sábado, 27 de julho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - PÃO PARA TODOS - 28.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – PÃO PARA TODOS – 28.07.2024


Caros Confrades,


As leituras litúrgicas deste 17º domingo comum narram episódios de multiplicação de pães, preconizando o milagre eucarístico, que seria depois realizado por Jesus, perpetuando-se na história e chegando até nós. O alimento que chamamos pão está presente desde os tempos mais remotos da humanidade, em todas as culturas. O tipo mais comum é o pão de trigo e sua presença na Bíblia se encontra em diversos momentos, aquele cuja fartura saciou a fome de milhares de fiéis, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. Por isso, ao despedir-se, Jesus quis deixar o pão como o símbolo de sua permanência entre nós e instituiu-se a si próprio em pão da vida, não somente para saciar a fome natural, mas sobretudo para locupletar o espírito com o pão vivo e imortal.


Na primeira leitura de hoje, retirada do Livro dos Reis (2Rs 4,42), narra-se um fato miraculoso operado pelo profeta Eliseu vários séculos antes de Cristo, sendo um evento antecipatório do futuro milagre da multiplicação dos pães, que seria realizado pelo Messias. Num tempo de grande seca e, portanto, de fome para o povo, Eliseu ganhou de presente 20 pães, trazidos por um estrangeiro, mas não os recebeu, porque seria egoísmo de sua parte saciar a própria fome, enquanto o povo padecia faminto. Então, ele mandou que os pães fossem distribuídos para o povo. O portador dos pães ficou preocupado: como vou distribuir tão poucos pães para tantas pessoas famintas? Ele, prudentemente, deve ter logo imaginado o tumulto que isso iria ocasionar e as brigas entre as pessoas disputando os pedaços, podendo até ocorrer agressões e ferimentos e ele mesmo poderia ser vítima do episódio. E queixou-se ao Profeta. Mas este o tranquilizou: O Senhor disse – comerão e ainda sobrará. E assim aconteceu e essa foi a primeira vez da repartição do pão para todos.


A imagem do pão, encontrada em todas as culturas, desde as mais remotas, com o passar dos séculos, não perde a sua primazia, porque o pão continua sendo o alimento básico do ser humano. Além daquele padrão, feito de trigo, há as variantes regionais, de acordo com as produções agrícolas locais, com uso de milho, de mandioca, de batata, daquele tipo de massa que for mais abundante numa região. O pão é um símbolo da própria vida que ele alimenta. Por causa da sua importância cultural, o pão ultrapassa a pura matéria física para significar os diversos dons que acompanham a vida humana, além da simples satisfação da fome corporal. O saciamento da fome induz ao bem-estar, à alegria, à boa convivência, faz elevar o espírito para as realidades sobrenaturais, então o pão é muito mais do que um alimento material, é um verdadeiro mantenedor vital do ser humano. Foi por esse motivo que Jesus, quando quis deixar um sinal perpétuo da sua presença no meio da humanidade, adotou o símbolo do pão, transformando a Si mesmo em pão da vida.


No relato do evangelista João (6, 1-15), Jesus revive a cena histórica do profeta Eliseu, diante da multidão que o acompanhara de longe, na sua travessia do Lago de Tiberíades, encontrando-o na margem oposta. Ele próprio fez uma provocação aos apóstolos, indagando-lhes pedagogicamente, mesmo já sabendo da solução que adotaria: onde arranjaremos pão pra esse povo todo comer? E Felipe avaliou: nem duzentas moedas seriam suficientes para comprar um pedaço pra cada um. Foi quando André trouxe a informação: tem ali um rapaz com cinco pães e dois peixes, mas de que adianta isso para tanta gente? Jesus só não repetiu o refrão de Eliseu (“comerão e ainda sobrará”), mas fez que o povo sentasse e mandou distribuir os pães e os peixes, depois de abençoá-los. E o milagre da fartura se repetiu, todos comeram até ficarem saciados e ainda sobraram doze cestos com os pedaços deixados. Juntem tudo, para que nada se perca. Aquelas sobras, provavelmente, poderiam saciar novamente outros famintos, pois como vimos no evangelho do domingo passado, as pessoas estavam sempre a seguir aonde Jesus e os apóstolos estavam, de modo que eles não tinham uma folga nem para comer. E o número de cestas que sobraram (doze cestas) contém uma alusão implícita às doze tribos de Israel. Simbolicamente, aquela recolha do excedente representava a totalidade do povo judeu.


Pois bem, nesse relato do evangelista João, podemos destacar alguns detalhes interessantes. Primeiro, a preocupação de Jesus com a fome daquelas pessoas. As pessoas não foram se queixar de fome para Ele, ao contrário, estavam ali para ouvi-Lo. Mas Jesus sabia que, sem a alimentação corporal adequada, a mente não funciona, a concentração não ocorre, o aprendizado é nulo. Então, antes de alimentar o espírito, é necessário alimentar o corpo. Isso significa que a Igreja não pode se descuidar dos aspectos materiais da vida social, da melhoria das condições de vida e de trabalho dos fiéis, ou seja, não compete às autoridades religiosas apenas celebrar missas e oficiar os sacramentos, mas junto com isso, deve ter a preocupação com a vida material justa. Junto com o pão da palavra, os pastores devem também preocupar-se com a assistência material das pessoas mais carentes da comunidade, enquanto os fiéis melhormente aquinhoados devem colaborar para a efetivação desse serviço. Viver a religião não deve se resumir a frequentar o templo nos dias celebrativos, fazer as novenas e rezar o terço. Isso é importante, sem dúvida. Mas ficam faltando os atos concretos, as “obras” de caridade, que devem ser inseparáveis da fé.


Outro detalhe que importa destacar é que o milagre de Jesus foi possibilitado pela presença de um rapaz trazendo cinco pães e dois peixes. Ele poderia ter feito o milagre independentemente disso, podia ter transformado até pedras em pão ou ter feito cair pão das nuvens, mas, não, Ele quis a colaboração de alguém da comunidade. Isso significa que Deus prefere agir por nosso intermédio, com a nossa colaboração, mesmo para fazer as coisas mais extraordinárias. Santo Tomás de Aquino ensinava, utilizando a terminologia filosófica de Aristóteles, que Deus age por causas segundas. Essas “causas segundas” são as ações indiretas. Ele pode atuar de forma direta e imediata, mas muitas vezes, Deus se serve de nós, de um coirmão ou coirmã nosso(a) para operar prodígios e, nesse caso, Deus nos honra grandemente agindo por nosso intermédio. Quando Ele nos dá fartura de bens materiais, Ele também espera que nós contribuamos com maior generosidade para o serviço dos irmãos. É bem verdade que, nas sociedades modernas, tais obras assistenciais devem ser acionadas pelas autoridades públicas, porém, mesmo que isso aconteça (o que nem sempre ocorre), não ficamos dispensados de colaborar com a nossa parte. Portanto, nós precisamos estar sempre disponíveis para Deus agir por nosso intermédio, através da nossa fé operante, através do nosso exemplo e do nosso testemunho. Muitas vezes, nós nem atentamos para isso, mas as nossas atitudes estão sendo percebidas por outras pessoas e o nosso bom exemplo pode estar sendo decisivo para que um irmão, momentaneamente fraco na fé, ganhe força e supere um obstáculo na sua vida. Se deixarmos Deus agir por meio de nós, nós também poderemos ser esses agentes transformadores, sem que isso necessariamente cause em nós canseira ou preocupação. Na nossa vida cristã cotidiana, as nossas atitudes normais de cada dia podem se transformar em importantes instrumentos divinos para a realização de obras valiosas na sociedade.


