sábado, 27 de fevereiro de 2021

COMENTÁRIO LITURGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - 28.02.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A OBEDIÊNCIA DE ABRAÃO – 28.02.2021


Caros Confrades,

As leituras deste 2º domingo da quaresma trazem para a nossa reflexão o tema da obediência de Abraão associada com a fé que dela provém, tida como modelo para todos os seus descendentes. Javeh pediu a Abraão que sacrificasse seu próprio filho, fato que não se concretizou. Porém, tempos depois, o Pai entregou o seu próprio Filho para ser sacrificado, em razão da sua fidelidade para com a promessa, sendo a figura de Isaac uma preconização do sacrifício de Cristo. Evidentemente, Deus não devia fidelidade a Abraão, mas o cumprimento de sua promessa era um compromisso com Ele próprio, que em nenhuma hipótese poderia deixar de ser cumprido.


Na primeira leitura (Gn 22), temos o clássico exemplo de Abraão, que foi solicitado por Javeh a imolar seu único filho, a maior prova de fé contida no Antigo Testamento, mercê da qual Javeh selou com ele a sagrada aliança e prometeu-lhe uma incontável descendência. Trata-se de um episódio marcante no contexto bíblico, para ressaltar a obediência que provém da fé. A confiança de Abraão em Javeh era tamanha, que ele não hesitou em seguir a ordem de imolação. Posteriormente, Jesus vai dizer, no episódio do centurião romano que disse “senhor, eu não sou digno de ires à minha casa, basta dizeres uma palavra para curar o meu servo”, que nunca tinha visto um exemplo de tanta fé, desde Abraão.


De acordo com leituras que tenho feito alhures, há uma linha de comentários exegéticos que interpreta o clássico texto do Gênesis de um modo não convencional. Afirmam que esse ritual de imolação do filho primogênito era uma praxe entre os antigos povos pagãos, como forma de agradar os seus deuses, oferecendo sacrifícios humanos. Então, no episódio de Javeh que, inicialmente teria solicitado a imolação de Isaac e depois voltou atrás, o escritor sagrado estaria chamando a atenção dos judeus para o fato de que Javeh é diferente dos deuses dos povos pagãos. Ademais, esses estudiosos levantam a hipótese de que não fora necessário que Javeh solicitasse o sacrifício do filho a Abraão, pois este já iria fazer isso mesmo, seguindo o ritual que era costumeiro entre os povos daquele tempo. Então, Javeh interferiu, para demonstrar que Ele não era igual aos deuses pagãos e ainda para ensinar ao povo hebreu que Ele não queria nem aceitava sacrifícios humanos. Daí eu fiquei imaginando que esse episódio pode ser uma espécie de “legenda” bíblica, um gênero literário que tem por objetivo dar um ensinamento através de uma história envolvente e emotiva. Semelhante ao caso de Jó, um personagem cuja existência é duvidosa. Assim como o episódio do assassinato de Abel por Caim. A palavra “legenda” é um termo latino que significa “um texto que deve ser lido” por conter um ensinamento importante, mas não necessariamente que o episódio narrado tenha de fato ocorrido.


Fazendo uma análise psicológica dessa narrativa, à luz dos conceitos modernos, vemos em Javeh a imagem daquele pai terrível, autoritário, austero e até sádico, tendo pedido a Abraão que lhe sacrificasse o filho único, sabendo de antemão que não iria permitir a concretização do sacrifício. Esse tipo de comportamento paterno era bastante comum no modelo familiar tradicional, em que o pai tinha uma autoridade soberana e inalcançável, a quem tanto a mãe da família como os filhos e filhas deviam obediência cega e indiscutível, resquício tardio dessas antigas tradições dos povos orientais. Nos filmes e novelas de época, vemos exemplos de pais despóticos, que eram muito mais temidos do que amados. Talvez, nunca amados. Felizmente, no moderno conceito de família, essa figura paterna distante e autoritária vem sendo substituída pela figura do pai afável, que prefere dialogar e não impor sua vontade, tornando-se parceiro e cúmplice dos filhos e filhas, atuando em conjunto com a esposa, tornando-se um ponto de apoio e de referência para a prole. Percebemos, então, que essa figura do Javeh impondo a Abraão uma dolorosa e angustiante decisão e mantendo-o naquela expectativa por longo tempo corresponde a um estereótipo de pai que era padrão nas sociedades arcaicas, quando ainda não eram conhecidas as teorias psicológicas e pedagógicas desenvolvidas nos tempos modernos. Cristo veio ensinar que a verdadeira imagem do Pai é a que ele mostrou, não a que a tradição judaica apresentava.


Neste pequeno episódio, então, temos várias lições que nos são transmitidas por essa narrativa pedagógica: 1. a fé inquebrantável de Abraão e a sua obediência confiante; 2. o fato de que Javeh não quer sacrifícios humanos; 3. a fidelidade de Javeh ao cumprimento de sua promessa; 4. a imagem de Abraão como um antepassado digno de ser admirado e imitado por seus descendentes em todos os tempos. Desse modo, tenha ocorrido ou não o impactante episódio, as lições a ele associadas serão igualmente válidas e servem de permanente exemplo.


Na segunda leitura, Paulo lembra aos Romanos (Rm 8, 31) que Javeh poupou Isaac, porém o Pai não poupou seu Filho, mas o entregou para ser sacrificado por todos nós. Por contraditório que possa parecer, as duas atitudes opostas têm o mesmo objetivo. Explico. Ao recusar o sacrifício de Isaac, Javeh estava dando cumprimento à promessa feita a Abraão; ao entregar seu próprio Filho para ser sacrificado, o Pai estava também fazendo o cumprimento final da mesma promessa, porém em escalas diferentes. O sacrifício de Isaac era desnecessário e não traria uma imagem de Javeh diferente dos deuses pagãos, pois O assemelharia a estes. O sacrifício de Cristo, além de necessário, trouxe o testemunho da fidelidade a toda prova e do amor desmedido do Pai para com o povo da promessa, através de um ato extremado e de incomparável significação. A morte de Isaac seria o fim, mas a morte de Cristo foi apenas um trânsito para a sua ressurreição, a abertura do portão da glória para todos os descendentes de Abraão.


Nesse contexto, a liturgia nos traz, na leitura do evangelho de Marcos (9, 2), a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Neste eloquente episódio, Jesus deu uma das mais contundentes demonstrações de sua divindade, ainda que somente a três discípulos privilegiados. Podemos vislumbrar nesta cena paradisíaca um reforço pedagógico de Jesus, para que os discípulos, principalmente Pedro, não perdessem a esperança quando Ele fosse visto submetendo-se ao sacrifício extremo. Na hora em que ele fosse preso e humilhado e parecesse que tudo estaria desmoronando, a lembrança da transfiguração gloriosa deveria fazer o contraponto necessário para manter viva a certeza da ressurreição, que viria depois. E no final do espetáculo miraculoso, veio a confirmação dessa mensagem, quando “da nuvem saiu uma voz: Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!'” Jesus proibiu aos três de falarem aquilo para alguém, até que ele ressuscitasse dos mortos. E os discípulos ficaram matutando “o que significa ressuscitar dos mortos”, porque naquele momento, eles não tinham a menor ideia do que iria acontecer e somente muito tempo depois compreenderam.


Reflitamos agora sobre os outros dois personagens com os quais Jesus dialogava: Moisés e Elias. Moisés representa a confirmação da aliança, no Sinai, através da outorga da Lei. Ele foi também o primeiro profeta, no sentido literal do vocábulo: aquele que fala em nome de Javeh. Elias representa os profetas posteriores, que foram muitos. Eu ficava pensando: por que Elias? Por que não Isaías, que Jesus cita muito mais vezes. Até que eu me lembrei de um fato singular. Elias foi o protagonista da ressurreição do filho único da viúva, que o hospedava em Sarepta. Com uma ardente prece de fé a Javeh, Elias deitou-se sobre a criança morta e esta voltou a viver. Com a transfiguração, Jesus estava também demonstrando a forma que ele passaria a ter após a ressurreição. Daí que a figura de Elias evocava um episódio de ressurreição, grandiosa resposta que ele recebera de Javeh, após uma também extraordinária demonstração de fé.


A figura do Cristo transfigurado, mostrando a ligação entre ele e a mais antiga tradição da lei e dos profetas, vem confirmar a unidade da Escritura, integrando o Antigo e o Novo Testamentos, uma união da antiga com a nova aliança. Naquela ocasião, Jesus se transfigurou apenas para três testemunhas. Mas agora, Ele se mostra a todos nós cristãos, iluminando a nossa quaresma e nos ensinando que tempo de penitência não é tempo de tristeza, mas de muita esperança.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 20 de fevereiro de 2021

COMENTÁRIO LITURGICO - O NUMERO 40 - 21.02.2021

 

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O NÚMERO 40 – 21.02.2021


A liturgia deste 1º domingo da quaresma destaca, no evangelho de Marcos, a simbologia do número 40, que ocorre algumas vezes nas Escrituras, associando o tempo em que Jesus jejuou, preparando-se para a sua missão evangelizadora ao tempo quaresmal. Na carta de Pedro, há outra menção ao símbolo quarenta com a analogia entre a arca de Noé/dilúvio e o batismo, enquanto instrumentos pelos quais Deus realiza a nossa salvação. Os escritores sagrados do Antigo Testamento gostam de fazer alusões numerológicas, o que denota ser uma característica da cultura hebraica. Nos casos citados acima, a simbologia do número 40 põe em tela os dias que Jesus passou no deserto a jejuar, enquanto se preparava para a sua missão, e a duração do dilúvio que, segundo a narrativa bíblica, também foi de 40 dias e 40 noites.


Etimologicamente, a palavra 'quaresma' é proveniente do termo latino 'quadragesima', que significa o mesmo que a palavra portuguesa quadragésimo(a), numeral ordinal correspondente a 40. Portanto, a quaresma está também incluída na simbologia dos 40. Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antes da ocorrência de algo grandioso. O povo de Deus perambulou 40 anos no deserto até chegar à terra prometida. Moisés passou 40 dias/noites no monte Sinal até receber de Deus as tábuas da lei. No dilúvio, choveu sem parar durante 40 dias e noites, até chegar a bonança. Jonas concedeu aos ninivitas o tempo de 40 dias para se arrependerem e fazerem penitência. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto. Após a ressurreição, Jesus ainda passou 40 dias aparecendo aos apóstolos, preparando a vinda do Espírito Santo, até ir definitivamente para o Pai. São várias as 'quaresmas' na Bíblia, no entanto, é mais comum a gente lembrar somente do tempo em que passamos preparando a Páscoa do Senhor a cada ano.


É neste contexto da simbologia do número 40 que devemos compreender o tempo de jejum de Jesus no deserto. Nem sempre os 40 dias indicados nas leituras bíblicas indicam 40 dias contados do calendário, porque aqui tratamos de uma mensagem simbólica, significando que o número 40 sempre indica que um grande acontecimento está sendo preparado. O tempo quaresmal nos prepara para a grande solenidade da Páscoa, a maior festa da fé cristã.


Na primeira leitura (Gn 9, 8), lemos o testemunho do povo hebreu acerca da aliança de Deus com a nova humanidade, representada por Noé e por aqueles que com ele foram salvos do dilúvio, destacando a promessa de que essa catástrofe nunca mais ocorreria. Esta mesma ideia foi repetida por Pedro na sua primeira carta (1Pd 3, 18), dirigida aos judeus da diáspora, na qual o Apóstolo lembra aos seus compatriotas o episódio do dilúvio e a figura de Noé, associando a imagem da arca salvadora com o sacramento do batismo da salvação. “Nesta arca, umas poucas pessoas - oito -foram salvas por meio da água. A arca corresponde ao batismo, que hoje é a vossa salvação.” Há uma nítida diferença de estilo entre a carta de Pedro e as cartas de Paulo, pois Pedro era pessoa de poucas letras e suas lições são mais simples, enquanto Paulo tinha formação na escola superior do judaísmo. Diz Pedro que Jesus foi pregar até para os “espíritos na prisão”, referindo-se àqueles que blasfemaram na época de Noé e por isso não entraram para a arca, perecendo no dilúvio. A prisão, neste caso, seria o mundo das profundezas, a região dos mortos, aonde Jesus teria ido após a sua ressurreição. De acordo com a tradição, nas profundezas (nos infernos, isto é, regiões inferiores) estariam as almas dos fiéis, aguardando a vinda do Salvador. Pois bem, mesmo sendo pessoas que haviam zombado de Noé e blasfemado contra Deus, ainda assim o batismo da salvação trazido por Cristo se destina também a estes.


A leitura do evangelho de Marcos (1, 12-15), num texto muito sucinto, relata que, após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e ali foi tentado por Satanás. Essas tentações de Jesus nós devemos entender num sentido também alegórico, sem a presença daquela terrível imagem de Satanás, construída pelos artistas medievais. As tentações pelas quais Cristo passou diziam respeito ao embate que se transcorria no seu íntimo em relação às suas duas naturezas divina e humana. Com efeito, enquanto Filho de Deus, ele era “tentado” a resolver as dificuldades que iria enfrentar de uma forma miraculosa, mas ele deveria evitar isso, ele deveria se comportar como uma pessoa humana comum, ou seja, devia prevalecer a natureza humana. Portanto, essas “tentações” seriam a metáfora desse conflito interior que ele sentia, na relação entre as naturezas divina e humana, fato que ele devia ter sempre em mente, para não se deixar desviar de sua missão.


Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza/ganância; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Meus amigos, Jesus Cristo tinha consciência da sua natureza divina e também tinha conhecimento de tudo o que ele iria enfrentar na sua missão de pregar a boa nova. Então, durante o jejum, ele fez uma preparação psicológica para viver como homem comum, pensar como homem comum, agir como homem comum, deixando em segundo plano a sua condição divina. Ele sabia que iria passar fome algumas vezes. Então, seria muito mais cômodo para ele fazer um 'milagrezinho' e transformar um pedaço de pedra ou de pau numa iguaria deliciosa. Mas para ser um homem comum, ele não podia jamais agir assim. Ou seja, ele só poderia utilizar o poder que a sua condição divina lhe dava quando fosse necessário, para a glória do Pai, de acordo com o desígnio do Pai, para corroborar a sua pregação. Esse foi o grande desafio para Jesus em todos os momentos, até aquele momento crucial em que ele pede para “deixar passar aquele cálice” sem que ele bebesse, no entanto, que prevalecesse a vontade do Pai.


Este mesmo raciocínio vale para as outras ocasiões tentadoras. Estando diante daquela multidão ávida por presenciar um feito extraordinário, Jesus não poderia 'cair na tentação' de demonstrar sua condição divina apenas para ser aplaudido por aquela gente, por vaidade ou orgulho próprio. Ao contrário, quando ele fazia algum milagre, usava uma forma bastante discreta e sempre destacando a fé do beneficiado, além de pedir para que não fosse divulgado. Os fariseus estavam o tempo todo a provocá-lo para ele provar que era filho de Deus. Jesus nunca fazia milagres nessas ocasiões, muito menos para provar nada perante os fariseus, porque estes deviam acreditar na sua mensagem pelo conteúdo dela, não por uma demonstração de poder.


Portanto, Jesus passou 40 dias a jejuar e meditar no deserto, antes de começar suas pregações, para se conscientizar sempre mais da necessidade que ele tinha de ser um homem igual aos outros, no jeito de morar, de vestir, de andar, de se alimentar, de sofrer, de se alegrar, de falar, de demonstrar seus sentimentos, etc, tudo como um ser humano comum. Ele sabia desde o princípio e mais do que qualquer pessoa o final que o aguardava, os padecimentos atrozes que teria de suportar, para cumprir a promessa do Pai, para a nossa salvação. No seu jejum no deserto, tudo isso deve ter passado pela mente de Jesus e para tudo isso ele estava se preparando, porque iria iniciar a sua atividade primordial, aquela para qual Ele tinha vindo ao mundo.


Meus amigos, se até Jesus que era divino e humano passou por “tentações”, quanto mais nós, que somos pessoas limitadas e imperfeitas. Com base nessas narrativas, a tradição ensinava que Satanas nos tenta, induzindo-nos ao pecado. Contudo, podemos perceber que a fonte das nossas tentações são as nossas fraquezas, a nossa imperfeição, o nosso orgulho, a nossa vaidade e, principalmente, a nossa sede de poder, de ter sempre mais, de querer sempre mais. Jesus venceu as tentações através do jejum e da oração e isso é uma indicação também para nós. Os conceitos fundamentais da nossa quaresma foram explanados na liturgia da quarta feira de cinzas: a oração, o jejum e a esmola. A oração e o jejum dizem respeito a atitudes interiores nossas; a esmola diz respeito à nossa ação concreta em benefício dos irmãos carentes. A salvação não é alcançada apenas com atitudes internas de conversão, mas esta deve ser acompanhada de gestos concretos de solidariedade e de serviço. Tal é o objetivo da Campanha da Fraternidade, que todos os anos é realizada neste tempo.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 7 de fevereiro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO - 07.02.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO – 07.02.2021


Caros Confrades,


A liturgia deste 5º domingo comum nos convida a refletir sobre as enfermidades, tanto às doenças do corpo quanto às doenças do espírito. Nos dias de hoje, como no passado, é firme a convicção de que a máxima latina “mens sana in corpore sano” permanece em pleno vigor, na medida em que cada vez mais se descobre o quanto as preocupações e achaques mentais terminam por transformarem-se em enfermidades no corpo (somatização), causando aquelas doenças graves, de causas genéricas e de cura desconhecida, ou seja, se a mente não está sã, o corpo também não estará são. Hoje, muito mais do que no passado, os profissionais da área da saúde com frequência atestam que a fonte e a causa de grande parte dos males que acometem o corpo decorrem de perturbações de ordem mental e espiritual. Com o evento da pandemia em curso, o agravamento das doenças provocadas pelo estresse tem sido uma frequente causa de distúrbios nas famílias e de ausência do trabalho. É nesse ponto que a fé e a religião podem ter uma função importante no processo de cura.


Quado se fala em sofrimento, a figura emblemática que logo nos chega à lembrança é a de Jó, pois toda a tradição hebraico-cristã tem nesse personagem o protótipo do justo sofredor. Vários estudiosos da Bíblia colocam em dúvida a existência histórica desse personagem, que mais se assemelha a um protagonista de um romance de natureza didático-religiosa, em cuja figura o seu autor (ou seus autores, porque isso também é controverso) pretende desmistificar uma certa noção que havia naquela época acerca da doença e do sofrimento como castigo divino. O livro de Jó é classificado na Bíblia dentre os livros sapienciais e esses são os livros que colecionam os ditos e ensinamentos dos antigos sábios hebreus. A finalidade do livro de Jó é demonstrar que o sofrimento não é consequência do pecado, ou seja, não se deve correlacionar a ideia de que os pecadores sofrem por seus pecados e os justos não devem sofrer. Assim era a antiga crença hebraica. Então, a figura de Jó, o justo que sofre, perde tudo que possui e depois readquire tudo novamente, é o símbolo da pedagogia do sofrimento, isto é, da visão do sofrimento como um período de reflexão para nos levar a um estado de vida mais purificado e mais santificado.


Diz assim a primeira leitura: (Jo 7,2) “tive por ganho meses de decepção, e couberam-me noites de sofrimento. Se me deito, penso: Quando poderei levantar-me? E, ao amanhecer, espero novamente a tarde e me encho de sofrimentos até ao anoitecer.” Este trecho caracteriza muito bem a situação em que se encontra uma pessoa acometida de grave enfermidade crônica: a pessoa vê os dias se passando um após o outro e a sua situação não melhora. Parece que Deus se esqueceu dela. E a pessoa então se desmancha em queixumes e desesperanças, a vida torna-se um pesado fardo, algumas pessoas chegam a pedir a chegada da morte por não aguentarem tanto sofrimento. O livro de Jó ensinava os hebreus e continua a nos ensinar hoje a não cair no desespero diante das mazelas da vida, mas fortalecer a nossa fé através da oração confiante, porque Deus vela pelos que sofrem. A liturgia deste domingo procura exatamente chamar a atenção para esse fato de que o sofrimento é algo que faz parte da nossa existência humana e ainda conclamar os cristãos a terem solidariedade para com os enfermos, visitando-os e orando com eles. E também sem esquecer de valorizar aqueles profissionais que trabalham na área da saúde e que estão em permanente contato com pessoas enfermas, para que não enxerguem o ser humano doente como se fosse uma máquina com defeito, mas estejam sempre conscientes e dispostos a praticarem uma medicina humanizada. Com tantos recursos tecnológicos utilizados atualmente no campo da medicina, muitas vezes os cientistas da área são levados a confundir os seres humanos com as máquinas que lhes auxiliam no seu trabalho, esquecendo que o corpo é templo de Deus e morada do Espírito Santo. Esse é o sentido que deve ter o cristão acerca da enfermidade e do sofrimento.


Na segunda leitura, da primeira carta de Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 9,16), ele comenta sobre as agruras suportadas por causa de sua missão de pregar o Evangelho: sem descanso, sem salário, sem reconhecimento, com perseguições, e mesmo assim, fazendo isso como uma necessidade interna que ele sentia. Por causa do Evangelho, ele se tornou um escravo de todos. O sofrimento a que Paulo se refere já não é tanto aquele decorrente de uma enfermidade corporal, mas decorre da sua própria missão e das preocupações associadas a ela. Diz ele (9, 18): “Em que consiste então o meu salário? Em pregar o evangelho, oferecendo-o de graça, sem usar os direitos que o evangelho me dá. ” Fico pensando em quais seriam esses “direitos” que o evangelho dá a ele e dos quais ele não usufrui. Suponho que seria a tranquilidade de estabelecer-se num certo local e dedicar-se aos fiéis daquela comunidade, assim como muitos líderes religiosos daquela época e de hoje fazem. Ao contrário, Paulo era aquele apóstolo itinerante, que não tinha um pouso nem uma morada. Cuidava de todas as igrejas, no entanto, não estava vinculado a nenhuma delas. Essa foi a sua opção para atender com fidelidade à missão de pregar o evangelho. Por isso, ele conclui no vers. 19: “Assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos.” A preocupação com a pregação do evangelho era o sofrimento dele de cada dia.


No evangelho de Marcos (Mc 1, 29), vemos mais uma vez a intenção desse evangelista de mostrar o poder de Jesus, especialmente através da cura dos doentes e da expulsão dos demônios. Procurando entender essas expressões numa linguagem atual, poderíamos ler aí como se estivesse escrito a cura das doenças do corpo e do espírito. Conforme já foi mencionado em outros comentários, o entendimento daquela época acerca das doenças psicológicas era de que se tratava de possessão pelo demônio. O evangelista Marcos procura destacar o poder que Jesus tem sobre os males do corpo e do espírito devolvendo a saúde aos paralíticos e leprosos, mas também expulsando e proibindo os demônios de falarem ao povo quem é Ele. Jesus está fazendo milagres em Cafarnaum, no início de sua missão. Começou curando a sogra de Pedro, que estava com febre e apenas com o toque da sua mão, a curou. A notícia se espalhou e logo a frente da casa de Pedro estava tomada por uma multidão de enfermos e pessoas “possessas”, pedindo para serem curados, e Jesus curou a todos.


Estes relatos do evangelista Marcos nos mostram a missão de Jesus como aquele que veio para retirar os sofrimentos das pessoas, corroborando aquele ensinamento já tratado no livro de Jó, acerca do sofrimento não como um castigo de Deus. Jesus veio mostrar o Pai como alguém que está ao lado dos que sofrem, para minimizar-lhes os sofrimentos, não para castigá-los ainda mais. Depois de curar os enfermos em Cafarnaum, Jesus quis ir com os discípulos para as cidades e aldeia da Galiléia, a fim de ali também pregar sua palavra, pois para isso foi que ele veio. Essa imagem literária da ida às cidades e aldeias vizinhas significa o universalismo da doutrina cristã. Jesus demonstrou que Ele não deveria ficar só em um determinado lugar e as pessoas virem a ele, mas que Ele mesmo deveria ir aonde as pessoas estivessem passando por necessidades. A escolha da região da Galileia tem esse significado de universalismo, porque ali moravam pessoas das mais diversas origens e nacionalidades. Foi esse exemplo de Jesus que o apóstolo Paulo seguiu, percorrendo o mundo de cidade em cidade e pregando o evangelho.


Há uma referência nesse evangelho de Marcos, que eu gostaria de destacar: a cura que Jesus faz da sogra de Simão, estando hospedado na casa deste (Mc 1, 30-31): “A sogra de Simão estava de cama, com febre, e eles logo contaram a Jesus. E ele se aproximou, segurou sua mão e ajudou-a a levantar-se. Então, a febre desapareceu.” Simão era casado e morava em Cafarnaum. O evangelho não refere que ele tinha filhos, o que não significa que não os tivesse. O evangelista faz referência à sogra de Simão assim de passagem, porque o interesse dele é mostrar o poder de Jesus para curar os enfermos, talvez por isso não entre em detalhes sobre os demais familiares. Assim como Simão, certamente outros discípulos também eram casados. Sabemos que Jesus não tinha uma moradia dele, mas hospedava-se nas casas dos amigos. Um local bastante conhecido para isso era a casa de Betânia, onde moravam os irmãos Marta, Maria e Lázaro, mas é bem possível que ele também se hospedasse em casa de algum outro discípulo. Ressalto isso para defender que não há incompatibilidade entre o discipulado e o matrimônio, que o celibato não foi uma imposição que Jesus fez aos seus discípulos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 30 de janeiro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - O PROFETISMO E O PROFETA - 31.01.2021

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – 31-01-2021 -

 O PROFETISMO E O PROFETA


Neste 4º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas refletem sobre o profetismo. Conforme já comentamos aqui em ocasiões anteriores, o profeta não é aquele que adivinha coisas futuras, como é compreensão comum desta palavra na mente popular, mas profeta é o porta-voz, o arauto, o que fala em nome de Deus. Moisés foi o maior profeta do Antigo Testamento, pois quando ele se comunicava com Javeh, seu rosto ficava resplandescente, de modo que os hebreus não conseguiam nem olhar para ele, tal o brilho que emanava de sua face. No entanto, Jesus Cristo é maior do que Moisés, maior do que qualquer profeta, porque Ele fala em seu próprio nome, fala como quem tem autoridade.


Na primeira leitura, do livro do Deuteronômio (Dt 18, 15-20), lemos a comunicação de Moisés ao povo, estando ele já bastante idoso e sentindo que sua morte se aproxima, dizendo que Javeh vai suscitar no meio do seu povo um outro profeta semelhante a ele, a quem todos deverão ouvir e atender. “Farei surgir para eles, do meio de seus irmãos, um profeta semelhante a ti. Porei em sua boca as minhas palavras e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar.” (Dt 18, 18) E foi assim que Javeh sempre manteve no meio do seu povo um porta-voz, um profeta que transmitia as suas ordens. Contudo, o estilo de comunicação de Javeh com os demais profetas foi diferente do modo como Ele se comunicava com Moisés. Este foi o único com quem Javeh falava diretamente. Quanto aos demais, Javeh se manifestava em sonhos, eles não tiveram mais a face resplandescente como a de Moisés, que atemorizava o povo. Porém, o profeta enquanto porta-voz tem a obrigação de ser fiel à revelação recebida e comunicá-la sem distorções. Daí a advertência de Javeh: “o profeta que tiver a ousadia de dizer em meu nome alguma coisa que não lhe mandei ou se falar em nome de outros deuses, esse profeta deverá morrer ” (Dt 18, 20), este é um falso profeta.


Vemos, assim, que a missão do profeta é importante e perigosa. Importante, porque ele fala em nome da maior autoridade que pode existir; perigosa porque quando Javeh mandar, ele irá falar seja onde for, pra quem for, o que for e isso pode levá-lo a alguma situação de risco, como de fato já levou; e perigosa tb porque se ele falar algo que Javeh não mandou, ou se falar em nome de outros deuses, o próprio Javeh tomará satisfação com ele. Esse temor que o Javeh do Antigo Testamento suscitava no povo, através dos seus profetas, foi o que fez a tradição judaica deixar de pronunciar o “seu santo nome”, pois as ameaças eram fortes e as consequências imprevisíveis. Observando os tempos posteriores, até os dias de hoje, constatamos o quanto as pessoas que hoje se arvoram em “donos” de igrejas e de religiões perderam esse temor. Os falsos profetas de hoje conseguem, com recursos técnológicos e econômicos, seduzir multidões e dominá-las, tornando-se com isso ricos e poderosos.


É ainda oportuno, nesse contexto, lembrar o caso dos fanáticos do islamismo, que se utilizam da sua religião (que em essência é muito parecida com a tradição judaico-cristã) numa interpretação literal e temerária da violência expressa nos textos, e realizam atos bárbaros de ataques públicos e de homicídios, com publicidade nos meios de comunicação, como uma forma de demonstrar poder e impor o medo nas demais culturas. Ouso dizer que, fazendo analogia com o texto do Deuteronômio, esses fanáticos não falam em nome de Alá, mas em nome da própria insanidade, servindo-se do véu religioso dos textos para finalidades totalmente contraditórias. É bem verdade, é forçoso admitir, que em outras épocas, as autoridades cristãs da Europa, também em nome da religião e sob o mesmo pretexto, praticaram barbaridades seja na própria Europa (por exemplo, queimaram Joana D’Arc), seja com os povos do oriente médio (por exemplo: guerras das cruzadas). No entanto, é imperioso analisar esses fatos trágicos dentro de uma visão histórica e crítica, sem transformá-los em motivação para a prática de novos crimes. Creio que, assim como Javeh ameaçou, também Alá adotará severas providências contra tal fanatismo irracionalista.


Na leitura do evangelho de Marcos (1, 21-28), temos a notícia que Jesus ensinava na sinagoga de Cafarnaum, cidade onde ele desenvolveu a maior parte de sua atividade missionária, e o povo o considerava um profeta, mas achava que era um profeta diferente. Ora, na liturgia comemorativa do batismo de Jesus, vimos que Ele dissera, a respeito de João Batista, que este era mais do que um profeta, portanto, o próprio Jesus não poderia ser qualificado como profeta. Diz o evangelista que “Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei.” (Mc 1, 22) Ora, eles não sabiam ainda, mas a diferença estava exatamente no fato de Jesus não falava em nome de Javeh, mas falava em nome próprio, porque Ele era um com o Pai. Daí porque, mesmo perante um povo acostumado a ouvir profetas, a voz de Jesus soava de um modo diferente dos outros, de um modo novo, inaugurado por Ele. Outro detalhe que chama a atenção na leitura é que isso ocorreu num dia de sábado, portanto, Jesus igual a todos os judeus guardava o sábado, comparecia à sinagoga aos sábados. Não é essa a única referência dos evangelhos ao fato de que Jesus cumpria o preceito religioso tradicional dos judeus. Embora tendo autoridade e falando com autoridade, Jesus não deixava de cumprir a lei nem se aproveitava de sua autoridade para diversificá-la.


Na sequência da leitura desse texto (Mc 1, 23-25), o evangelista faz um relato intrigante sobre um dos presentes na sinagoga, que estava “possuído por um espírito mau”. Há pessoas inadvertidas que, interpretando literalmente esse texto, enxergam aí uma prova de que, nos tempos de Jesus, já havia o “espiritismo”, ou seja, veem como se o evangelho estivesse validando a doutrina que hoje leva essa denominação. Muitos biblistas de hoje afirmam que essa referência aos espíritos maus, diversas vezes encontrada nos evangelhos, diz respeito a pessoas com doenças mentais. Não raras vezes, ocorrem nos dias de hoje casos de pessoas portadoras de algum desequilíbrio psíquico que adentram os templos na hora das celebrações e precisam ser contidas ou retiradas, porque passam a fazer ações incompatíveis com o local. E ninguém hoje diz que essas pessoas estão “possuídas por um espírito mau”, porque sabemos (ou ao menos supomos) que se trata de uma enfermidade. Mas naquela época, não se tinha esse conhecimento e a explicação dada era a da possessão por um espírito maligno.


Pois bem, de acordo com o texto, esse homem interpelou Jesus, dizendo: 'que queres tu, Jesus Nazareno, vieste aqui para nos destruir?' Vamos tentar contextualizar essa afirmação, sem pensar em espíritos maus. O que significaria esse “nos destruir”. Lembremo-nos que, naquela época, a Galiléia estava dominada pelos romanos e a população tinha medo dos soldados, pelas violências que eles praticavam contra os que se rebelavam. Jesus era identificado por muitas pessoas como sendo um líder rebelde, como alguém que estaria provocando um levante político naquele momento contra os romanos. Então, essa pessoa pode ter dito isso com esse referencial, isto é, tinha um viés político a sua fala. Quando Jesus disse a esse interlocutor: “'Cala-te e sai dele!' Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu”, neste momento, Jesus operou a cura da enfermidade psicológica daquela pessoa. E agora, vocês podem perguntar: por que então o “espírito mau” possuidor daquele homem teria dito: “Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus'”? Meus amigos, lembremo-nos de que os atos praticados por Jesus não foram documentados imediatamente, não havia repórteres nem escribas acompanhando seus passos. Esses fatos miraculosos eram transmitidos oralmente, de boca em boca, de cidade em cidade, e assim ficaram durante muitos anos antes de serem escritos. Penso que aqui vale a regra “quem conta um conto aumenta um ponto”. O objetivo do evangelho de Marcos era mostrar que Jesus é Filho de Deus, portanto, é possível que esse episódio, certamente verídico, tenha tido uma descrição adaptada ao objetivo do seu escritor. Os biblistas afirmam que o evangelho de Marcos não foi escrito para povos judeus, mas para povos gentios, isto é, pessoas de cultura grega, de costumes gregos. Através da descrição de obras maravilhosas feitas por Jesus, o evangelista queria demonstrar a Sua origem divina. Portanto, a meu ver, o texto citado não contém qualquer suporte a doutrinas ou ensinamentos sobre espíritos, mas tem a finalidade de mostrar a divindade de Jesus através de seus milagres.


Meus amigos, quando nós fomos batizados em do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós recebemos a missão profética de ser sinal para os irmãos, de ser luz do mundo e sal da terra. Reflitamos sobre a maneira como cada um de nós está pondo em prática a nossa missão profética, examinando a nossa fidelidade com esse compromisso.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 24 de janeiro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - O TEMPO OPORTUNO - 24.01.2021

 

O TEMPO OPORTUNO


Na liturgia deste domingo (24.01.2021), as leituras se nos convidam a refletir sobre o tema do tempo. O tempo está chegando, diz o profeta Jonas. O tempo está abreviado, diz Paulo aos Coríntios. O tempo já se completou, diz Jesus aos galileus. Também para nós o tempo é constantemente objeto de preocupação. E por mais que nos pareça algo muito concreto, na verdade, o conceito de tempo é abstrato. Falamos sempre do tempo como se fosse algo corpóreo, contudo, o tempo é apenas uma produção da nossa atividade psicológica, ou seja, é uma forma de conceituarmos essa sensação que captamos diante da evolução dos fatos numa corrente sucessiva. Para melhor controle, as pessoas aprenderam a medir o tempo, a quantificá-lo ou a dividi-lo em fatias (como diz o soneto de Drummond). 

 

Na língua portuguesa, o vocábulo “tempo” é polissêmico, por isso o utilizamos nas mais diversas situações, mas sabemos distinguir mentalmente o seu significado. A título de exemplo, no idioma grego, há duas palavras diferentes para falar do tempo: uma quando a referência é sobre os dias-meses-anos (chrónos) e outra quando a referência é algo indeterminado, um tempo simbólico (kairós), entendido aqui o tempo simbólico como a oportunidade, o momento, a hora certa de fazer algo, ou como dizem os teólogos, o tempo favorável. É neste último sentido que se deve compreender a alusão ao tempo na liturgia de hoje: o tempo favorável para a ação de Deus na história. Esse tempo não vem com hora marcada, nós é que temos de encontrá-lo ou, se for o caso, construi-lo.


A primeira leitura traz a lembrança da missão do profeta Jonas, em Nínive (Jn 3, 1-5). Deus mandara que ele pregasse ao povo de Nínive assim: Se não mudardes o vosso modo de vida, dentro de 40 dias, a esta cidade será destruída. O povo se converteu e Deus suspendeu o castigo que iria mandar. Nínive era a capital da Assíria, uma megalópole daquele tempo, talvez maior do que é Fortaleza nos dias de hoje, porque o texto afirma que eram necessários três dias para atravessar a cidade. Era um local de muitas perversidades, como em toda grande cidade. O profeta Naum chamara Nínive de cidade sanguinária, cheia de mentiras e de roubo (Na 3,1), por isso Javeh iria transformá-la num deserto. Mas com a pregação do profeta Jonas, o rei e os cidadãos se converteram e fizeram penitência, assim o castigo foi evitado. Evidentemente, essa tarefa de Jonas não deve ter sido assim tão simples e de resultado imediato, conforme a descrição do texto, mas o que a liturgia quer destacar aqui é o tempo favorável, que os ninivitas reconheceram e souberam aproveitá-lo. A população da cidade dirigiu seus ouvidos à pregação do profeta e deu-lhe crédito. Devemos também considerar que havia ali um momento favorável, no sentido de que muitos dos habitantes da cidade ainda se recordavam da derrota do rei de Judá, Ezequias, para o rei de Nínive, Senaqueribe, e da humilhação sofrida pelo povo, por isso tiveram maior sensibilidade para ouvir o profeta.


O evangelho de Marcos lido neste domingo (1, 14-20) também faz referência ao início das atividades públicas de Jesus, o que ocorreu após a prisão de João Batista. Alguns domingos atrás, quando comemorou-se o batismo de Jesus, João Batista dizia ao povo que, após ele, viria alguém de quem ele não seria digno de desamarrar as sandálias. Então, a prisão de João Batista foi o tempo favorável para o início da missão profética que Jesus veio realizar. Jesus não iria fazer concorrência com João Batista, até porque este foi o agenciador da chegada d'Aquele, por isso não seria oportuno que ambos atuassem simultaneamente. Essa oportunidade chegou quando João Batista saiu de cena, abrindo-se o espaço para o anúncio da “boa nova”. E um detalhe significativo é que Jesus começou suas pregações na Galiléia, não foi em Jerusalém, a grande cidade da época. Por que na Galiléia? Porque aquela região era habitada por pessoas de diversas origens étnicas e de diversas nacionalidades. Isso teria ocorrido porque a população primitiva daquela região teria sido levada, em sua maior parte, cativa para a Babilônia e a terra ficou desabitada, passando a ser ocupada por pessoas nômades de outras tribos, durante o tempo em que os hebreus permaneceram no cativeiro. Com o retorno do povo hebreu libertado, os novos habitantes se relacionaram bem com aqueles e por esse motivo o local era um misto populacional de diversas origens, razão porque era chamada de Galiléia das Nações. 

 

Então, Jesus escolheu iniciar a pregação do reino de Deus exatamente num local em que a população, além de ser pobre, não era constituída exclusivamente de hebreus, demonstrando logo no início o destino universal dos seus ensinamentos. É essa igreja dos pobres que o Concílio Vaticano II destacou em seus documentos, diferentemente daquela igreja elitizada, como ela passou a ser a partir do seu envolvimento com os imperadores romanos e com os senhores feudais da Idade Média. Esse é o sentido da “opção preferencial pelos pobres”, que tanto o Concílio quanto os documentos oficiais posteriores pretendem resgatar, o que deu origem à doutrina muitas vezes mal entendida e não poucas vezes deturpada chamada “teologia da libertação”.


Esta mensagem acerca do tempo favorável, do momento e da oportunidade nos convida a estar sempre atentos aos “sinais dos tempos”, sempre reavaliando nosso modo de ser, pois Deus está se manifestando a nós de diversos modos nos acontecimentos e às vezes nós não percebemos e deixamos passar aquela oportunidade de praticar o bem.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - A VOCAÇÃO DE CADA UM - 17.01.2021

 

A VOCAÇÃO DE CADA UM
 
O Papa Francisco baixou um decreto dedicando o ano de 2021 a São José, sendo por isso chamado de “ano josefino”. Neste domingo após as festividades de Natal e dos Santos Reis, o tema litúrgico é o chamado ou a vocação de cada um. A nossa vocação está associada à nossa missão, ao nosso objetivo de vida. Cada pessoa possui certas habilidades e tendências inatas, próprias do seu caráter e da sua personalidade, que orientam sua ação na sociedade, de modo que realizar a própria vocação corresponderá a descobrir esses talentos que Deus nos dá em maior abundância e fazer uso deles para o maior bem de nós mesmos, dos irmãos, da sociedade, do reino de Deus, para cujo desenvolvimento nós somos convocados a colaborar. A vocação requer escuta e compromisso. Escuta para que cada pessoa possa identificar o que Deus espera dela. Compromisso para que cada um assuma a sua missão com honestidade e com firmeza, na certeza de que a graça divina não deixará de lhe favorecer.
 
Na leitura retirada do livro de Samuel (3, 10-19), lemos sobre a vocação deste sacerdote e profeta, quando recebeu o primeiro chamado de Javeh. Ele era ainda um jovem e neófito, nunca havia tido contato com o Senhor e por isso não identificou, de início, quem o estava chamando e apresentou-se ao sacerdote Eli, na suposição de seria ele o autor do chamado. Somente depois de ouvir algumas vezes a voz de Deus, instruído por Eli, Samuel conseguiu identificar a origem do chamamento. Isso também pode acontecer conosco, embora, muitas vezes, já não sejamos jovens de idade como o Samuel da leitura, mas nem sempre conseguimos ouvir ou identificar com clareza o chamado que nos chega da parte de Deus. Este chamado em geral não é assim tão nítido e insistente, como aconteceu com Samuel, às vezes, ele é sutil e delicado, como é o caso de quando vem através da voz do irmão necessitado, do próximo que pede a nossa ajuda, por exemplo. As pessoas escolhem suas profissões de acordo com essa predisposições naturais e as aperfeiçoam com estudo e com treinamento. Toda atividade profissional não é exercida apenas para o bem estar da própria pessoa, mas cumprindo uma missão na sociedade, que todos nós ajudamos a construir. A teologia chama essa escolha profissional de chamado divino. Cada um prossegue no atendimento a esse chamado, contribuindo para a maior glória de Deus nas tarefas do dia a dia como cidadãos, dando aos irmãos exemplos de vida pessoal e profissional, na fidelidade do seguimento da mensagem de Cristo.
 
É interessante observarmos que Javeh chamou Samuel enquanto ele dormia. No Antigo Testamento, há diversos exemplos de casos em que Javeh fala diretamente com alguém, não se servindo de um intermediário, um portavoz. E a metodologia dessa mensagem com frequência está associada ao sonho. Era comum que as pessoas escolhidas por Javeh recebessem mensagens divinas através de sonhos. Há vários exemplos na escritura sagrada sobre os sonhos dos “navis” (profetas), eram uma espécie de revelação que eles recebiam de Deus, assim como aconteceu com Samuel. 
 
A palavra “profeta” surgiu na tradução da escritura para a língua grega, quando a palavra hebraica “navi” foi traduzida por “prophaités”, palavra esta derivada do verbo grego “phainow” (falar), então o profeta é aquele que fala em nome de alguém. No antigo testamento, o “navi” trazia um recado de Javeh, o qual ele havia recebido geralmente através de um sonho, daí porque foi traduzida por “pro-phaités”. Visto que, no mais das vezes, os fatos abordados se referiam a eventos futuros, gerou-se uma tradição de que profeta é aquele que é capaz de prever acontecimentos, como se fosse um adivinho, sendo esse o significado semântico mais usual. Na verdade, “profetas” somos todos nós quando, através das nossas atitudes, nossas palavras e nosso testemunho demonstramos para os irmãos a nossa característica de cristãos e, mesmo sem proferir discursos ou pregações, somos eloquentes no agir e no fazer. 
 
Nesse contexto, cada um de nós é convidado a refletir de que modo, nas nossas vidas, na familia, no trabalho, no lazer, no estudo, na educação dos filhos, na vida social em geral nós prosseguimos com sinceridade sendo fiéis ao chamado que nos foi dirigido por Deus.

domingo, 10 de janeiro de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - BATISMO DO SENHOR - 10.01.2021

 

COMENTARIO LITURGICO – BATISMO DO SENHOR – 10.01.2021


Neste domingo após a Epifania, celebramos a festa do Batismo do Senhor. Na verdade, Jesus não precisava ser batizado, porque o seu “batismo” oficial se deu quando ele foi apresentado no templo, de acordo com a lei de Moisés. Além disso, o batismo de João tinha por objeto o perdão dos pecados, para aplainar os montes e endireitar as veredas, ou seja, a “metanóia” ou a conversão ou a mudança de vida, sendo o mergulho do batismo o símbolo dessa mudança: o batizado ressurge das águas como um novo fiel, purificado dos seus pecados. Não era esse o caso de Jesus, ele não tinha pecados a purificar. Por isso, penso que o fato de Jesus ter entrado na fila para ser batizado por João, tinha tripla finalidade: primeiro, abençoar as águas do rio Jordão como símbolo de todas as águas da terra, que algum tempo depois seriam utilizadas para o batismo dos cristãos; segundo, dar um caráter oficial àquela catequese preparatória do povo, feita por João, antes que Ele (Jesus) iniciasse a pregação da sua doutrina; terceiro, fazer a sua apresentação pública, pois até então ele vivera anonimamente, e agora seria apresentado oficialmente como Filho de Deus, pois foi nessa ocasião que, pela primeira vez, ocorreu a manifestação da Trindade divina.


O tema do batismo é um dos que desperta mais polêmica entre a Igreja Católica e as demais igrejas cristãs, por diversas razões históricas, que todos conhecemos, porém penso que as querelas mais significativas se concentram em dois pontos: 1. o batismo de crianças recém-nascidas, fato que não ocorria no início do cristianismo, tendo sido introduzida como prática posteriormente; 2. o ritual do batismo por mera aspersão (derramamento de pouca água na cabeça do batizando) e não por imersão (mergulho na água), como era o batismo original de João.


Em relação a essa crucial polêmica, o fato histórico é que nem sempre o batismo foi realizado por imersão do fiel. No Novo Testamento, diversos relatos sobre o batismo sugerem uma outra forma de batizar, como por exemplo, em Atos 16, 33, quando Paulo batizou pessoas na prisão, certamente ali não tinha como fazer a imersão dos batizados. O batismo do próprio Paulo por Ananias (Atos 9, 18), realizado na casa de Judas, não deve ter sido por imersão. Do mesmo modo, o episódio ocorrido no dia de Pentecostes (Atos 2, 37-41), quando cerca de 3.000 pessoas foram batizadas após a pregação de Pedro, não deve ter sido por imersão. Ou seja, desde os primeiros tempos do cristianismo, já se praticava o batismo por aspersão, não tendo sido “invenção” dos padres medievais, como insinuou Lutero quando se opôs a essa prática, porque queria retornar ao fundamentalismo do texto. Aliás, Lutero não se opunha apenas ao ritual da aspersão, mas também ao fato de que a Igreja aprovava o batismo de crianças bem pequenas, em vez de batizar apenas os adultos. Embora eu reconheça que há um certo exagero nessa antecipação do tempo batismal para a infância, creio que há razões teológicas que a justificam, entre as quais destaco duas fundamentais: 1. o fato de que a pessoa deve ser purificada do pecado (no caso da criança, o pecado original) o quanto antes possível, ou seja, logo após ao nascer, sem esperar a idade adulta; 2. embora a criança de pouca idade não saiba o que está ocorrendo, a Igreja age como mãe amorosa e faz isso por ser o melhor para o pequeno fiel, assim como toda mãe só quer o bem dos filhos, ficando com os pais e padrinhos a responsabilidade de ensinar a criança e conscientizá-la, quando tiver entendimento. É assim que o catecismo ensina, é assim a doutrina oficial da Igreja Católica.


Saindo dessas polêmicas histórico-doutrinárias e analisando agora sob o aspecto gramatical, o vocábulo batizar deriva do verbo grego BAPTIZÔ, que significa mergulhar, submergir, mas também lavar. Por exemplo, batismo já foi uma espécie de pena de morte, em que se mergulhava o condenado até ele morrer afogado. Em Lucas (11, 38), quando os fariseus se admiraram porque os discípulos de Jesus não lavavam as mãos antes de comer, a frase latina é “quare non baptizatus esset” (liberalmente, “porque não tinham se batizado”) e a frase grega é “ou proton ebaptiste”, demonstrando assim o significado do verbo “baptizô” no sentido de lavar. Ora, para lavar as mãos, não é necessário sempre as mergulhamos em água, muitas vezes apenas derramamos água sobre elas. Ou seja, além dos aspectos puramente doutrinários, há ainda o suporte favorável do estudo linguístico dos termos.


Em algumas igrejas cristãs não católicas que eu conheço, prepara-se uma espécie de piscina ou tanque grande cheio de água para o ritual do batismo por imersão. A meu ver, trata-se de uma prática desvirtuada do sentido original do batismo de João, pois deveria ser realizado em uma fonte de água natural. Isso, sem esquecer os aspectos práticos da água esparramada, das vestes encharcadas, do constrangimento por que passam as pessoas, sobretudo as mulheres, que têm seus corpos expostos desnecessariamente... Ora, se é para seguir o ritual, então, que se o sigamos por completo. Pessoalmente, eu não vejo sentido nesse tipo de ritual, que pode ser simplificado sem perder o seu sentido e a sua finalidade. Em síntese, digo que a forma de realizar o batismo, se por imersão ou por aspersão, não é relevante, e sim a fé que deve motivar o fiel a receber o batismo. No caso de crianças pequenas, a fé é dos adultos que as levam a batizar e que se comprometem a catequizar o batizado na mesma fé que professam.


Acerca das leituras litúrgicas dessa festa, o evangelho de Marcos (1, 7-11) relata o batismo de Jesus por João, o qual dizia que depois dele viria alguém bem maior, de quem ele não era digno nem de desamarrar as sandálias. Culturalmente, o ato de desamarrar as sandálias era próprio dos servos, que assim o faziam com o seu amo, e João se colocava desse modo como inferior a um servo. E diz o evangelista: “Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João no rio Jordão. E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele.” A fama de João era conhecida em toda a Judeia, Galileia, Samaria, em toda aquela região conhecida genericamente como Syria, onde ele tinha muitos discípulos e seguidores. Então, Jesus saiu de Nazaré para ter com João propositalmente, para dar continuidade ao trabalho dele, fez uma espécie de homologação dos seus atos preparatórios e assumiu dali em diante a tarefa de cumprir a promessa do Pai. O evangelista Marcos não diz nada a respeito, mas Mateus (13, 14) relata que João reconheceu Jesus e não queria batizá-lo, exatamente por causa do seu discurso de acerca da superioridade de Jesus em relação a ele e só a muito custo concordou em fazê-lo. Ora, se Jesus tinha tido até então uma vida oculta, como foi que João soube de quem se tratava? Com certeza, foi o “espírito” quem lhe indicou isso.


Então, foi no batismo de Jesus o primeiro momento em que se manifestou a Trindade divina, que “ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele. E do céu veio uma voz: 'Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer'”, isto é, o início da vida pública de Jesus foi oficialmente declarado pela presença das três pessoas divinas. Provavelmente, naquele momento, somente João e Jesus viram a manifestação do Espírito e ouviram a voz do Pai, ainda não era o momento para que os convertidos tomassem conhecimento desse mistério. O testemunho de João deve ter sido a fonte de onde esse fato passou para textos primitivos que deram origem aos evangelhos, compilados após a ressurreição de Jesus.


Já por vários anos, tenho observado que está-se tornando comum o batismo de pessoas adultas, como era bem no princípio do cristianismo. Por ocasião da celebração da Vigília Pascal, aqui na nossa Paróquia, há sempre um grupo de pessoas adultas a receberem o batismo, como parte integrante da cerimônia. Desenvolve-se uma catequese específica para preparação do batismo de adultos, tal como era nos primórdios do cristianismo. Ninguém põe em dúvida que a opção pelo batismo na idade adulta é muito mais significativa do que o batismo das crianças, porque tem-se um ato de vontade do próprio fiel e não de seus pais. Então, aquela antiga polêmica do batismo de crianças já não tem mais tanta importância nem desperta mais tanta polêmica, como foi no passado.


Que o divino Espírito nos inspire a viver o nosso batismo no dia-a-dia da nossa caminhada existencial, testemunhando diuturnamente, através do nosso comportamento, o compromisso assumido na pia batismal.


Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos