COMENTÁRIO LITÚRGICO – TODOS OS SANTOS – COMUNHÃO DOS SANTOS - 03.11.2024
Caros Confrades,
A liturgia comemora neste domingo a festa de Todos os Santos, que foi transferida do dia 1º para o domingo seguinte. Essa festa é necessária, porque dada a grande quantidade de pessoas canonizadas oficialmente pela Igreja e muitas outras mais que, embora não estejam ainda no rol oficial dos santos, foram seguidores exemplares de Cristo, não seria possível fazer celebrações destacadas de todos esses fieis distribuindo-os pelos dias do ano. Além disso, esta solenidade litúrgica nos traz para a reflexão a verdade teológica da “comunhão dos santos”, que nós rezamos no Credo, e faz parte dos enunciados básicos da fé católica. Esta comunhão (melhor explicada no termo latino 'communio'), ou seja, a comum união de todos os cristãos, inclui não apenas aqueles que já estão no reino de Deus (a comunidade gloriosa) mas também aqueles que ainda estão a caminho, isto é, nós (comunidade operosa), que vivemos no meio das vicissitudes e tribulações do tempo, a proclamar com nossa vida cristã a nossa fé na ressurreição.
É bem significativo refletir sobre o dogma religioso da comunhão dos santos e sobre o próprio significado do termo 'santos', porque nós habitualmente designamos com essa palavra aqueles cristãos que foram “canonizados”, ou seja, aqueles que tiveram suas virtudes publicamente reconhecidas pela Igreja Católica e são colocados nos altares, como modelos para todos. Não podemos, porém, esquecer que o apóstolo Paulo, na carta aos Romanos (8, 32) utiliza o termo “santos” como sinônimo de cristãos e, portanto, todos nós somos santos. Ou, pelo menos, somos destinados para a santidade. Ser santo não significa nunca cometer algum deslize, não significa viver de joelhos, com o terço ou a Bíblia na mão ou recitando os salmos, não equivale a nunca ter raiva de alguém nem nunca ter cometido qualquer desobediência à lei de Deus. Os cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição cultural religiosa comumente nos leva a fazer uma relação paradoxal entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. Com efeito, teologicamente, não é assim. Tanto aqueles que foram canonizados são santos, como também os cristãos falecidos na graça de Deus e ainda nós, que peregrinamos do “vale de lágrimas” e que tomamos os canonizados como modelo de nossa vida cristã. Quando o jovem perguntou a Jesus: Mestre, o que devo fazer para alcançar a vida eterna? Jesus respondeu: observa os mandamentos (Lc 18, 18). Esta pergunta, dita com outras palavras, pode muito bem ser entendida assim: Mestre, o que devo fazer para ser santo? A resposta é a mesma: observa os mandamentos.
A comunhão dos santos é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome de “corpo místico”, do qual Jesus é a cabeça e nós somos os membros. Este corpo místico na sua forma visível é a Igreja e engloba todos os fiéis seguidores dos mandamentos de Cristo, de antes, de hoje, de ontem e de depois, todos formando uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É nesse contexto que devemos entender a primeira leitura da liturgia de hoje, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Numa linguagem direta, João se refere às doze tribos de Israel, num montante de doze mil de cada uma, para chegar a esse total. João era judeu e talvez tivesse a esperança de que os seus irmãos de raça ainda viessem aderir à mensagem de Cristo. Historicamente, sabe-se que isso não ocorreu, ao menos, não ocorreu ainda. Mas ele previu, logo a seguir, (Ap 7, 9) “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar.” É aqui que nós entramos e essa multidão é tão imensa, que João nem teve como quantificar, e nem poderia. E todos também estavam marcados para serem salvos, uma vez que “estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Unindo num mesmo contexto as lições dos apóstolos João e Paulo, podemos concluir sem medo de errar: todos igualmente santos, todos igualmente irmãos, todos igualmente face a face com o Criador.
Na segunda leitura, o mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos: sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!” Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois nós abraçamos pela fé esse grande mistério revelado por Cristo, embora tal situação vá se consolidar somente no futuro. Assim, pela fé, nós já somos filhos de Deus, embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante para explicar isso: “já e ainda não”, é a grandeza do mistério que nós conseguimos alcançar com a nossa fé. Nós já somos santos, mas ainda não sabemos bem como é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem crê. Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.
A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Jesus chama de bem-aventurados (Mt 5, 1-12) todos os que estão submetidos a algum tipo de tribulação. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que nós somos santos. Em latim, bem-aventurados se diz 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tradução que também aparece em algumas versões do texto sagrado. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem-aventuradas) eram aquelas bem aquinhoadas de bens, que já recebem logo neste mundo uma recompensa abundante. Assim, perante essa visão farisaica, bem-aventurados eram os ricos, os poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a sofrer na outra vida.
Contrariando esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e os convidados não compareceram, tendo ele convidado os mendigos e os moradores de rua para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que lavou os pés dele com lágrimas na presença dos fariseus (não confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5), ele vai dizer quem são os verdadeiros bem-aventurados: os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.
Caros amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto chamados, vocacionados à santidade. Cada um de nós, na variedade das tarefas cotidianas, exercemos, do modo como Deus nos chama, a nossa vocação para a santidade. Não importa se um dia seremos canonizados, se teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, embora ainda não tenhamos chegado lá. Isso significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O que Deus quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca daquilo que nos falta para alcançarmos a santidade plena. E o modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor ao próximo.
Que nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar sempre mais da perfeição que conduz à santidade.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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