COMENTÁRIO LITÚRGICO - SÃO PEDRO E SÃO PAULO – PROTAGONISTAS DA FÉ – 30.06.2024
Caros Confrades,
Neste domingo, a memória litúrgica é dedicada aos Santos Pedro e Paulo, os dois baluartes do cristianismo ocidental. O cristianismo teve início em Jerusalém, onde Jesus fora crucificado, onde ele concluiu suas pregações, a cidade símbolo para os judeus e também a grande metrópole daquela região geográfica. Todos os apóstolos eram de cultura judaica, então o território onde por primeiro o cristianismo foi difundido ficava nos arredores de Jerusalém, tanto naquelas localidades que Jesus havia visitado quanto nas demais, por onde os apóstolos saíram na sua pregação missionária. Da Judeia, passaram para as comunidades judaicas instaladas em Alexandria, Antioquia e Constantinopla, as quais serviram de base para a expansão do cristianismo entre os gentios. A difusão do cristianismo pelo mundo greco-romano se deu por obra de Paulo. Após uma discussão com Barnabé, eles decidiram dividir as tarefas: Barnabé continuaria pregando para as comunidades judaicas e Paulo partiu para pregar o cristianismo aos gentios (pagãos de língua grega). Depois de fundar diversas igrejas, por último Paulo dirigiu-se a Roma e, após estabelecer uma comunidade cristã, levou Pedro para ser o chefe da igreja romana. Afinal, convinha que a comunidade cristã da metrópole Roma, a capital do mundo de então, fosse confiada a Pedro, a quem Jesus havia concedido a primazia entre os apóstolos. Paulo não quis assumir para si esse ônus e essa honraria, embora tenha sido o seu fundador.
As comunidades cristãs nas terras do oriente (Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla) formam hoje o cristianismo ortodoxo e são autônomas em relação a Roma. Paulo exerceu um papel fundamental para a difusão do cristianismo no ocidente porque, se dependesse apenas dos apóstolos treinados por Cristo, a religião cristã não teria ido além dos limites do mundo judaico. Eles não tinham condições intelectuais de penetrarem na cultura greco-romana, nada conheciam disso, não falavam bem a língua grega, não tinham o talento necessário para pregar o cristianismo no mundo helenizado. Mas Jesus queria que a sua doutrina fosse espalhada por todos os povos e então ele fez o milagre que eu considero o mais complexo e grandioso de todos: cooptar o seu maior perseguidor e torná-lo o seu maior pregador. Para mim, esta é a maior prova da divindade de Cristo e, ao mesmo tempo, prova da origem divina da igreja cristã. Ele precisava de um pregador com formação intelectual destacada nas duas culturas (judaica e grega) e com grande fervor missionário e foi encontrar essas qualidades na pessoa de Paulo.
Ocorre que Paulo era ardoroso fariseu, combatedor da doutrina cristã, tal era a sua fidelidade à tradição judaica. Então, como para Deus nada é impossível, o impossível aconteceu, quando Paulo foi abordado no caminho de Damasco, jogado ao chão e logo transtornado e transformado no mais ardente e vigoroso defensor do cristianismo. Foi ele mesmo quem escreveu isso, na carta aos Gálatas (1, 14-16): “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma ” E ele completa, dizendo: eu não recebi o conhecimento da doutrina cristã por ensinamento de homem nenhum, mas diretamente de Cristo, por revelação. Os apóstolos judeus não tinham conhecimentos profundos nem discurso elegante, eles eram pescadores, pessoas de poucas letras, não podiam ser instrutores de Paulo. Então, todo o conhecimento que Paulo extraordinariamente compôs e explicitou nas suas pregações e nas cartas que escreveu, tudo lhe foi revelado diretamente por Cristo, no ato de sua conversão. Conforme disse antes, essa é uma prova indiscutível, a mais eloquente da divindade de Jesus. Sem Paulo, muito provavelmente nós hoje não seríamos cristãos.
Paulo foi a Jerusalém conhecer Pedro, porque certamente estava informado de que Jesus havia deixado com ele a liderança do grupo. E Tiago era o dirigente da igreja cristã em Jerusalém. No início de sua atividade, Paulo foi convidado por Barnabé, para trabalharem juntos na igreja cristã de Antioquia, importante cidade da Ásia Menor. Quando Barnabé e Paulo saíram de lá para novas missões em outras terras, deixaram Pedro como dirigente da igreja de Antioquia. Ali, Pedro ficou durante vários anos, enquanto Paulo pregava o cristianismo e convertia os gentios de língua grega, sempre deixando um líder em cada cidade e partindo para outra. A igreja de Roma foi a mais tardia de todas, Paulo chegou lá quando já havia pregado o cristianismo em todas as outras localidades do mundo greco-romano, isto é, todas as outras comunidades são mais antigas do que a de Roma. Mas Roma era a capital do mundo e Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o trouxe para Roma.
Um pouco acima, mencionei as igrejas centrais do mundo oriental: Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla. A igreja de Roma centralizava o cristianismo no território europeu e todas tinham a mesma hierarquia. Nos primeiros séculos, a relação entre a igreja romana e as igrejas orientais era pacífica, mas, lamentavelmente, por ingerências políticas e divergências doutrinárias, essas igrejas irmãs entraram em um processo de desgaste, que culminou com o grande cisma do ocidente, no ano de 1054. Fator decisivo para isso foi a doutrina da “chefia” do líder da igreja de Roma sobre os líderes das demais igrejas. Cada igreja oriental tinha seu patriarca e estes não aceitaram ficar submissos ao dirigente da igreja de Roma. Essa doutrina resultou da influência dos imperadores romanos nos negócios eclesiásticos, primeiro Constantino e Teodósio, mais tarde, Justiniano e Carlos Magno. Por interferência deles, seguindo o modelo político vigente, o bispo de Roma foi transformado em autoridade universal, uma espécie de rei sobre todas as demais igrejas. Os orientais nunca concordaram (nem concordam hoje ainda) com isso e, a meu ver, com toda razão. E esse é o grande entrave que o Papa Francisco tenta, com paciência e habilidade, superar, mas encontra fortes resistências de ambos os lados. O Papa Bento XVI chegou a nomear dois Patriarcas orientais como Cardeais, o que já foi um grande avanço. Mas ainda há muitas objeções para serem negociadas.
Bem, a igreja romana adota como fundamento bíblico deste 'primado de Pedro' o trecho do evangelho de Mateus (Mt 13, 19), o conhecido episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras considerações. Apenas no evangelho de Mateus existe essa passagem que fala em “construir a igreja sobre essa pedra” e 'dar as chaves' da igreja a Pedro. Eu tenho uma séria desconfiança de que esse trecho não seja original de Mateus, pode ter sido manipulado, inserido no texto em época muito antiga, a fim de justificar a doutrina da primazia romana. E digo isso com base em três constatações ou indícios. Em primeiro lugar, penso que o texto original devia assemelhar-se ao que está no evangelho de João (1, 42), onde é narrado o primeiro encontro de Jesus com Simão e Jesus lhe disse: “tu te chamarás Kefas – que significa Petrus”. E pára por aqui. Possivelmente alguém fez os acréscimos que constam no evangelho de Mateus, como forma de justificar biblicamente a doutrina da “chefia”, na época da polêmica. Em segundo lugar, vejo outro claro indício na expressão “sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ora, todos sabemos que Jesus nunca mandou criar uma igreja, o que ele mandou foi que os apóstolos pregassem o reino de Deus a todos os povos, ensinando a sua doutrina e batizando-os. O conceito de igreja foi-se desenvolvendo aos poucos, com as comunidades gregas (ekklesias). Esse linguajar “edificarei a minha igreja” não me parece coerente com os demais discursos de Cristo, gerando forte suposição de adaptação textual, numa época em que esta doutrina estava iniciando e necessitava de fundamentação. Em terceiro lugar, façamos um breve retrospecto histórico. A polêmica do “primado de Pedro” teve início lá pelo século IV, tendo sido objeto de inúmeras disputas durante mais de 500 anos, até explodir no cisma, em 1054. Por outro lado, os textos bíblicos hoje conhecidos somente foram tornados oficializados no Concílio de Trento (1545-1563). Ora, nesses 500 anos de discussões, digamos que tudo era válido para justificar uma posição política dentro da Igreja. Daí que eventual manipulação do texto não pode ser descartada. É a minha opinião, respeitando os que discordarem.
Bem, meus amigos, essas reflexões que faço não têm intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do sucessor de Pedro, mas são como uma espécie de autocrítica, pois as igrejas orientais possuem uma riquíssima tradição e são mais antigas do que a igreja romana, merecem todo o nosso respeito. Que o Espírito Santo e o espírito de Pedro iluminem sempre mais o nosso Papa, para levar adiante a sua difícil empreitada em busca da união de todos os cristãos.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos