COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO COMUM – A CURA PELA FÉ – 27.10.2024
Caros Confrades,
Na liturgia deste 30º domingo comum, a leitura do profeta Jeremias faz alusão ao “resto de Israel”, uma expressão também usada pelo profeta Isaías (10, 20), referindo-se aos israelitas que foram libertados do cativeiro da Babilônia e haviam de retornar a Jerusalém. O “resto” significa o povo sobrevivente, aqueles que estavam submetidos ao poder do inimigo e agora retornavam à liberdade. Num certo sentido, todos nós, que caminhamos no meio das tribulações da vida, fazemos parte deste “resto” do povo de Deus, a caminho da casa do Pai. O Papa Francisco tem enfatizado, em seus discursos, a imagem da Igreja “em saída”, ou seja, em constante atividade de evangelização, contrastando com a imagem tradicional da Igreja burocrática, embarreirada pelos seus muros e acomodada em sua região de conforto. O seguimento de Jesus exige presença e ação no mundo, para que o cristão seja sempre fermento, sal e luz.
A palavra inspirada do profeta Jeremias é bastante significativa tanto no contexto histórico do povo hebreu daquele tempo, quanto no caminhar geral de toda a humanidade. Diz ele: “Eis que eu os trarei do país do Norte e os reunirei desde as extremidades da terra; entre eles há cegos e aleijados, mulheres grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam ” (Jr 31, 8). Num primeiro momento, a profecia se dirige aos cativos da Babilônia, mas numa visão histórica de futuro, se refere a todos os crentes localizados em todos os confins da terra e esse grupo inclui pessoas sadias e pessoas em situações especiais, porque as vicissitudes da existência afetam as pessoas de diversas maneiras. Mas essas provações não devem abalar a fé do cristão, pois mesmo estando cego, aleijado, parido, necessitado de cuidados, todos serão conduzidos por um caminho reto para a terra prometida. A descrição do profeta Isaías sobre o “resto de Israel” é também bastante ilustrativa: “Um resto voltará, um resto de Jacó, para o Deus forte. Ainda que teu povo fosse inumerável como a areia do mar, dele só voltará um resto. A destruição está resolvida, a justiça vai tirar a desforra." (Is 10,20) . Isaías é mais enfático em relação àqueles que não aceitarão a salvação oferecida por Javeh. Embora, em tese, toda a humanidade seja convidada à salvação, no entanto, nem todos atenderão e assim a redenção trazida por Cristo não alcançará a todos, mas apenas ao “resto”, aos sobreviventes da tribulação. E por que isso ocorrerá? Porque Deus não interfere na liberdade das pessoas, Ele oferece a salvação, mas espera que haja adesão da vontade, espera que o crente exercite a sua fé na Sua palavra, tal como aconteceu com o cego do evangelho, que abordaremos em seguida..
A segunda leitura, da carta aos Hebreus, faz referência ao sacramento da salvação, que é mediado pelo sumo sacerdote. Trata-se de uma alusão indireta à comunidade eclesial, onde o crente pratica a sua fé e recebe os meios para superar os desafios que a vida cotidiana interpõe no nosso meio. O sacrifício expiatório de Cristo é rememorado pelo sumo sacerdote. Ele é retirado do meio do povo e, por isso, conhece as dificuldades e os entraves do existir temporal, portanto, sabe compreender as fraquezas dos irmãos, porque ele é também afetado por essa fraqueza. Então, ao oferecer o sacrifício da cruz, ele reza tanto pelos pecados dos outros, quanto por seus próprios pecados. Cristo encarregou seus apóstolos, e esses os seus sucessores, para continuarem a guiar o “resto” do povo pelos caminhos do mundo, mostrando onde ficam as torrentes de água e ensinando o caminho reto que conduz ao destino esperado. A carta aos Hebreus faz referência ao sacerdócio de Melquisedec, personagem que é interpretado como sendo o precursor do sacerdócio de Cristo e, por intermédio de Cristo, esse mesmo sacerdócio se reproduz nos presbíteros ordenados. Aquele refrão que antigamente era cantado nas missas solenes de ordenação é bastante forte e emblemático: tu es sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedech. O sacerdote é, desse modo, aquele que deve liderar o povo sobrevivente das tormentas do cotidiano, o “resto” da humanidade salva por Cristo, aqueles “144 mil assinalados”, de que fala o Apocalipse. Daí decorre a necessidade de que o fiel se integre na comunidade eclesial, porque essa condução pelo caminho reto é obra coletiva, não se resolve individualmente.
Na leitura do evangelho de Marcos, temos o conhecido episódio da cura de Bartimeu, o cego de Jericó (10, 46-52), personagem este que simboliza a multidão referida pelo profeta Jeremias, na primeira leitura. Entre os sobreviventes, há cegos, aleijados, gestantes e parturientes. A liturgia coloca para nossa reflexão a figura do cego, simbolizando nele todos aqueles que estão expostos aos perigos e às tentações do mundo infiel, aos estratagemas da ideologia do poder e do dinheiro, às seduções da corrupção e da injustiça, ou seja, todos nós. O cego de Jericó é o protótipo do cristão santo e pecador, crente e duvidoso, sadio, mas nem tanto, pois que precisa que Jesus lhe abra os olhos, para que possa ver melhor o mundo onde habita e progredir na fidelidade à mensagem cristã.
Vejamos uma breve notícia de cunho histórico e geográfico. Jericó é uma das cidades mais citadas nos evangelhos, porque era já naquela época uma das cidades mais importantes da Palestina. Sua conquista pelos hebreus, sob o comando de Josué, quando estavam retornando do Egito, foi uma das mais memoráveis (quando as muralhas caíram), então esta cidade era um ícone da nacionalidade hebraica, um lugar muito visitado. Geograficamente, situa-se a 27 km de Jerusalém e a 10 km do Mar Morto, sendo considerada pelos historiadores uma das cidades mais antigas do mundo, pois há evidências de ter moradias lá desde pelo menos 9.000 anos antes de Cristo. Este fato fazia com que muitas pessoas passassem diariamente por Jericó e, com isso, havia muitos pedintes na entrada da cidade, como ainda hoje se vê nas nossas cidades que são alvo romarias religiosas.
Pois bem. Jesus passava por Jericó, a caminho de Jerusalém, onde o desfecho da sua vida iria acontecer. Na entrada da cidade, havia um grupo de cegos pedindo esmolas aos viajantes. O Padre Uchoa, que foi meu professor de Bíblia, comentava que havia verdadeiros bandos de pedintes nas entradas das grandes cidades, explorando a caridade pública, além de vendedores de quinquilharias e souvenirs diversos, tal como vemos hoje nas cidades turísticas, em geral. Em Jericó, devia ser algo assemelhado. Ao saber que Jesus estava passando, um cego de nome Bartimeu começou a gritar: “Filho de Davi, tem piedade de mim”. De tanto gritar e insistir, Jesus mandou chamá-lo. Diz o evangelista que ele deu um pulo, largou o manto onde recolhia as moedas que lhe jogavam como esmola e foi até onde Jesus se encontrava. “Que queres que eu te faça?”, perguntou Jesus. (Mc 10, 51) E ele respondeu: Mestre, eu quero ver. E Jesus disse: Assim será, a tua fé te curou. E ele passou a enxergar e saiu acompanhando Jesus. Ao sair do comodismo do seu lugar de pedinte, o cego Bartimeu assumiu uma nova realidade de vida, iniciou um novo caminho, armou-se de disposição para seguir o Mestre.
Neste diálogo de Jesus com o cego Bartimeu, podemos ver um exemplo de que o milagre divino não se opera sem a colaboração do beneficiário. Por certo, junto com Bartimeu, havia outros cegos, aleijados e necessitados, porém não foram beneficiados com o fato milagroso, porque não creram. Jesus fez questão de dizer a ele que foi “a tua fé que te curou”. O poder divino de Jesus não agiria na sua deficiência, se não houvesse a sua cooperação com a fé, a sua disponibilidade para aceitar, a sua coragem para assumir aquela nova situação. É óbvio que Jesus, pelo seu conhecimento divino, sabia quem estava a gritar por Ele, sabia que era uma pessoa das mais pobres e excluídas da sociedade. E também pela sua sabedoria divina, Jesus conhecia a intensidade da fé daquele mendigo, sabia o que estava subentendido naquela prece insistente: “Tem piedade de mim”. É como se ele dissesse: com o teu poder, tira-me dessa situação. E Jesus retribuiu a sua oração com o milagre da cura, mas foi logo avisando: foi a tua fé que te curou, ou seja, persevera com esta fé, ela te renderá a salvação, mantém a fé operante e firme, pela fé tu és incluído no rol dos sobreviventes. Inspirada neste e noutros exemplos similares é que a teologia da graça divina ensina que, embora Deus dê a todos a graça, esta somente age no coração dos que a aceitam e a ela aderem. Ou por outras palavras, o efeito do poder divino na nossa vida será proporcional à intensidade da nossa fé.
Por isso, podemos dizer que, para o milagre acontecer nas nossas vidas, embora o poder de Deus seja pleno e absoluto, nossa participação através da fé é indispensável, porque o poder de Deus não se sobrepõe à nossa vontade, e a fé é a manifestação mais completa do ato da vontade humana.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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