Quando Jesus, na última ceia, serviu-se do pão para tornar-se presente permanentemente no nosso meio, ele quis associar a Si próprio a este alimento, que desde os primórdios da raça humana tem sido indispensável. Assim como o pão da massa material é um artigo universalmente inerente às sociedades humanas, Jesus quis que o seu corpo em forma de pão tivesse a mesma presença e mesma participação na nossa vida. Eu, particularmente, sinto um certo desconforto quando vejo a celebração eucarística sendo realizada com aquela composição do trigo, que chamamos de hóstia, porque me dá a impressão que assim nos afastamos da verdadeira intenção de Cristo, quando fez-se pão, visto que a aparência física da hóstia, embora saibamos que é produzida com a mesma massa do pão, não tem nenhuma semelhança visual com este. E eu fico pensando que Cristo quis que o Seu corpo fosse associado ao visual do pão comum, aquele alimento básico e essencial, conhecido por todos. Nós não tomamos café com hóstia, leite com hóstia, e eu acho que Cristo queria que fizéssemos uma associação visual entre o pão eucarístico e Ele, que se elevasse à dimensão da fé. O pão que alimenta o corpo também, e ao mesmo tempo, alimenta o espírito. Nas Igrejas Católicas Ortodoxas, o pão eucarístico é o pão comum mesmo, não tem esse formato de hóstia, que estamos acostumados a ver. A mim, parece que lá a vontade de Jesus esteja sendo cumprida mais fielmente.


Com a devida vênia dos Confrades que não concordam, um cordial abraço a todos.


Antonio Carlos

sábado, 13 de julho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO COMUM - 14.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O ENVIO – 14.07.2024


Caros Confrades,


Neste 15º domingo do tempo comum, o tema litúrgico em destaque é o envio dos apóstolos para pregarem o Evangelho nas cidades da região da Galileia. Essa foi uma espécie de estágio, que Jesus deu aos apóstolos, após um período de ensinamento, para que eles colocassem em prática o que haviam aprendido. Tempos depois, por ocasião de sua ascensão, Jesus os mandou novamente, mas dessa vez, para evangelizarem todos os povos. Numa visão hermenêutica transistórica, o mandado do envio se direciona também a nós, seus discípulos dos dias atuais e a todos os discípulos de Jesus, em todos os tempos. Com nossa vida e com nosso testemunho, continuamos a evangelizar, seguindo o mandado de Jesus.


A temática do envio encontra-se presente também na primeira leitura, retirada do profeta Amós (7, 12). Este era um profeta de poucas letras, pastor de rebanhos, agricultor, homem simples e humilde, não tinha antepassados na atividade no ramo profético. Mas sua profecia causava incômodo às elites israelitas, exatamente por ser ele um homem do povo, não pertencente à linhagem tradicional. Então, o sacerdote do templo de Betel, de nome Amasias, a pedido do rei, o chamou e mandou que fosse profetizar em Judá e lá trabalhar, para ganhar a vida, advertindo-o a não profetizar ali em Betel, porque neste local estavam localizados a corte do rei e o templo oficial, onde Amasias era o sacerdote e, portanto, o 'profeta' oficial. Em outras palavras, Amasias estava querendo se livrar de Amós, porque este, a mando de Javé, denunciava a tibieza e a exterioridade da religião oficial de Israel, cujos cultos não agradavam a Javé por causa da ausência de devoção e do excesso de formalismo, além da permissividade para o culto dos deuses pagãos. A resposta de Amós foi bem desaforada, como o sacerdote não esperava: eu não sou profeta nem filho de profeta, sou pastor de gado, mas o Senhor me chamou quando eu estava pastoreando o rebanho e me mandou profetizar em Israel, é aqui que eu vou ficar. Com risco da própria vida, Amós prosseguiu no seu trabalho desafiando as autoridades, seguindo o mandado de Javé.


Isso aconteceu setecentos anos antes de Cristo. A vocação de Amós, um homem simples e de poucos estudos, antecipava o chamado que Jesus fez aos discípulos galileus, num contexto bastante similar, pois eram também pessoas do povo, pescadores, pessoas de poucas letras, e deveriam enfrentar também perseguições e dificuldades inerentes ao cumprimento da sua missão, junto às elites do povo judeu. Jesus disse aos discípulos que eles deviam pregar em todos os lugares, sem levar nenhum dinheiro, nem alforje, nem muda de roupa, nada, devendo receber o seu sustento pelas pessoas da comunidade. E onde não fossem bem recebidos, deviam sacudir a poeira das sandálias contra aquelas pessoas em protesto. E deu a eles o poder de expulsar demônios e curar doenças.


O profeta Amós, e em geral todos os profetas do Antigo Testamento, são personificações antecipadas dos discípulos que Cristo iria preparar para a pregação do seu Evangelho. Desse modo, os discípulos de Cristo em todas as épocas passaram a ser os profetas do seu tempo. Como resultado do cumprimento desta missão de envio, nós temos hoje a doutrina cristã presente em todos os recantos do mundo e nós somos os continuadores desta missão, espalhados em todas as camadas da sociedade. Isto é, os profetas dos nossos dias somos nós, seguidores de Cristo e comprometidos com a nossa vocação de enviados. O Papa Francisco é o nosso profeta-mor, com seu carisma, seu zelo, seu exemplo que encanta até mesmo os ateus.


Provavelmente, um seguidor de Cristo que pode ser apresentado como modelo mais perfeito do cumprimento desta missão talvez seja o nosso Seráfico Patriarca Francisco de Assis, sem dúvida, um grande profeta do seu tempo. Num momento em que a Igreja de Cristo passava por uma grave crise de identidade, ante a influência do secularismo, e as suas autoridades estavam sucumbindo às ambições do ter e do poder, bem como às seduções dos pecados capitais, o Senhor tocou o coração de Francisco e o enviou para 'reconstruir' a sua Igreja. Tão ingênuo, ele imaginou, a princípio, que seria apenas um pequeno serviço de reparos nas paredes, pinturas, limpeza, só depois entendeu o verdadeiro sentido do seu chamado. Mas, por sua humildade, soube ser totalmente fiel à sua missão. Enquanto outros reformadores históricos (como, por exemplo, Lutero), com arrogância e orgulho, entraram em rota de colisão com as autoridades cujos desmandos eles denunciavam, Francisco, ao contrário, fez todas as suas ações de forma tranquila e obediente às mesmas autoridades, cujo comportamento atípico ele reprovava com seu exemplo de seguidor do evangelho. E o que Francisco fez? Exatamente aquilo que Cristo mandou, quando enviou os seus discípulos: sem preocupações com a aquisição e acúmulo de bens, sem necessidade de provisões de alimentos nem vestimentas, recebendo da própria comunidade o seu sustento, como fruto do seu trabalho. Todos nós nos recordamos que é isso o que está contido na 'regra de vida' que Francisco deixou como herança para os seus frades. Por isso, podemos dizer que, se houve alguém que cumpriu fielmente o mandado de Cristo na pregação do Evangelho, este foi Francisco de Assis. Deste modo, o nosso compromisso com o engajamento na missão tem uma dupla fonte. De um lado, o envio de Cristo aos seus discípulos, conforme relatado por Marcos no evangelho; de outro lado, o exemplo modelar de Francisco, de cuja herança nós participamos, através da formação que recebemos no tirocínio da vida franciscana. Seguir a Francisco se equipara a seguir a Cristo, só que com maior entusiasmo e alegria, pois, juntamente com o envio, temos o exemplo mais efetivo do seu cumprimento.


Na segunda leitura, retirada da carta aos Efésios (1, 3), Paulo elabora um inspirado hino de louvor ao Pai, que em Cristo nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis, sob o seu olhar, no amor. Naquela época, dos primeiros tempos do cristianismo, a palavra “santo” era usada para referir-se aos cristãos, pois esse nome “cristão” ainda não era usual nas comunidades. Por diversas vezes, Paulo retoma esta palavra para se referir aos seguidores de Cristo, não tinha portanto, o sentido específico que o termo hoje possui. Nessa carta aos Efésios, ele exalta o dom da vocação que envolve todos os santos (cristãos) para serem profetas e evangelizadores, continuadores da missão salvadora de Cristo, através do envio que todos recebemos, como tributo do nosso batismo e da nossa adesão pela fé. Por Ele, nós fomos confirmados no Espírito, segundo o projeto do Pai, que assim nos predestinou para colocar a nossa esperança em Cristo e no seu evangelho da salvação.


Conforme a promessa de Cristo, são inerentes ao envio os poderes de expulsar espíritos malignos e curar os doentes. Estes poderes, que são transmitidos aos sacerdotes na cerimônia da ordenação, sintetizam o cerne da missão do evangelizador, isto é, curar os males corporais e espirituais, e não devem ser interpretados literalmente, e sim no sentido daquilo que Jesus disse, como resumo de sua missão: que todos se convertam e vivam. Quem interpreta estas palavras no sentido fundamentalista passa a praticar rituais de exorcismo, muito característicos de algumas entidades religiosas católicas e não católicas da atualidade, que até fazem demonstrações teatralizadas disso através da televisão. No meu modo de entender, o poder de expulsar demônios deve ser entendido como o poder de vencer o mal, em todas as suas formas de manifestações, principalmente aquelas mais presentes na sociedade contemporânea, materializadas na discriminação de pessoas, na exclusão social, na exploração do próximo através das nefastas práticas capitalistas, que tanta indignação causam às pessoas de boa fé. E o poder de curar doenças pode ser entendido como a aceitação e a promoção das pessoas mais necessitadas física e psicologicamente, levando apoio e auxílio aos irmãos mais frágeis e vulneráveis. Não existe uma receita ou um padrão de comportamento a ser indicado, mas isso será percebido pela sensibilidade de cada um, perante a sua consciência iluminada pela fé. Os sacerdotes recebem essa missão de forma plena, mas pelo batismo, também nós leigos a recebemos em grau genérico, conforme a promessa de Cristo, e compete a cada um de nós encontrar a melhor forma de pô-los em prática na nossa vida, com nossas ações e nosso testemunho.


Que o divino Mestre e o nosso Seráfico Patriarca nos ajudem no fiel cumprimento da missão que Cristo reservou e espera de cada um de nós.


Com um cordial abraço.

Antonio Carlos


sábado, 6 de julho de 2024

COMENTARIO LITÚRGICO - 14 DOMINGO COMUM - 07.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A FORÇA DA GRAÇA – 07.07.2024


Caros Confrades:


A liturgia deste 14º domingo do tempo comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá a todos a sua graça, mas ele respeita a nossa liberdade, não fica nos puxando pela mão o tempo todo, espera que nós saibamos construir conscientemente o nosso caminho. A graça que Deus dá não obriga nada a ninguém. A cada um é dada a força da graça em tamanho suficiente, porém, se cada pessoa não fizer também a sua parte, a graça por ele recebida restará ineficaz. A maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por Cristo. Mas ela só tera efeito naqueles que acreditarem. Pela fé nele, inicia-se o processo de abertura do nosso ser para a graça, mas a salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho dessa fé através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não nos ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da nossa liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós a aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos merecedores dessa distinção.


Na leitura da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego, a expressão paulina é 'skólops tês sarxi'', que significa ‘estaca na carne’ (faz lembrar as histórias de Drácula isso), e no texto latino, a tradução usada por São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas traduções portuguesas mais antigas era vertido como ‘aguilhão na carne’. A tradução atual substituiu o aguilhão por espinho, porém espinho é algo muito brando para simbolizar a imagem proposta por Paulo. Espinho lembra algo pontiagudo, mas delgado e frágil. Já a palavra grega 'skólops' tem um peso muito maior do que simples espinho, simbolizando uma madeira pontiaguda, algo mais poderoso e difícil de evitar.


Pois bem, Paulo diz que esse 'skólops' foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a maravilhosa revelação que ele teve, após a sua conversão, quando foi tocado por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por três vezes, diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele respondeu: ‘basta-te a minha graça’ (2Cor 12, 9). Então, Paulo reflete acerca da suficiência da graça divina para a nossa salvação, ensinando-nos a não nos deixarmos sucumbir diante das dificuldades da vida, das nossas fraquezas, do desânimo e da falta de compreensão, muitas vezes, daqueles que nos são mais próximos. Quer ele dizer, com isso, que a graça de Deus que nos é dada não afeta a nossa condição humana, no sentido de que nós continuamos a possuir as mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. O fato de acreditar em Cristo não torna o cristão, humanamente falando, melhor do que o não crente. Porém, o cristão passa a ter um recurso extra para superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo que é na fraqueza que a força se manifesta. E arremata: ‘porque quando me sinto fraco, então é que sou forte’. Isto é: quando as adversidades me atacam, quanto mais elas me perseguem, mais eu conto com a graça divina. Por outras palavras, a graça divina não retira de nós o pecado, mas nos proporciona condições para vencer o mal e trilhar o caminho do bem. Aqui é que o resultado vai depender de cada um de nós.


Essa doutrina desenvolvida pela teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte para que ela frutifique. Desse modo, ela contrasta com a doutrina da graça de outras religiões, aquela que se denomina de predestinação. Segundo esta, algumas pessoas estão marcadas para a condenação, independente do que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas estão escolhidas para a salvação, não importa o que fizerem na vida. Essa doutrina, se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço nosso para escolher o bem e praticar a virtude, além de levar à conclusão de que Deus seria sumamente injusto conosco, zombando da nossa condição e desrespeitando a nossa liberdade, o que seria incompatível com a natureza perfeita da divindade. Por isso, a teologia cristã católica ensina que a graça nos é dada, sim, sem que a peçamos, porém ela não funciona de forma automática, mas vai depender da forma como cada qual corresponde aos dons divinos. Ou seja, a graça divina é suficiente, mas não surtirá efeito sozinha e, portanto, a salvação é um dom de Deus, mas é também uma conquista de cada um através da sua fé e das suas obras de misericórdia, não bastando apenas a fé. Agir em desacordo com a graça é o que se constitui em pecado e isso, às vezes, termina sendo inevitável, dadas as imperfeições da nossa natureza. Observa-se que, quando Paulo pediu a Deus: livra-me do “skólops”, ele estava querendo dizer “livra-me dessa condição de pecador”. Mas a resposta divina foi: não, a graça que te dou pode superar o pecado, isso só depende de ti. Eis o nosso cotidiano desafio.


Esse tema da “graça que basta” está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os fariseus e os doutores da lei se ‘escandalizaram’ e ficaram se questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém do povo, que não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a palavra de Deus. Somente eles poderiam fazer isso. Ora, Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos, aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar que o verbo ‘escandalizar’, nesse contexto, nada tem a ver com o sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como Messias, não reconheceram nele o prometido por Deus. Portanto, aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles com algum milagre, tivessem acreditado. Mas, diz o evangelista, Jesus não fez milagre algum, apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Essas curas eram sempre feitas de forma privada, sem presença de público. Mas os fariseus tinham conhecimento de outros milagres, porque a fama de Jesus, nessa ocasião, circulava em toda a região. Portanto, embora tivessem a própria Graça entre eles, os seus efeitos não ocorreram, porque Deus respeita a liberdade humana e pela falta de fé deles, a salvação trazida por Jesus não se realizou ali.


Essa atitude de incredulidade dos fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá, apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3): nação de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram contra mim  até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura e coração de pedra, vou te enviar …” E depois acrescenta: “Quer te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta.” Foi assim que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo ficariam sabendo que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta, pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o próprio Deus.


Meus amigos, a pedagogia catequética tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia assim: ‘prometo nunca mais pecar...’ ora, sabemos que isso é impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio para sanar as suas consequências.


Que o Senhor nos ajude sempre a descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir de acordo com ela.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos.

sábado, 29 de junho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SOLENIDADE DE S. PEDRO E S. PAULO - 30.06.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SÃO PEDRO E SÃO PAULO – PROTAGONISTAS DA FÉ – 30.06.2024


Caros Confrades,


Neste domingo, a memória litúrgica é dedicada aos Santos Pedro e Paulo, os dois baluartes do cristianismo ocidental. O cristianismo teve início em Jerusalém, onde Jesus fora crucificado, onde ele concluiu suas pregações, a cidade símbolo para os judeus e também a grande metrópole daquela região geográfica. Todos os apóstolos eram de cultura judaica, então o território onde por primeiro o cristianismo foi difundido ficava nos arredores de Jerusalém, tanto naquelas localidades que Jesus havia visitado quanto nas demais, por onde os apóstolos saíram na sua pregação missionária. Da Judeia, passaram para as comunidades judaicas instaladas em Alexandria, Antioquia e Constantinopla, as quais serviram de base para a expansão do cristianismo entre os gentios. A difusão do cristianismo pelo mundo greco-romano se deu por obra de Paulo. Após uma discussão com Barnabé, eles decidiram dividir as tarefas: Barnabé continuaria pregando para as comunidades judaicas e Paulo partiu para pregar o cristianismo aos gentios (pagãos de língua grega). Depois de fundar diversas igrejas, por último Paulo dirigiu-se a Roma e, após estabelecer uma comunidade cristã, levou Pedro para ser o chefe da igreja romana. Afinal, convinha que a comunidade cristã da metrópole Roma, a capital do mundo de então, fosse confiada a Pedro, a quem Jesus havia concedido a primazia entre os apóstolos. Paulo não quis assumir para si esse ônus e essa honraria, embora tenha sido o seu fundador.


As comunidades cristãs nas terras do oriente (Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla) formam hoje o cristianismo ortodoxo e são autônomas em relação a Roma. Paulo exerceu um papel fundamental para a difusão do cristianismo no ocidente porque, se dependesse apenas dos apóstolos treinados por Cristo, a religião cristã não teria ido além dos limites do mundo judaico. Eles não tinham condições intelectuais de penetrarem na cultura greco-romana, nada conheciam disso, não falavam bem a língua grega, não tinham o talento necessário para pregar o cristianismo no mundo helenizado. Mas Jesus queria que a sua doutrina fosse espalhada por todos os povos e então ele fez o milagre que eu considero o mais complexo e grandioso de todos: cooptar o seu maior perseguidor e torná-lo o seu maior pregador. Para mim, esta é a maior prova da divindade de Cristo e, ao mesmo tempo, prova da origem divina da igreja cristã. Ele precisava de um pregador com formação intelectual destacada nas duas culturas (judaica e grega) e com grande fervor missionário e foi encontrar essas qualidades na pessoa de Paulo.


Ocorre que Paulo era ardoroso fariseu, combatedor da doutrina cristã, tal era a sua fidelidade à tradição judaica. Então, como para Deus nada é impossível, o impossível aconteceu, quando Paulo foi abordado no caminho de Damasco, jogado ao chão e logo transtornado e transformado no mais ardente e vigoroso defensor do cristianismo. Foi ele mesmo quem escreveu isso, na carta aos Gálatas (1, 14-16): “No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma ” E ele completa, dizendo: eu não recebi o conhecimento da doutrina cristã por ensinamento de homem nenhum, mas diretamente de Cristo, por revelação. Os apóstolos judeus não tinham conhecimentos profundos nem discurso elegante, eles eram pescadores, pessoas de poucas letras, não podiam ser instrutores de Paulo. Então, todo o conhecimento que Paulo extraordinariamente compôs e explicitou nas suas pregações e nas cartas que escreveu, tudo lhe foi revelado diretamente por Cristo, no ato de sua conversão. Conforme disse antes, essa é uma prova indiscutível, a mais eloquente da divindade de Jesus. Sem Paulo, muito provavelmente nós hoje não seríamos cristãos.


Paulo foi a Jerusalém conhecer Pedro, porque certamente estava informado de que Jesus havia deixado com ele a liderança do grupo. E Tiago era o dirigente da igreja cristã em Jerusalém. No início de sua atividade, Paulo foi convidado por Barnabé, para trabalharem juntos na igreja cristã de Antioquia, importante cidade da Ásia Menor. Quando Barnabé e Paulo saíram de lá para novas missões em outras terras, deixaram Pedro como dirigente da igreja de Antioquia. Ali, Pedro ficou durante vários anos, enquanto Paulo pregava o cristianismo e convertia os gentios de língua grega, sempre deixando um líder em cada cidade e partindo para outra. A igreja de Roma foi a mais tardia de todas, Paulo chegou lá quando já havia pregado o cristianismo em todas as outras localidades do mundo greco-romano, isto é, todas as outras comunidades são mais antigas do que a de Roma. Mas Roma era a capital do mundo e Paulo foi buscar Pedro em Antioquia e o trouxe para Roma.


Um pouco acima, mencionei as igrejas centrais do mundo oriental: Jerusalém, Alexandria, Antioquia e Constantinopla. A igreja de Roma centralizava o cristianismo no território europeu e todas tinham a mesma hierarquia. Nos primeiros séculos, a relação entre a igreja romana e as igrejas orientais era pacífica, mas, lamentavelmente, por ingerências políticas e divergências doutrinárias, essas igrejas irmãs entraram em um processo de desgaste, que culminou com o grande cisma do ocidente, no ano de 1054. Fator decisivo para isso foi a doutrina da “chefia” do líder da igreja de Roma sobre os líderes das demais igrejas. Cada igreja oriental tinha seu patriarca e estes não aceitaram ficar submissos ao dirigente da igreja de Roma. Essa doutrina resultou da influência dos imperadores romanos nos negócios eclesiásticos, primeiro Constantino e Teodósio, mais tarde, Justiniano e Carlos Magno. Por interferência deles, seguindo o modelo político vigente, o bispo de Roma foi transformado em autoridade universal, uma espécie de rei sobre todas as demais igrejas. Os orientais nunca concordaram (nem concordam hoje ainda) com isso e, a meu ver, com toda razão. E esse é o grande entrave que o Papa Francisco tenta, com paciência e habilidade, superar, mas encontra fortes resistências de ambos os lados. O Papa Bento XVI chegou a nomear dois Patriarcas orientais como Cardeais, o que já foi um grande avanço. Mas ainda há muitas objeções para serem negociadas.


Bem, a igreja romana adota como fundamento bíblico deste 'primado de Pedro' o trecho do evangelho de Mateus (Mt 13, 19), o conhecido episódio das chaves dadas por Jesus a ele. Sobre isso, eu faço outras considerações. Apenas no evangelho de Mateus existe essa passagem que fala em “construir a igreja sobre essa pedra” e 'dar as chaves' da igreja a Pedro. Eu tenho uma séria desconfiança de que esse trecho não seja original de Mateus, pode ter sido manipulado, inserido no texto em época muito antiga, a fim de justificar a doutrina da primazia romana. E digo isso com base em três constatações ou indícios. Em primeiro lugar, penso que o texto original devia assemelhar-se ao que está no evangelho de João (1, 42), onde é narrado o primeiro encontro de Jesus com Simão e Jesus lhe disse: “tu te chamarás Kefas – que significa Petrus”. E pára por aqui. Possivelmente alguém fez os acréscimos que constam no evangelho de Mateus, como forma de justificar biblicamente a doutrina da “chefia”, na época da polêmica. Em segundo lugar, vejo outro claro indício na expressão “sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Ora, todos sabemos que Jesus nunca mandou criar uma igreja, o que ele mandou foi que os apóstolos pregassem o reino de Deus a todos os povos, ensinando a sua doutrina e batizando-os. O conceito de igreja foi-se desenvolvendo aos poucos, com as comunidades gregas (ekklesias). Esse linguajar “edificarei a minha igreja” não me parece coerente com os demais discursos de Cristo, gerando forte suposição de adaptação textual, numa época em que esta doutrina estava iniciando e necessitava de fundamentação. Em terceiro lugar, façamos um breve retrospecto histórico. A polêmica do “primado de Pedro” teve início lá pelo século IV, tendo sido objeto de inúmeras disputas durante mais de 500 anos, até explodir no cisma, em 1054. Por outro lado, os textos bíblicos hoje conhecidos somente foram tornados oficializados no Concílio de Trento (1545-1563). Ora, nesses 500 anos de discussões, digamos que tudo era válido para justificar uma posição política dentro da Igreja. Daí que eventual manipulação do texto não pode ser descartada. É a minha opinião, respeitando os que discordarem.


Bem, meus amigos, essas reflexões que faço não têm intuito de contestar ou desmerecer a autoridade do sucessor de Pedro, mas são como uma espécie de autocrítica, pois as igrejas orientais possuem uma riquíssima tradição e são mais antigas do que a igreja romana, merecem todo o nosso respeito. Que o Espírito Santo e o espírito de Pedro iluminem sempre mais o nosso Papa, para levar adiante a sua difícil empreitada em busca da união de todos os cristãos.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 22 de junho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - 23.06.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MAR DA VIDA – 23.06.2024


Caros Confrades,


Neste 12º domingo do tempo comum, a liturgia nos leva a contemplar a simbologia do mar no contexto bíblico. Dada a sua imensidão, a figura do mar gera uma ideia de grande poder; mas ao mesmo tempo, dadas a sua impetuosidade e sua imprevisibilidade, traz também a ideia de grande mistério, de grande temor, todas essas associadas ao seu imensurável potencial de produção de vida e de alimentos, desde os tempos mais remotos. De acordo com a história bíblica da criação, o mar vem no segundo lugar de importância entre as coisas do universo, logo após a luz. A narrativa bíblica da criação demonstra que, desde tempos muito remotos, a figura do mar sempre impressionou os seres humanos, seja pelos benefícios que proporciona, seja também pelos malefícios que muitas vezes causa. O mar é fonte de vida e de morte, de energia que pode levar à produção ou à destruição. Considerando que a luz é produzida por um astro fora do nosso planeta, temos que o mar é a força terrestre mais poderosa, impávida e ao simultaneamente amedrontadora. Vivemos a nossa vida dentro dele e/ou dependendo dele, seja qual for o sentido que o consideremos.


Na primeira leitura, retirada do livro de Jó (38, 8-11), Javeh fala ao Profeta, de dentro da tempestade, com a sua voz tonitruante: quem fechou o mar com portas, colocando-o em seus limites e dizendo 'até aqui chegarás, e não além'? Quem, senão Ele próprio? Essa fala de Javeh se deu no contexto em que Jó se queixava que Ele o havia abandonado e com isso Javeh vai demonstrar o tamanho do Seu poder, usando a figura do mar. Ora, se o mar é tão poderoso e indomável, aquele que tem poder de dominá-lo é muito mais forte e potente. A grandiosa força que é reconhecida no mar serve de contraponto para comparação com a potência de Javeh, que é muito maior. Por mais que Jó não entenda o que se passa com a sua vida, Javeh lembra ao Profeta, com a sua voz de trovão, que a sua fé deve estar acima e além dos imprevistos dos acontecimentos, pois o poder divino é quem estabelece o controle sobre tudo isso. O texto da leitura litúrgica não vai até o fim desse diálogo entre Javeh e Jó, que é bastante logo, mas para contextualizar, fui em busca da resposta do Profeta. Depois que Javeh expõe a Jó muitas demonstrações do seu incalculável poder, o Profeta finalmente dá-se por convencido e no cap. 40, 4-5, ele ousou balbuciar: “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão sobre a minha boca. Falei uma vez, mas não tenho resposta; sim, duas vezes, mas não direi mais nada.” Jó “engole seco as palavras” que disse e não mais se queixa ao Senhor, aceitando a sua condição de vida. A pedagogia do mar levou Jó à consciência de si próprio e lhe rememorou a grandeza do Criador, para que se mantivesse firme na sua fé.


Na leitura do evangelho de Marcos (4, 35-41), a imagem do mar aparece novamente associada a uma grande demonstração de poder por parte de Jesus, com o objetivo de fortalecer-lhes a fé na sua pessoa enquanto Filho de Deus. No final da tarde, Jesus cansado de mais um dia de pregações e peregrinações, vendo que a multidão não se dispersava, pediu aos apóstolos que o levassem para a outra margem do Mar da Galileia. Na verdade, mar não se trata do oceano, o mar comum que estamos habituados a ver, mas sim trata-se de um grande lago alimentado pelas águas do rio Jordão, daí o seu nome ser também Lago de Tiberíades ou Lago de Genesaré, tão extenso, como se fosse um mar. Era ali que os apóstolos exerciam o seu mister de pescadores, quando foram chamados por Cristo para a missão. A distância maior de uma margem a outra é de apenas 13 km, o que não é grande coisa, se compararmos, por exemplo, com a largura do rio Amazonas, cuja distância entre as margens chega a 50 km em algumas paragens, a ponto de não ser possível ver a margem oposta. Nessa escala geográfica, o Mar da Galileia não possui uma tal dimensão de poder quanto o oceano, de modo que se pode até avaliar com um certo exagero na descrição do evangelista Marcos, quando ele diz que “Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher, ” (4, 37) dando a impressão de que a embarcação corria risco de afundamento, deixando os passageiros com muito medo. Não deve ter sido tanto assim. Mas, enquanto isso, Jesus dormia tranquilamente indiferente àquele perigo.


A narrativa do evangelista tem o claro objetivo de demonstrar, de um lado, as vacilações na fé dos apóstolos e, de outro, o poder divino de Jesus. Mesmo que a magnitude das ondas não fosse do porte de provocar uma real possibilidade de sossobro, o que está sendo posto em evidência é o fato de que Jesus tem poder de acalmar o vento e dominar o mar. E Jesus pergunta: por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? Propositalmente, o evangelista adiciona um sutil detalhe: após as ondas acalmarem, os apóstolos perguntam-se entre si: “'Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?' (4, 41) Seguindo a mesma linha de raciocínio da leitura do livro de Jó, comentada acima, este trecho do evangelho quer chamar a atenção para a origem divina de Jesus e para o seu poder, que é semelhante ao poder do Pai, aquele mesmo que falou a Jó no meio da tempestade. Quem tem poder de estabelecer limites para o mar indomável, senão o seu Criador? Quem tem poder para acalmar as ondas, senão o Filho do Criador? Revela-se nessa narrativa, de forma bastante nítida, o objetivo de provar aos seus leitores que Jesus é o Filho de Deus.


Pois bem. A imagem do barco minúsculo perdido na imensidão do mar é o retrato da nossa vida em meio ao turbilhão dos acontecimentos diários, sobre os quais não podemos interferir e cujo controle escapa às potências do nosso corpo. O nosso ser humano, ridículo e limitado conforme descrito pelo artista popular, está totalmente à mercê dessas ondas turbulentas que sacodem o nosso barco. As dúvidas e incertezas do dia a dia, o risco e o temor que cotidianamente nos afligem, os percalços e desafios do viver diário nos lembram constantemente a nossa pequenez e insignificância. É nesse contexto vital que se constata a importância da nossa fé. Não aquela fé declarada da boca para fora, mas a fé que nos fortifica e nos mantém no caminho, apesar de todas as vicissitudes. Nos dias de hoje, de um modo especial, a violência urbana é um tormento com o qual temos de conviver, porém, apesar disso e mesmo sabendo disso, não podemos nem devemos nos esconder ou nos segregar. A conduta oposta seria ainda uma maior insensatez, ou seja, fazer de conta que nada vai nos afetar, pois a fé nos defende, e deixar de adotar as necessárias precauções. Essa temeridade é um daqueles pecados imperdoáveis, sobre os quais comentamos num domingo recente. A fé responsável exige de nós uma postura de esclarecido compromisso, de conhecimento da realidade, de consciência dos riscos e também de seriedade no cumprimento daquilo que nos compete, cada um fazendo a sua parte pensando não apenas em si próprio, mas também dando sua contribuição para transformar a nossa sociedade num mundo mais justo e solidário, mostrando que é possível viver de forma digna e dignificante.


Esse modelo de vida na fé é o tema da carta de Paulo aos cristãos de Corinto (2Cor 5, 14-17), onde ele diz que “se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo.” Esse “mundo novo” ainda não está totalmente implantado, ainda se encontra num processo de instalação e será o nosso exemplo de cristãos, em meio a inúmeras ondas de comportamentos adversos, que irá contribuir para o seu efetivo fazer-se dentro da história. O grande desafio que nos é trazido pelo mundo de hoje é esse de ser cristãos, apesar de todos os apelos contrários. E vejam que nós nem estamos (graças a Deus) naquela situação dos cristãos dos países de maioria islâmica, onde alguns radicais literalmente massacram os crentes, até pelo simples fato de carregarem uma Bíblia. Ainda não vivemos numa atmosfera de intolerância religiosa, onde ser cristão pode ser um motivo de condenação à morte. Digo “ainda não” porque o movimento cristofóbico tem se acentuado tanto nessas últimas décadas, dando sinais de sua presença também no Brasil, de modo que essas publicações nas redes sociais nos trazem um preocupante futuro em relação aos nossos filhos e netos. No mundo cada vez mais secularizado e tendente à intolerância, a liberdade em todos os níveis, inclusive a liberdade religiosa, é um bem muito precioso que nós devemos cultivar com nossa palavra e com nosso exemplo, demonstrando que é possível viver numa sociedade pluralista com respeito à diversidade. Só assim poderemos navegar com um pouco mais de segurança no mar da vida.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 15 de junho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 11º DOMINGO COMUM - 16.06.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DAS PARÁBOLAS – 16.06.2024


Caros Confrades,


Neste 11º domingo comum, a liturgia nos demonstra com detalhes a metodologia adotada por Jesus Cristo para ensinamento a respeito do reino de Deus, explicando-o através de parábolas, nas quais se serve de figuras e situações bem conhecidas por seus ouvintes para transmitir-lhes a mensagem da salvação. As teorias pedagógicas mais modernas explicam que, para haver uma melhor aprendizagem por parte dos alunos, o professor deve buscar inserir os conceitos novos aproveitando os conhecimentos prévios dos estudantes. Grande novidade! Há mais de dois mil anos, Jesus Cristo já inaugurara essa pedagogia, quando utilizava parábolas para explicar sua doutrina, e os pedagogos de hoje pensam que estão descobrindo o mapa da mina. Para nós, cristãos, essa metodologia foi, desde o início, a preferida tanto por Cristo quanto pelos seus apóstolos.


Na primeira leitura litúrgica, temos um trecho do livro de Ezequiel. Ele profetizou na época do cativeiro da Babilônia, tendo falecido nessa cidade. Ele teve curiosas “visões” sobre as ações de Javeh em forma de castigo para o seu povo infiel, falando sempre em linguagem muito dura, para despertar no povo o reconhecimento da própria culpa e o arrependimento. Na leitura de hoje, ele faz uma imagem simbólica muito interessante sobre o “novo reino” que haveria de vir, depois que aquele período do cativeiro terminasse, o novo reino que Javeh estava preparando para o seu povo. Diz isso usando também uma espécie de parábola: “Assim diz o Senhor Deus: 'Eu mesmo tirarei um galho da copa do cedro, do mais alto de seus ramos arrancarei um broto e o plantarei sobre um monte alto e elevado. Vou plantá-lo sobre o alto monte de Israel. ” Podemos ver nessa imagem descritiva do “broto arrancado do mais alto dos seus ramos” e plantado sobre o monte de Israel como a prefiguração de Cristo, numa simbologia análoga à que Jesus usaria depois, com a imagem da videira. Logo adiante, diz o Profeta: “Ele produzirá folhagem, dará frutos e se tornará um cedro majestoso. Debaixo dele pousarão todos os pássaros, à sombra de sua ramagem as aves farão ninhos. ” Tempos depois, Jesus repetirá essa mesma parábola, ao dizer que “eu sou a videira e vós sois os ramos” (Jo 15, 5), quem permanece em mim e eu nele, esse dará muito fruto. Os profetas, de um modo geral, utilizaram de recursos simbólicos, aproveitando os conhecimentos e vivências do povo para lhes repassarem a mensagem de Javeh.


No evangelho de Marcos, lido neste domingo (Mc 4, 26-34), Jesus lança mão de duas parábolas semelhantes, ambas relacionadas com árvores e sementes, materiais que eram comuns e amplamente conhecidos daquelas pessoas a quem ele se dirigia. A imagem da semente tem uma forte simbologia relacionada com o fenômeno da multiplicação que está a ela associada e que encerra no seu conteúdo o próprio milagre da vida. A semente é pequena, inerte, simples, mas quando plantada, cresce, se torna dinâmica, fecunda e se multiplica em incontáveis partes, que configurarão um novo ser. É interessante como ele explica que a semente possui uma capacidade autopoiética extraordinária, ou seja, ela se reproduz com suas próprias forças, não é necessário que o plantador faça nada especial, além do simples plantio, bastando inseri-la no solo fértil. “A terra, por si mesma, produz o fruto: primeiro aparecem as folhas, depois vem a espiga e, por fim, os grãos que enchem a espiga. (Mc 4, 28) A energia presente na semente é tão intensa que basta ser lançada no local adequado para desencadear o seu processo produtivo de forma autônoma. Além disso, tem ainda o aspecto da multiplicação da forma. A semente tem uma pequenina dimensão, mas se transforma em uma árvore grandiosa e com enormes potencialidades de sustentação da vida de outros seres, que dela dependem. É o autêntico milagre reprodutor da vida, que continua a ocorrer incessantemente e está acessível a todos que se dispuserem a cumprir esse ritual de semear.


Assim também acontece com a Palavra de Deus, semente da vida no espírito, que ao ser semeada, começa o seu processo de produção de energias espirituais no coração de quem a acolhe, de modo que transforma não apenas a vida daquela pessoa diretamente, mas tem repercussão também sobre as demais pessoas que com esta convivem. O nosso comportamento de cristãos, a colocação em prática dos mandamentos de Cristo nos atos da nossa vida cotidiana, o nosso testemunho diante das pessoas do nosso convívio na família, no trabalho, na sociedade, são os atos e atitudes pelos quais nos tornamos lançadores da semente da Palavra. E Jesus ainda nos anima querendo dizer que não precisa fazer grandes pregações, nem grandes sacrifícios, nem enfrentar grandes desafios, mas mesmo nas pequenas coisas isso acontece. É o que Ele pedagogicamente ensina quando fala da semente de mostarda, ao dizer que é a menor semente das hortaliças, no entanto, é aquela que produz a leguminosa mais corpulenta, que serve até de pouso e arcabouço de ninho para os pássaros. Pequenas sementes que produzem grandes árvores, assim acontece também conosco, mesmo que a semente lançada seja de tamanho apoucado.


Em diversas outras ocasiões, Jesus utilizou a parábola da semente, para tornar compreensíveis os fatos relacionados com a sua missão. Por exemplo, no evangelho de João (Jo 12, 24), Jesus faz outra alusão à semente, em outro contexto, referindo-se à sua ressurreição, quando diz: se o grão de trigo não morrer, fica só; mas se morre, produz muito fruto. A imagem da semente associa-se tanto à paixão e morte de Jesus, como também à morte do homem pecador e à sua ressurreição através da graça, tanto no sentido da nova vida trazida pelo batismo, quanto no sentido da outra vida, que virá depois que deixarmos esta morada. E aqui o tema do evangelho se interliga com o texto da segunda leitura, retirada da carta de Paulo a Coríntios 2: “enquanto moramos no corpo, somos peregrinos longe do Senhor; pois caminhamos na fé e não na visão clara ” (2Cor 5,6) Ao deixar a morada do corpo, iremos morar junto do Senhor. Portanto, neste primeiro momento, a imagem da semente se refere a nós, cristãos, que temos a oportunidade de, pelo batismo, fazer morrer em nós o ser pecador, para fazer viver o ser humano da graça. E através dos demais sacramentos, vamos passando por um processo de contínuo aperfeiçoamento do nosso ser para, depois, com a morte corporal, termos a ressurreição prometida por Cristo, da qual Ele já deu o exemplo.


A propósito dessa passagem da 2ª Carta a Coríntios, quando Paulo diz: “enquanto moramos no corpo, somos peregrinos longe do Senhor”... e depois diz “preferimos deixar a moradia do nosso corpo para ir morar junto do Senhor”, eu gostaria de destacar aqui uma demonstração da cultura grega que Paulo possuía. Está muito evidente, nesses trechos, a visão dualista dos filósofos gregos Platão e Aristóteles, esse confronto entre o mundo material e o mundo espiritual, que encontramos em Sócrates e em seus discípulos na Grécia antiga, e que Paulo absorveu, e depois essas mesmas ideias foram retomadas pelos Padres da Igreja do século IV, sobretudo por Santo Agostinho, e mais adiante, no século XIII, por Santo Tomás de Aquino. Aliás, era impossível que o cristianismo se disseminasse no território grego sem ser influenciado pela cultura deste povo, que era predominante e bem mais elaborada do que as demais culturas daquele tempo.


Esse fato teve um aspecto positivo e historicamente inevitável, mas também gerou consequências indesejáveis de longo prazo, como as que nós observamos hoje na religião tradicional, intimista, individualista e devocionista. As primeiras comunidades, onde ainda havia grande influência da cultura judaica, tinham mais a ideia da coletividade, da comunhão, da solidariedade, que foram aos poucos sendo substituídas pelos conceitos gregos, os quais se tornaram hegemônicos. Junto com a cultura grega e sua inserção no cristianismo, portanto, desenvolveu-se esse modelo individualista da religião, que não existia nas primeiras comunidades cristãs, onde todos tinham tudo em comum (Atos 4, 32). O “tudo” em comum não deve ser entendido apenas como os bens materiais, mas sobretudo a partilha dos bens espirituais da amizade, do amor mútuo, da solidariedade em todos os sentidos. Nos dias atuais, a teologia tenta resgatar o verdadeiro sentido da palavra comunidade (comum+unidade), que não pode ficar restrita à reunião de uma multidão no templo durante a celebração, onde as pessoas nem se conhecem entre si e muitas vezes nem se cumprimentam. É esse o propósito do Papa Francisco, ao propor o conceito da sinodalidade dentro Igreja. Sinodal significa caminhar juntos, seguir o mesmo caminho (do grego: syn+odos). Devemos nos vigiar para que, involuntariamente, não venhamos a contribuir com esse modelo religioso individualista, que ainda predomina na nossa religião.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 2 de junho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 9º DOMINGO COMUM - 02.06.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO COMUM – O SÁBADO OU O DESCANSO – 02.06.2024


Caros Confrades,


Terminado o ciclo litúrgico de comemoração da Páscoa, a catequese eclesial retorna ao tempo comum, que se prolongará até o Advento. As leituras da liturgia de hoje centram-se num tema que tem sido objeto de controvérsias entre diversas comunidades cristãs: a observância do descanso sabático. No século IV, o Concílio de Niceia colocou um ponto final nessa polêmica para os católicos, ao escolher o domingo, mas o dia do sábado continua a vigorar para os judeus e a discussão persiste entre as diversas igrejas cristãs separadas. Algumas são radicais, começando a observância do sábado logo no por do sol da sexta feira, como é o caso dos Adventistas do Sétimo Dia. Outras são menos rigorosas e outras ainda celebram mesmo o descanso dominical, assim como o catolicismo. Mas essa questão não é simples.


Temos, na primeira leitura (Deuteronômio 5, 12), a ordem taxativa de Javeh: “Guarda o dia de sábado, para o santificares, como o Senhor teu Deus te mandou. Trabalharás seis dias e neles farás todas as tuas obras. O sétimo dia é o do sábado, o dia do descanso dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum de teus animais, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades, para que assim teu escravo e tua escrava repousem da mesma forma que tu.” As igrejas cristãs que seguem a interpretação literal da Bíblia não admitem outra alternativa. De fato, toda a tradição judaica, dos tempos bíblicos até hoje, observa o descanso no sétimo dia. Jesus observava o sábado, comparecia à sinagoga como todos os judeus, assim também faziam os apóstolos e as primeiras comunidades cristãs. Por que, então, mudou-se o dia do descanso semanal para o domingo, contrariando a determinação de Javeh, observada durante muitos séculos?


Antes de prosseguir nessa temática, é conveniente uma breve explicação sobre a palavra hebraica “shabat”, de onde deriva a palavra ‘sábado’. O substantivo “shabat” é formado a partir do verbo hebraico “shavat”, que significa “parar”, “cessar”. Corresponde ao sétimo dia porque, de acordo com a narração bíblica, Deus criou o mundo em seis dias e no dia seguinte ele “parou para descansar”. Obviamente, Deus não se cansa, essa é apenas uma forma humanizada de nos referirmos à atividade criadora divina. Assim como também os “seis dias” da criação não podem ser entendidos como períodos de 24 horas, como muitos imaginam, misturando o tempo humano com o tempo de Deus. A palavra “dia”, na narração da criação está mais relacionada a um conjunto de ações divinas, não a um certo período de tempo, porque Deus não se limita ao tempo. Pode-se afirmar que a narrativa bíblica, ao referir-se aos seis dias, está justificando, perante a sociedade daquele tempo, a necessidade do descanso corporal, após um certo período de trabalho. Alguns povos da época adotavam a prática dos dez dias, isto é, nove dias de trabalho e um de descanso. Para os judeus, a atividade criadora divina será, então, o parâmetro mais elevado e indiscutível para se fazer o descanso no sétimo dia. Uma nova cultura estava se sobrepondo à antiga. Ademais, na cultura judaica, o sete é considerado o número da perfeição e diversos fatos bíblicos estão relacionados com ele. Compreende-se assim que a descrição da criação divina em seis dias funcionou apenas como um motivo a mais para fortificar a cultura do sete perfeito. Há muitos estudos técnicos para explicar a numerologia bíblica, de modo que se trata de um assunto extenso, que não pode ser simplificado em poucas palavras.


Pois bem. Na religião judaica, além desse “shabat” semanal, que correspondia ao sétimo dia, há diversos “shabatot” (plural de shabat) especiais, na comemoração das datas mais importantes. Por exemplo: antes da Pessach (Páscoa), antes do Purim, antes do Yom Kipur há vários dias sabáticos, não relacionados com o sétimo dia. Quando Arimateia foi pedir a Pilatos para retirar o corpo de Jesus da cruz, por causa do sábado, não era por um dia só, mas sim porque na festa da Páscoa, o shabat demorava sete dias e então o corpo de Jesus entraria em decomposição, porque não poderia ser retirado enquanto não terminasse o período sabático. Essas informações são importantes, porque na nossa cultura, o sábado é apenas um dia de 24 horas, mas na cultura judaica, podia demorar vários dias, e essa ideia deve ser levada em conta para entender diversas passagens da Bíblia.


Na leitura do evangelho de Marcos (2, 23), Jesus se confronta com essa tradição sabática, mostrando que o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado. Encontrando-se na sinagoga, havia ali um homem com a mão deformada. Pelo costume judaico, não se podia fazer nada no sábado, nenhum tipo de atividade. Por isso, os judeus ficaram observando se Jesus iria operar um milagre no sábado, porque isso seria contrário à lei. Percebendo isso, Jesus pergunta aos presentes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada.” Jesus mostrou que, sendo Filho de Deus, é senhor também do sábado e que o rigor da lei mosaica devia ser flexibilizado, porque não é a sua observância simples e literal que agrada a Deus. Mais uma vez, Jesus mostrou que cumprir a lei não é observar rigorosamente as suas palavras apenas e que a prática da caridade no sábado é, não só permitida e louvada, mas também agradável a Deus. Livrar alguém do sofrimento num dia de sábado não é ação contrária à lei, nem mesmo sob o ponto de vista rigoroso com que os judeus a consideravam. Mas eles nunca compreenderam isso e tiraram conclusão oposta: se Jesus não observava o sábado, é porque ele não era proveniente de Deus. E buscavam um modo de eliminá-lo, completa o evangelista.


Conforme dissemos acima, as primeiras comunidades cristãs continuaram a observar o sábado, comparecendo às sinagogas, como era o costume de Jesus. Porém, com o desenvolvimento da doutrina cristã, algumas comunidades passaram a observar também o “primeiro dia da semana”, ou seja, o que nós chamamos de “domingo”, em comemoração á ressurreição de Jesus, que ocorreu no primeiro dia da semana. O sábado era observado por obrigação, mas o domingo era observado por devoção. Essa variação era, inclusive, motivo de discussão entre os cristãos gentios (de origem grega) e os judeus convertidos ao cristianismo. Além da observância do sábado, os judeus convertidos também queriam exigir dos cristãos gregos a obrigatoriedade da circuncisão, uma tradição judaica importante, divergência que deu muito trabalho para Paulo pacificar. Pode-se afirmar que não foi apenas a problemática do sábado, mas de um modo geral, dos costumes judaicos foram, aos poucos, absorvidos e repaginados pelo cristianismo.


A transição da observância do sábado para o domingo está associada ainda a outro fato histórico importante. O imperador Constantino, o primeiro a se converter ao cristianismo e a dar pleno apoio às comunidades cristãs, publicou, no ano 321 d.C., um edital com os seguintes termos: “Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol.” A “cidade”, no caso, era todo o território romano, ou seja, praticamente, toda a Europa, Oriente Médio, norte da África, o mundo então conhecido. Havia, em Roma, uma religião pagã muito seguida, chamada “mitraísmo”, cuja figura divina central era o Deus-Sol-invicto, que era venerado no primeiro dia da semana. A palavra “domingo”, em inglês, ainda conserva essa referência a isso com o título “sunday” (dia do sol). Em diversos outros idiomas há ainda essa associação. A língua portuguesa é uma das que não mais conserva a tradição. Foi nesse contexto que Constantino, após convertido ao cristianismo, determinou que a natividade de Cristo (Natal) fosse comemorada no dia do Deus-Sol, 25 de dezembro. Foi uma forma de demonstrar que Jesus era o novo Deus-Sol da humanidade. A Igreja Católica, aproveitando a norma estatal de Constantino e considerando aquilo que já era praticado em grande parte das comunidades cristãs, alguns anos depois, no Concílio de Niceia, aprovou a permuta da observância do sábado pelo domingo. Alguém poderá dizer: então, foi o imperador romano que determinou a mudança. Não exatamente. Tratava-se de um costume, que já tinha muita adesão no meio cristão a observância do domingo, então os padres conciliares, aproveitando o fato de ter a seu favor a norma estatal, aprovaram a transferência do descanso semanal para o domingo, que passou a ter esse nome “dominica”, dies Domini, dia do Senhor.


Meus amigos, devemos considerar como o que de fato importa é o dia do descanso semanal, o dia dedicado ao Deus criador. Se este dia for o sétimo, ou o primeiro da semana, é de somenos importância. Apenas numa visão estreita e literal da Bíblia ainda se continua a bradar contra essa mudança. Mas não podemos esquecer que “o Filho do Homem é senhor também do shabat”, isto é, do dia do descanso. Foi o que ele sinalizou, ao ressuscitar no primeiro dia da semana.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos