COMENTÁRIO LITÚRGICO
– COMEMORAÇÃO DE TODOS OS SANTOS – 04.11.2012
Caros Confrades,
A liturgia deste
domingo abre espaço para a comemoração de Todos os Santos, que
ordinariamente se faz no dia 1 de novembro, associado à comemoração
dos fiéis defuntos, no dia 2. As duas datas comemorativas são
propositalmente colacionadas pela liturgia em dias vizinhos, porque a
união das duas celebra o dogma religioso da 'comunhão dos santos',
que nós rezamos no Credo. Pela lógica litúrgica, a comemoração
de todos os santos devia anteceder a dos fiéis defuntos, mas pelo
nosso calendário litúrgico pátrio, terminaram as datas se
invertendo.
É o caso de
refletirmos sobre o sentido dessa lógica litúrgica e também sobre
o significado do termo 'santos'. São Paulo, na carta aos Romanos (8,
32) utiliza o termo 'santos' para designar os cristãos. Os cristãos
são santos porque foram santificados pelo sangue de Cristo, na Sua
morte e ressurreição. A teologia ensina que a principal vocação
do cristão é à santidade, nós todos nos encontramos neste caminho
de busca da santidade. A tradição cultural de denominarmos 'santos'
somente aqueles que foram elevados às honras dos altares tende a
fazer um paradoxo entre eles e nós: eles, os santos; nós, os
pecadores. Em verdade, teologicamente, não é assim. Aqueles que
foram 'canonizados', isto é, tiveram suas virtudes reconhecidas
oficialmente pela Igreja, são os santos-modelos, são aqueles que a
Igreja coloca como exemplos para que nós sigamos. Mas todos nós
conhecemos pessoas vivas ou já falecidas que exalam o odor da
santidade, mesmo sem terem o reconhecimento oficial. Apenas para dar
um exemplo, faz poucas semanas, nos lembramos aqui neste espaço do
exemplo do Frei Serafim de Viana. Eu não conheço uma só pessoa que
tenha convivido com o Frei Serafim que discorde do seu exemplo de
santidade.
Então, a lógica
litúrgica da comemoração das duas festividades em dias vizinhos é
para nos lembrar que todos estamos em comunhão (comum união): nós
que ainda somos peregrinos, aqueles que tiveram seus méritos
reconhecidos oficialmente pela Igreja e os fiéis defuntos todos, dos
quais somente Deus conhece o íntimo e pode avaliar. Antigamente, a
liturgia fazia alusão também “às almas do purgatório”,
expressão hoje propositalmente omitida, porque se trata de um tema
teológico controverso. Conforme expressei no comentário que fiz
anteontem, por ocasião da celebração dos fiéis defuntos, não é
válido pensar que alguém 'passe 'x' anos no purgatório', porque
quando ultrapassamos a barreira da materialidade, lá não se contam
dias nem meses nem anos. Certamente, o Justo julgador divino
providencia para todos um ritual de purificação, que não nos é
dado conhecer como é, mas também por certo esse ritual não tem
nada que ver com fogo ou com uma tal ou qual duração.
A comunhão dos santos
é, portanto, um conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas
cartas com o nome de 'corpo místico de Cristo', do qual a Igreja é
a cabeça. Este corpo místico engloba todos os fiéis aos
mandamentos de Cristo, de antes, de hoje e de depois, todos formando
uma unidade na diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no
Espírito. É nesse contexto que devemos entender também a primeira
leitura, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número
dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo
quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Aqui está outro
exemplo de que não podemos interpretar literalmente o texto sagrado.
Talvez, na época de João, cento e quarenta e quatro mil fosse um
número grande demais para ser pensado, porém nos dias de hoje
tornou-se um número insignificante.
Além disso, João se
refere a doze mil de cada uma das doze tribos de Israel para chegar a
esse total. Talvez, naquela época, ele tivesse a esperança de que
os judeus todos fossem aderir à mensagem de Cristo, o que de fato
não ocorreu. Mas ele previu também (Ap 7, 9) uma
multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e
línguas, e que ninguém podia contar.
Nós estamos nessa multidão incontável de seguidores de Cristo, que
João nem teve coragem de quantificar, e nem poderia. E todos também
marcados para serem salvos, uma vez que “Estavam
de pé diante do trono e do Cordeiro;
trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Todos igualmente santos, se trouxermos para este contexto a expressão de São Paulo.
trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro".” (Ap 7, 9-10) Todos igualmente santos, se trouxermos para este contexto a expressão de São Paulo.
O
mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma
expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos:
o de sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de
Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos,
desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que
seremos!”
Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois
nós só sabemos disse agora enquanto mistério revelado por Cristo.
Assim, pela fé, nós já somos, embora sem sabermos com clareza do
que somos, pois isso somente se manifestará totalmente quanto O
virmos face a face, quando então Ele será tudo em todos. A teologia
tem uma expressão interessante para explicar isso: já e ainda não.
Nós já somos, mas ainda não sabemos como é isso. Mas já somos.
Isso só é possível para quem tem fé. Daí João ter escrito em
1Jo 3,1: este é o grande presente de amor que o Pai nos deu, o de
podermos ser incluídos no rol dos seus filhos já desde agora,
quando Ele ainda não se manifestou plenamente para nós.
A
riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o
famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem
aventurados. Dizer que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que
somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus),
que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes',
tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra
nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos
aqueles que, pela aparência social, seriam pessoas desventuradas.
Havia um entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de
que as pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem aventuradas) já
recebem logo neste mundo os Seus dons de forma abundante. Assim,
perante essa visão farisaica, bem aventurados eram os ricos, os
poderosos, os belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela
esperteza. Os demais eram considerados pessoas amaldiçoadas,
esquecidas por Deus, que desde logo já estavam sofrendo um castigo
que continuariam a sofrer na outra vida.
Contrariando
esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes
dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho
dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e
os convidados não compareceram, tendo ele convidado os maltrapilhos
e os sem-teto para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que
lavou os pés d'Ele com lágrimas na presença dos fariseus (não
confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele
expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5),
ele vai dizer que são bem aventurados: os pobres, os aflitos, os
mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os pacíficos, os
perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a tradição social
excluía como os mais desprezíveis. E arremata: alegrai-vos e
exultai porque grande será a vossa recompensa.
Caros
amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto
chamados, vocacionados à santidade. Não importa se um dia teremos
nossas virtudes reconhecidas e seremos colocados num altar, servindo
como exemplo para os demais cristãos. Isso nem é necessário,
porque o que nós somos e fazemos apenas a Deus interessa. Ocorre,
porém, que devemos ter consciência de que nós já somos, mas ainda
não chegamos lá. Isso significa que toda a nossa vida é um
aprendizado, um treinamento contínuo, um exercício interminável na
tentativa de superarmos nossas deficiências e nos livrarmos dos
nossos pecados. O Padre Manfredo Ramos, no sermão da missa de hoje,
disse uma definição de Santo Agostinho sobre o pecado que eu achei
perfeita: pecado é aquilo que falta em nós para conseguirmos
praticar a caridade na medida certa. O que Deus quer e espera de nós
é que vivamos constantemente na busca dessa parte que nos falta. E o
modo de irmos nos aproximando disso é praticando continuamente a
caridade e o amor ao próximo.
Que
nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar
sempre mais da perfeição que conduz à santidade.
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