COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO COMUM – FINAL DOS TEMPOS – 17.11.2024
Caros Confrades,
No 33º domingo comum, aproximando-se o final do ano litúrgico, a liturgia nos convida a refletir sobre o final dos tempos, a parusia, a “segunda vinda” de Cristo, que virá para julgar os vivos e os mortos. Esse tema foi muito explorado tanto pelos pregadores quanto pelos artistas desde a Idade Média, os primeiros fazendo terror entre os fiéis e os outros deixando marcas igualmente terríveis registradas, em magníficas pinturas. Cada grupo, ao seu modo, demonstrou a interpretação que fizeram das palavras do evangelho de Marcos, acerca do “juízo final”: o sol escurecerá, a lua não mais dará sua luz, as estrelas cairão... Com os conhecimentos científicos de atualidade, constata-se que se trata de uma visão alegórica do final dos tempos, pois são fatos catastróficos que não possuem sustentação científica. Todavia, ainda paira na mentalidade de grande parte da nossa população a imagem daquela gigantesca hecatombe, de modo que cada desastre natural que ocorre é rapidamente associado a essa profecia (Jesus está voltando!!) . Precisamos, pois, repaginar o nosso entendimento sobre essas coisas futuras.
Na leitura da profecia de Daniel (Dn 12, 1-3), aparece a figura imponente de Miguel, o defensor que virá resgatar todos aqueles cujos nomes se acharem inscritos no livro, os quais brilharão como estrelas por toda a eternidade, os justos, aqueles que foram sábios e ensinaram aos outros o caminho da virtude. Os que não tiverem procedido corretamente em vida, serão lançados no opróbrio eterno. Alguns trechos do livro de Daniel são classificados, pelos biblistas, como literatura apocalíptica, isso ocorre também com passagens do livro de Ezequiel, possibilitando a interpretação alegórica. Há estudiosos que duvidam da existência histórica de Daniel, identificando-o como um personagem de um conto bíblico escrito na época do cativeiro da Babilônia. Podemos constatar que Jesus se serve dessas expressões na sua catequese ao povo, em forma de parábolas, para explicar aos seus ouvintes acerca do juízo final. Sempre foi uma grande curiosidade dos seres humanos, em todas as épocas, saber o que acontecerá após a morte ou no fim dos tempos. Em verdade, é o caso de perguntarmos: haverá mesmo um final dos tempos, objetivamente falando?
Na filosofia, desde o século XVIII, Kant já explicou, de forma incontestável, que o tempo não existe fora de nós, sendo apenas uma percepção subjetiva humana. Então, a expressão final dos tempos deve ser entendida como fim do mundo ou o final do universo. Ocorre que, com a inimaginável, indizível e imensurável dimensão que o universo apresenta (e simultaneamente esconde) para os astrônomos e astrofísicos, pode-se colocar em dúvida se o universo realmente se extinguirá, ainda que num futuro distante. A ciência comprova que o universo se encontra em constante expansão, ou seja, em evolução contínua e dando origem a novos corpos celestes, de modo que falar em ‘fim do mundo’ é algo incabível na concepção científica atual. Só por essa breve referência ao problema, já se pode avaliar a complexidade da ideia que envolve a expressão “final dos tempos”.
No evangelho de Marcos (Mc 13, 24-32), lemos aquela descrição assustadora e detalhada de Jesus aos discípulos, sobre as coisas futuras, palavras que sempre foram, ao longo da história, entendidas literalmente. Porém, se nós as lermos com uma mentalidade serena, à luz do que hoje se conhece acerca do universo, mesmo quem não for especialista no assunto perceberá que se trata de eloquente alegoria. “O sol escurecerá...” quando eu era aluno do curso ginasial (isso já tem mais de 60 anos), eu li uma matéria que dizia assim: daqui a dois milhões de anos, o sol esfriará. Nunca esqueci disso. Essa deve ser a tendência natural, se imaginarmos que o sol é um corpo celeste que realiza intensa reação atômica, a tendência é que, com o passar do tempo (muito tempo mesmo), sua energia irá regredindo progressivamente. Mas sabe-se, por outro lado, que o nosso sol é apenas uma estrela de quinta grandeza e que existem inumeráveis sóis no universo, o que significa que se, acaso, o nosso sol escurecesse, em termos siderais, isso não faria grande diferença. Pura alegoria, portanto.
“As estrelas começarão a cair do céu...” essa era a concepção cosmológica dos povos antigos, que entendiam o firmamento como uma semiesfera, onde estariam “penduradas” as estrelas. Nos dias de hoje, nem uma criança do ensino fundamental pensa mais assim. Os riscos que, teoricamente, existem são de eventuais colisões de corpos celestes. “A lua não mais brilhará...” é outra frase que não resiste à mínima crítica, porque todos sabemos que a lua não tem luz própria, mas reflete a luz solar. Ora, essas frases só podem ser compreendidas metaforicamente. Eu fico boquiaberto quando ouço pessoas que, publicamente, afirmam que a Bíblia está cheia de erros, por causa dessas passagens. Essas pessoas não conseguem pensar alegoricamente e nem percebem que as expressões bíblicas reproduzem uma mentalidade e um conhecimento pré-científico de diversos séculos antes de nós e que precisam ser devidamente aculturados para fazerem sentido na nossa época. O que realmente importa é interpretá-las para compreendê-las.
Agora, passando para as outras expressões contidas nesse mesmo contexto, no evangelho de Marcos, obrigatoriamente também concluiremos que elas devem ser entendidas metaforicamente: “vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens”..., “enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade a outra...”, “essa geração não passará até que isso aconteça”... São frases que precisam ser relidas e reinterpretadas no seu significado cultural e religioso, na mesma proporção em que fizemos com as afirmações de conteúdo cosmológico. Com certeza, Jesus não aparecerá sentado numa nuvem, os anjos não tocarão trombetas ensurdecedoras para despertarem os mortos e os reunirem aos vivos, pois se forem somadas as quantidades de seres humanos de todas as épocas, veremos que não haveria espaço físico suficiente no planeta terra para conter tanta gente. A geração que não passará não é a geração cronológica, mas a “gens” humana. E aqui está a afirmação mais grave. Eu entendo aqui que a ganância dos seres humanos vai terminar por inviabilizar a vida terrestre. No ritmo que as coisas más estão acontecendo, isso parece que não vai demorar muito. A sucessão de desastres ecológicos provocados pela irracionalidade e a ambição de alguns irresponsáveis irá, isso é certo, por um fim na humanidade. E aí sim, teremos o “final dos tempos”. Não do modo literal como está descrito no texto do evangelista Marcos, mas no sentido de que, com a extinção dos seres humanos, o tempo realmente se extinguirá, porque não haverá mais seres humanos com consciência e racionalidade para reconhecê-lo e contabilizá-lo.
Importa aqui assinalar também que Jesus, naquela ocasião e de forma profética, se referia à destruição de Jerusalém, por causa da infidelidade do povo judeu e pelo fato de não o terem reconhecido como o Messias esperado. A Jerusalém histórica, com efeito, foi destruída pelo exército romano no ano 70 anos depois de Cristo. A “grande tribulação” a que Jesus se referiu no seu discurso metafórico se reportava, em primeiro lugar, à profanação do templo de Salomão pelos romanos, o que iria causar (como de fato causou) grande comoção para os judeus. Mas após a destruição dessa Jerusalém de pedras e tijolos, ergueu-se outra Jerusalém simbólica, atemporal e espiritual, que é a Igreja de Cristo, que veio substituir e firmar-se sobre as ruínas do templo salomônico.
Aqui nesse contexto se encaixa o texto da segunda leitura, da carta aos Hebreus (Hb 10, 11-12): “Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados. Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.” Os cultos ofertados no templo de Salomão não têm comparação com a oferenda de Cristo, que foi única e definitiva. A redenção operada por ele transformou aquela Jerusalém de pedras e tijolos em um templo imperecível, que não está mais situado num espaço geográfico, mas no coração de todos aqueles que creem. E os salvos não estão mais inscritos “num Livro”, como disse o profeta Daniel, mas estão espalhados por todos os confins da terra, reunidos sob a presença mística de Cristo, que afirmou: onde houver dois ou mais reunidos em meu nome, eu estarei ali presente. Não é mais necessário se deslocar até uma Jerusalém geográfica ou até o templo físico, porque a Jerusalém celeste e o templo espiritual estão onde estiverem os cristãos unidos em sua fé. Essa é a grande diferença. Essa é a verdadeira realidade que representa o conjunto das coisas futuras.
Se observarmos bem, o discurso de Cristo é fundamentalmente de cunho ecológico, bem atualizado para a linguagem do nosso mundo atual. O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão. Aquela concepção cosmológica de céu e terra não faz mais nenhum sentido para a mentalidade moderna. São céu e terra passados. Mas essa geração não passará até que tudo isso aconteça. Infelizmente, estamos presenciando, sob diversas formas de condutas de pessoas sem escrúpulo da geração humana, ações devastadoras que nos induzem a pensar que “as folhas da figueira da parábola estão ficando verdes e os frutos não demorarão a aparecer”. Que Deus dê a essas pessoas a chance de se conscientizarem disso, antes que seja tarde demais.
Um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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