação aos seres humanos, isto é, habitantes da terra. As leituras bíblicas, escritas numa época em que a compreensão de universo se restringia ao limite geomórfico, fazem referência aos “reinos da terra”. Mas, em 1925, quando a festa foi estabelecida, já se tinha o conceito de universo bem mais estendido, e por isso o título da festa é Cristo Rei do Universo, já deveria ser vista não apenas como do planeta terra. Num comentário anterior, eu externei aqui uma opinião sobre o que eu suponho que se deva entender por “fim do mundo”, desmistificando aquela narração funcionalista do fim dos tempos, com as estrelas caindo e os mortos saindo dos túmulos, imagens que foram bastante exploradas pelos artistas medievais. Ora, sabe-se hoje que o universo tem uma dimensão inefável, ilimitada, incomensurável, a cada dia a ciência faz afirmações de descobertas sobre a existência de outros planetas em condições idênticas às da terra, com grande probabilidade de que haja vida inteligente por lá. Pois bem. Se houver esses mundos, então a mensagem de Cristo também teria chegado lá? Cristo teria se encarnado lá também e teria pregado seu evangelho ali? Até hoje, toda a teologia foi elaborada com base no pressuposto de que somente na terra existe vida inteligente. Como ficará a doutrina religiosa quando forem (e isso acontecerá, embora não se saiba quando) finalmente encontrados outros seres inteligentes, com a mesma estrutura mental dos habitantes da terra? Ora, a referência a Cristo Rei do Universo (e não apenas da terra) supõe que a Sua pessoa e a sua mensagem estariam presentes em todos os confins do cosmos. Não há resposta cabal para este questionamento. Porém, por pura dedução de lógica, partindo da afirmação teológica de que Deus criou tudo o que existe e que no Filho, nascido do Pai antes de todos séculos, todas as coisas foram feitas, podemos concluir que, se existirem outros mundos semelhantes ao nosso, ali também será encontrada a mensagem cristã.


Voltemos ao profeta Daniel (primeira leitura), na sua visão dos animais ferozes, que representavam os reis que surgiriam ali naquela parte da terra. A sua abrangência era limitada, porque não podia ser diferente do conhecimento que havia naquela época. Ao longo da história, diversos estudiosos tentaram associar essas figuras metafóricas das profecias bíblicas com alguns personagens reais. E fora do contexto bíblico, são muito famosas as centúrias de Nostradamus, as quais são recorrentemente interpretadas em confronto com os fatos históricos. Então, partindo disso, considerando a compreensão que se tem hoje do universo, precisamos repaginar a nossa crença nessas verdades escatológicas, que os textos bíblicos lançam apenas na perspectiva geoestacionária. A festa de Cristo Rei está relacionada com a “segunda vinda” de Cristo e essas narrativas também estão na perspectiva da profecia danielina e precisam ser reinterpretadas. E para isso precisamos ultrapassar também o conceito de “rei” como conhecemos concretamente e historicamente. O “reinado” de Cristo (isso ele mesmo disse) não é deste mundo, então não podemos pensar sobre ele numa dimensão material, cosmológica, ainda que nas gigantescas proporções do universo apresentado pela ciência. O universo onde Cristo efetivamente “reina” repousa no coração, na intuição, no discernimento, na adesão dos seus fiéis e não deve ser imaginado como um local específico, ainda que imaginário, onde se estabeleceria esse trono fictício. O “reino” de Cristo ultrapassa os limites da temporalidade e somente será possível compreendê-lo se nos dispusermos a ir além da imaginação e da limitação da nossa racionalidade.


Meus amigos, precisamos sempre adaptar a nossa fé religiosa às novas configurações temporais. Isso às vezes pode chocar alguém, por isso peço desculpas se não concordarem com essa forma de pensar, que eu chamaria de teologia da esperança. A segunda vinda de Cristo, creio eu, somente será perceptível para nós quando ultrapassarmos os umbrais do tempo e do espaço, o que ocorrerá com a nossa morte. Mas, apesar de discordar desse aparato suntuoso que a liturgia sugere com a festa de Cristo Rei, eu creio também que Jesus é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que ele vem trazer todos os dias a todos nós.


Cordial abraço.

Antonio Carlos

sábado, 16 de novembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 33º DOMINGO COMUM - 17.11.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – FINAL DOS TEMPOS – 17.11.2024


Caros Confrades,


No 33º domingo comum, aproximando-se o final do ano litúrgico, a liturgia nos convida a refletir sobre o final dos tempos, a parusia, a “segunda vinda” de Cristo, que virá para julgar os vivos e os mortos. Esse tema foi muito explorado tanto pelos pregadores quanto pelos artistas desde a Idade Média, os primeiros fazendo terror entre os fiéis e os outros deixando marcas igualmente terríveis registradas, em magníficas pinturas. Cada grupo, ao seu modo, demonstrou a interpretação que fizeram das palavras do evangelho de Marcos, acerca do “juízo final”: o sol escurecerá, a lua não mais dará sua luz, as estrelas cairão... Com os conhecimentos científicos de atualidade, constata-se que se trata de uma visão alegórica do final dos tempos, pois são fatos catastróficos que não possuem sustentação científica. Todavia, ainda paira na mentalidade de grande parte da nossa população a imagem daquela gigantesca hecatombe, de modo que cada desastre natural que ocorre é rapidamente associado a essa profecia (Jesus está voltando!!) . Precisamos, pois, repaginar o nosso entendimento sobre essas coisas futuras.


Na leitura da profecia de Daniel (Dn 12, 1-3), aparece a figura imponente de Miguel, o defensor que virá resgatar todos aqueles cujos nomes se acharem inscritos no livro, os quais brilharão como estrelas por toda a eternidade, os justos, aqueles que foram sábios e ensinaram aos outros o caminho da virtude. Os que não tiverem procedido corretamente em vida, serão lançados no opróbrio eterno. Alguns trechos do livro de Daniel são classificados, pelos biblistas, como literatura apocalíptica, isso ocorre também com passagens do livro de Ezequiel, possibilitando a interpretação alegórica. Há estudiosos que duvidam da existência histórica de Daniel, identificando-o como um personagem de um conto bíblico escrito na época do cativeiro da Babilônia. Podemos constatar que Jesus se serve dessas expressões na sua catequese ao povo, em forma de parábolas, para explicar aos seus ouvintes acerca do juízo final. Sempre foi uma grande curiosidade dos seres humanos, em todas as épocas, saber o que acontecerá após a morte ou no fim dos tempos. Em verdade, é o caso de perguntarmos: haverá mesmo um final dos tempos, objetivamente falando?


Na filosofia, desde o século XVIII, Kant já explicou, de forma incontestável, que o tempo não existe fora de nós, sendo apenas uma percepção subjetiva humana. Então, a expressão final dos tempos deve ser entendida como fim do mundo ou o final do universo. Ocorre que, com a inimaginável, indizível e imensurável dimensão que o universo apresenta (e simultaneamente esconde) para os astrônomos e astrofísicos, pode-se colocar em dúvida se o universo realmente se extinguirá, ainda que num futuro distante. A ciência comprova que o universo se encontra em constante expansão, ou seja, em evolução contínua e dando origem a novos corpos celestes, de modo que falar em ‘fim do mundo’ é algo incabível na concepção científica atual. Só por essa breve referência ao problema, já se pode avaliar a complexidade da ideia que envolve a expressão “final dos tempos”.


No evangelho de Marcos (Mc 13, 24-32), lemos aquela descrição assustadora e detalhada de Jesus aos discípulos, sobre as coisas futuras, palavras que sempre foram, ao longo da história, entendidas literalmente. Porém, se nós as lermos com uma mentalidade serena, à luz do que hoje se conhece acerca do universo, mesmo quem não for especialista no assunto perceberá que se trata de eloquente alegoria. “O sol escurecerá...” quando eu era aluno do curso ginasial (isso já tem mais de 60 anos), eu li uma matéria que dizia assim: daqui a dois milhões de anos, o sol esfriará. Nunca esqueci disso. Essa deve ser a tendência natural, se imaginarmos que o sol é um corpo celeste que realiza intensa reação atômica, a tendência é que, com o passar do tempo (muito tempo mesmo), sua energia irá regredindo progressivamente. Mas sabe-se, por outro lado, que o nosso sol é apenas uma estrela de quinta grandeza e que existem inumeráveis sóis no universo, o que significa que se, acaso, o nosso sol escurecesse, em termos siderais, isso não faria grande diferença. Pura alegoria, portanto.


“As estrelas começarão a cair do céu...” essa era a concepção cosmológica dos povos antigos, que entendiam o firmamento como uma semiesfera, onde estariam “penduradas” as estrelas. Nos dias de hoje, nem uma criança do ensino fundamental pensa mais assim. Os riscos que, teoricamente, existem são de eventuais colisões de corpos celestes. “A lua não mais brilhará...” é outra frase que não resiste à mínima crítica, porque todos sabemos que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz solar. Ora, essas frases só podem ser compreendidas metaforicamente. Eu fico boquiaberto quando ouço pessoas que, publicamente, afirmam que a Bíblia está cheia de erros, por causa dessas passagens. Essas pessoas não conseguem pensar alegoricamente e nem percebem que as expressões bíblicas reproduzem uma mentalidade e um conhecimento pré-científico de diversos séculos antes de nós e que precisam ser devidamente aculturados para fazerem sentido na nossa época. O que realmente importa é interpretá-las para compreendê-las.


Agora, passando para as outras expressões contidas nesse mesmo contexto, no evangelho de Marcos, obrigatoriamente também concluiremos que elas devem ser entendidas metaforicamente: “vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens”..., “enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade a outra...”, “essa geração não passará até que isso aconteça”... São frases que precisam ser relidas e reinterpretadas no seu significado cultural e religioso, na mesma proporção em que fizemos com as afirmações de conteúdo cosmológico. Com certeza, Jesus não aparecerá sentado numa nuvem, os anjos não tocarão trombetas ensurdecedoras para despertarem os mortos e os reunirem aos vivos, pois se forem somadas as quantidades de seres humanos de todas as épocas, veremos que não haveria espaço físico suficiente no planeta terra para conter tanta gente. A geração que não passará não é a geração cronológica, mas a “gens” humana. E aqui está a afirmação mais grave. Eu entendo aqui que a ganância dos seres humanos vai terminar por inviabilizar a vida terrestre. No ritmo que as coisas más estão acontecendo, isso parece que não vai demorar muito. A sucessão de desastres ecológicos provocados pela irracionalidade e a ambição de alguns irresponsáveis irá, isso é certo, por um fim na humanidade. E aí sim, teremos o “final dos tempos”. Não do modo literal como está descrito no texto do evangelista Marcos, mas no sentido de que, com a extinção dos seres humanos, o tempo realmente se extinguirá, porque não haverá mais seres humanos com consciência e racionalidade para reconhecê-lo e contabilizá-lo.


Importa aqui assinalar também que Jesus, naquela ocasião e de forma profética, se referia à destruição de Jerusalém, por causa da infidelidade do povo judeu e pelo fato de não o terem reconhecido como o Messias esperado. A Jerusalém histórica, com efeito, foi destruída pelo exército romano no ano 70 anos depois de Cristo. A “grande tribulação” a que Jesus se referiu no seu discurso metafórico se reportava, em primeiro lugar, à profanação do templo de Salomão pelos romanos, o que iria causar (como de fato causou) grande comoção para os judeus. Mas após a destruição dessa Jerusalém de pedras e tijolos, ergueu-se outra Jerusalém simbólica, atemporal e espiritual, que é a Igreja de Cristo, que veio substituir e firmar-se sobre as ruínas do templo salomônico.


Aqui nesse contexto se encaixa o texto da segunda leitura, da carta aos Hebreus (Hb 10, 11-12): “Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.” Os cultos ofertados no templo de Salomão não têm comparação com a oferenda de Cristo, que foi única e definitiva. A redenção operada por ele transformou aquela Jerusalém de pedras e tijolos em um templo imperecível, que não está mais situado num espaço geográfico, mas no coração de todos aqueles que creem. E os salvos não estão mais inscritos “num Livro”, como disse o profeta Daniel, mas estão espalhados por todos os confins da terra, reunidos sob a presença mística de Cristo, que afirmou: onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei ali presente. Não é mais necessário se deslocar até uma Jerusalém geográfica ou até o templo físico, porque a Jerusalém celeste e o templo espiritual estão onde estiverem os cristãos unidos em sua fé. Essa é a grande diferença. Essa é a verdadeira realidade que representa o conjunto das coisas futuras.


Se observarmos bem, o discurso de Cristo é fundamentalmente de cunho ecológico, bem atualizado para a linguagem do nosso mundo atual. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Aquela concepção cosmológica de céu e terra não faz mais nenhum sentido para a mentalidade moderna. São céu e terra passados. Mas essa geração não passará até que tudo isso aconteça. Infelizmente, estamos presenciando, sob diversas formas de condutas de pessoas sem escrúpulo da geração humana, ações devastadoras que nos induzem a pensar que “as folhas da figueira da parábola estão ficando verdes e os frutos não demorarão a aparecer”. Que Deus dê a essas pessoas a chance de se conscientizarem disso, antes que seja tarde demais.


Um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 9 de novembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 32º DOMINGO COMUM - 10.11.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 32º DOMINGO COMUM – O ÓBULO DA VIÚVA – 10.11.2024


Caros Confrades,


Neste 32º domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois episódios envolvendo viúvas: uma do tempo do profeta Elias e outra do tempo de Cristo. Em ambos os casos, observa-se a mesma atitude, que representa um louvável exemplo de generosidade e de desprendimento. A liturgia reúne esses dois fatos marcantes, ocorridos em épocas históricas bem distantes uma da outra, chamando a nossa atenção também para a superação do preconceito, que naquela época era forte contra as viúvas, fato que já não se observa mais no nosso tempo, dada a evolução da sociedade. De qualquer modo, somos convidados a vencer os preconceitos, não apenas pelo aspecto jurídico e legalista, porque este só alcança a conduta exterior, mas e principalmente pelo aspecto caritativo-cristão, que parte do íntimo do nosso coração.


Na primeira leitura, retirada do Livro dos Reis (1Rs 17, 10-16), temos o episódio protagonizado pelo profeta Elias, numa época de grande seca na região do Sinai, onde se encontrava estacionado o povo hebreu, levando a população a passar grandes necessidades de abastecimento de alimentos. O Profeta percorria a região, a mandado de Javeh, a fim de exortar o povo contra a idolatria, que o contaminava facilmente, quando estavam em contato com os povos do deserto. Ao chegar na cidade de Sarepta, o Profeta pediu pão a uma mulher que colhia lenha, ao que ela respondeu que só tinha um pouco de farinha e de azeite, pra fazer o último pão que comeriam, ela e o filho, porque depois disso não teriam mais o que comer e o único jeito era esperar a morte. Elias pediu que ela fizesse aquele último pão para ele, assegurando que Javeh não deixaria que faltasse o necessário para ela e o filho, até que sobreviesse novamente a fartura. Assim aconteceu.


Se aquela não fosse uma mulher de fé, ela não teria acreditado no Profeta, teria negado a ele aquele último pão, com o qual iria saciar a fome provisória dela e do filho, encaminhando-se em seguida para a inanição. Mas, não. Ela acreditou no Profeta e deu a ele o seu último alimento. E aconteceu o milagre, conforme Elias predissera: sua farinha era reposta e seu azeite era renovado a cada dia, e assim ela teve alimento por muitos dias além. O Profeta comeu e seguiu o seu caminho, mas a promessa de Deus foi cumprida, porque a viúva fez a sua oferta de coração sincero.


Tempos depois, um episódio semelhante envolvendo outra viúva é narrado pelo evangelista Marcos (Mc 12, 41-44), numa ocasião em que Jesus se encontrava no templo e observava as ofertas que os judeus faziam, de acordo com o costume de doar o dízimo para o culto. Os ricos depositavam moedas grandes e pesadas, as quais faziam eco ao caírem no fundo do cofre. Provavelmente, havia esse costume de deixar o dobrão cair subitamente, para chamar a atenção dos transeuntes sobre o tamanho da oferta. Daí a pouco, chegou uma pobre viúva que colocou só duas moedinhas, que nem fizeram barulho ao cair no cofre. Jesus observava os doadores e logo ressaltou para os discípulos a diferença entre as ofertas: os primeiros, os ricos, doavam o que lhes sobrava, enquanto a viúva doara tudo o que possuía; os ricos faziam a oferta de forma ostensiva e com barulho, destacando o cumprimento da sua obrigação, enquanto a viúva fazia a doação com humildade e discrição, não por obrigação, mas por devoção, doava de coração o próprio coração. E Jesus completou: a oferta dessa mulher com duas moedinhas sem valor foi muto maior do que a dos anteriores, que fizeram tanto barulho, porque Deus não olha a quantidade, mas a qualidade da nossa oferta.


O evangelista não relata os eventos futuros relacionados a este fato, mas com certeza Deus proveu aquela pobre mulher com maiores bênçãos e retribuições, assim como deve ter recusado as ofertas dos outros fanfarrões, os quais, nas palavras do próprio Jesus “receberão a pior condenação” (Mc 12, 40). A teologia do dízimo utiliza o exemplo da viúva para fortalecer a convicção de que todos os paroquianos são responsáveis pela manutenção do templo e dos serviços religiosos, fazendo doações espontâneas e regulares, evitando-se a 'cobrança' de espórtulas para celebração dos sacramentos, como era a prática tradicional. Apenas as cerimônias privadas, como os casamentos requintados, que são na verdade muito mais acontecimentos sociais do que cerimônias religiosas, são taxados aos que os requisitam.


O direito canônico não estipula valores para o dízimo, assim como não imprime qualquer tipo de sanção para os fiéis nesse sentido. No Antigo Testamento, havia o entendimento de que o dízimo seria a décima parte das colheitas e dos ganhos auferidos. No entanto, pelo comentário que Jesus faz acerca da oferta da viúva, podemos concluir que, mais importante do que a quantidade da oferta do dízimo é a qualidade da oferta que cada um faz. Muitos pregadores das organizações eclesiais ditas evangélicas aproveitam-se dessa norma veterotestamentária para cobrar dos fiéis os 10% do salário de cada um e muitos contribuem assim mesmo, de forma crédula e ingênua, supondo estarem adquirindo um 'terreninho' no céu. Outras pessoas criticam as ofertas e contribuições feitas pelos católicos, alegando que a Igreja é muito rica e devia vender suas propriedades e distribuir aos pobres a arrecadação. Com certeza, essas pessoas não conhecem os serviços de assistência popular realizados nas paróquias, os quais não seriam possíveis sem estruturas materiais e sem suporte monetário. O dízimo é uma contribuição para o serviço do templo, que não precisa se expressar apenas em valor financeiro, mas pode também ser ofertado em forma de serviço ou de colaboração com as atividades paroquiais. Esse serviço voluntário é essencial para que o trabalho evangelizador possa atingir um número maior de pessoas, sobretudo os mais necessitados. Na concepção atual, a palavra dízimo foi desassociada do seu étimo de corresponder à décima parte dos bens para significar o tamanho do seu coração. De nada valeria entregar para a sua Paróquia matematicamente dez por cento das suas rendas, se aquilo não fosse uma atitude de fé, diferente de mera obrigação.


Na segunda leitura, extraída da carta aos Hebreus (Hb 9, 24-28), o hagiógrafo faz referência à oferta que Cristo fez de si próprio e que se diferencia completamente daquelas que eram historicamente feitas pelos sacerdotes do Antigo Testamento. Estes precisavam entrar no templo todos os anos e repetir suas preces rituais, oferecendo a Javeh o sangue alheio, ou seja, as oferendas dos animais sacrificados, que eram os “dízimos” apresentados pelos mais abastados. Porém, Cristo entrou no tabernáculo apenas uma vez e ofereceu o seu próprio sangue, por isso, ele não precisará mais repetir a oferta, porque esta é completa e definitiva. “Foi agora, na plenitude dos tempos, que, uma vez por todas, ele se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo.” (9, 26) A liturgia faz o contraponto entre as ofertas dos sacerdotes do Antigo Testamento com a oferta de si próprio por Cristo, na mesma linha de raciocínio que Jesus fez o contraponto entre a oferta feita pelos fariseus no templo e a oferta da viúva pobre: aqueles fizeram uma oferta imperfeita (o que lhes sobrava) e não agradável a Javeh, mas estoutra fez a oferenda perfeita (o próprio coração). O autor da carta aos Hebreus inspirou-se, certamente, no comentário que Jesus fez aos discípulos acerca da oferenda da viúva: “'Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver'.


A personagem singela e discriminada da viúva, exaltada por Jesus, nos leva a refletir sobre as discriminações que a sociedade também faz a algumas pessoas, nos tempos atuais. Na antiguidade, as viúvas pertenciam à classe mais baixa da sociedade, porque os direitos dos povos antigos não lhes garantiam nenhuma participação nos bens hereditários, que eram distribuídos entre os herdeiros diretos do falecido (filhos, netos, parentes consanguíneos), as viúvas eram excluídas da partilha. Por isso, elas eram as pessoas mais pobres da sociedade, fato que associado à condição feminina daqueles tempos as colocava em singular estado de miséria. Ao exaltar a contribuição da viúva, que ofertara tudo o que tinha para sobreviver e seria recompensada por Deus, Jesus nos ensina a respeitar e valorizar as pessoas, independentemente de sua condição social.


Um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 2 de novembro de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DE TODOS OS SANTOS - 03.11.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – TODOS OS SANTOS – COMUNHÃO DOS SANTOS - 03.11.2024


Caros Confrades,


A liturgia comemora neste domingo a festa de Todos os Santos, que foi transferida do dia 1º para o domingo seguinte. Essa festa é necessária, porque dada a grande quantidade de pessoas canonizadas oficialmente pela Igreja e muitas outras mais que, embora não estejam ainda no rol oficial dos santos, foram seguidores exemplares de Cristo, não seria possível fazer celebrações destacadas de todos esses fieis distribuindo-os pelos dias do ano. Além disso, esta solenidade litúrgica nos traz para a reflexão a verdade teológica da “comunhão dos santos”, que nós rezamos no Credo, e faz parte dos enunciados básicos da fé católica. Esta comunhão (melhor explicada no termo latino 'communio'), ou seja, a comum união de todos os cristãos, inclui não apenas aqueles que já estão no reino de Deus (a comunidade gloriosa) mas também aqueles que ainda estão a caminho, isto é, nós (comunidade operosa), que vivemos no meio das vicissitudes e tribulações do tempo, a proclamar com nossa vida cristã a nossa fé na ressurreição.


É bem significativo refletir sobre o dogma religioso da comunhão dos santos e sobre o próprio significado do termo 'santos', porque nós habitualmente designamos com essa palavra aqueles cristãos que foram “canonizados”, ou seja, aqueles que tiveram suas virtudes publicamente reconhecidas pela Igreja Católica e são colocados nos altares, como modelos para todos. Não podemos, porém, esquecer que o apóstolo Paulo, na carta aos Romanos (8, 32) utiliza o termo “santos” como sinônimo de cristãos e, portanto, todos nós somos santos. Ou, pelo menos, somos destinados para a santidade. Ser santo não significa nunca cometer algum deslize, não significa viver de joelhos, com o terço ou a Bíblia na mão ou recitando os salmos, não equivale a nunca ter raiva de alguém nem nunca ter cometido qualquer desobediência à lei de Deus. Os cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição cultural religiosa comumente nos leva a fazer uma relação paradoxal entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. Com efeito, teologicamente, não é assim. Tanto aqueles que foram canonizados são santos, como também os cristãos falecidos na graça de Deus e ainda nós, que peregrinamos do “vale de lágrimas” e que tomamos os canonizados como modelo de nossa vida cristã. Quando o jovem perguntou a Jesus: Mestre, o que devo fazer para alcançar a vida eterna? Jesus respondeu: observa os mandamentos (Lc 18, 18). Esta pergunta, dita com outras palavras, pode muito bem ser entendida assim: Mestre, o que devo fazer para ser santo? A resposta é a mesma: observa os mandamentos.


A comunhão dos santos é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome de “corpo místico”, do qual Jesus é a cabeça e nós somos os membros. Este corpo místico na sua forma visível é a Igreja e engloba todos os fiéis seguidores dos mandamentos de Cristo, de antes, de hoje, de ontem e de depois, todos formando uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É nesse contexto que devemos entender a primeira leitura da liturgia de hoje, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Numa linguagem direta, João se refere às doze tribos de Israel, num montante de doze mil de cada uma, para chegar a esse total. João era judeu e talvez tivesse a esperança de que os seus irmãos de raça ainda viessem aderir à mensagem de Cristo. Historicamente, sabe-se que isso não ocorreu, ao menos, não ocorreu ainda. Mas ele previu, logo a seguir, (Ap 7, 9) “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar.” É aqui que nós entramos e essa multidão é tão imensa, que João nem teve como quantificar, e nem poderia. E todos também estavam marcados para serem salvos, uma vez que estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Unindo num mesmo contexto as lições dos apóstolos João e Paulo, podemos concluir sem medo de errar: todos igualmente santos, todos igualmente irmãos, todos igualmente face a face com o Criador.


Na segunda leitura, o mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos: sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!” Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois nós abraçamos pela fé esse grande mistério revelado por Cristo, embora tal situação vá se consolidar somente no futuro. Assim, pela fé, nós já somos filhos de Deus, embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante para explicar isso: “já e ainda não”, é a grandeza do mistério que nós conseguimos alcançar com a nossa fé. Nós já somos santos, mas ainda não sabemos bem como é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem crê. Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.


A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Jesus chama de bem-aventurados (Mt 5, 1-12) todos os que estão submetidos a algum tipo de tribulação. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que nós somos santos. Em latim, bem-aventurados se diz 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tradução que também aparece em algumas versões do texto sagrado. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem-aventuradas) eram aquelas bem aquinhoadas de bens, que já recebem logo neste mundo uma recompensa abundante. Assim, perante essa visão farisaica, bem-aventurados eram os ricos, os poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a sofrer na outra vida.


Contrariando esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e os convidados não compareceram, tendo ele convidado os mendigos e os moradores de rua para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que lavou os pés dele com lágrimas na presença dos fariseus (não confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5), ele vai dizer quem são os verdadeiros bem-aventurados: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.


Caros amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto chamados, vocacionados à santidade. Cada um de nós, na variedade das tarefas cotidianas, exercemos, do modo como Deus nos chama, a nossa vocação para a santidade. Não importa se um dia seremos canonizados, se teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, embora ainda não tenhamos chegado lá. Isso significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O que Deus quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca daquilo que nos falta para alcançarmos a santidade plena. E o modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor ao próximo.


Que nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar sempre mais da perfeição que conduz à santidade.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos