REFLEXÕES A PROPÓSITO
DO DIA DE FINADOS
Caros Confrades,
A comemoração dos
fiéis defuntos, celebrada nesta sexta feira, nos remete a um tema
que o antigo catecismo chamava de 'novíssimos': morte, juízo,
inferno, paraíso. O evangelho lido na missa de hoje é aquela
conhecida narração de Mateus, ilustrando a vinda gloriosa de Jesus,
no final dos tempos, rodeado de anjos e ao som de trombetas, mandando
todos fazerem fila, uns à direita (as ovelhas) e outros à esquerda
(os cabritos).
Esta narrativa foi
visualizada por diversos artistas, ao longo dos tempos, sob as mais
variadas formas em obras de arte memoráveis, todas buscando retratar
o juízo final segundo o relato evangélico. No entanto, é o caso de
perguntarmos: será realmente assim com essa forma teatral o
julgamento final da humanidade? Ou será que cada um que chega ao
final do bom combate, como diz São Paulo, vai logo se encontrando
com o divino Julgador e recebendo sua sentença? Será esse
julgamento realizado logo em seguida à morte ou teremos de aguardar
por 'um dia em que Jesus há de voltar' e mandar todos os mortos
saírem das sepulturas?
Ao meu ver, a resposta
as essas indagações dependerá do modo como compreendemos a
eternidade. Há um costume cultural de se tentar descrever as
realidades eternas com o mesmo esquema espacio-temporal das
realidades terrenas. É o que eu chamo de visão antropomórfica da
eternidade. Mas se nós imaginarmos que a eternidade é o oposto da
temporalidade, iremos perceber que o eterno está fora do tempo e
assim na eternidade não se passam dias, meses e anos, como acontece
na dimensão temporal. Eternidade é o presente permanente, não há
nem passado nem futuro. Na vida terrena, nós temos o antes, o agora
e o depois; na eternidade, tudo é agora, sempre agora. É impossível
imaginar como seria esse agora permanente, mas o fato é que,
ultrapassado o portal da matéria, o tempo não mais existe.
Se nós raciocinarmos
assim, iremos concluir que a narrativa do evangelista Mateus é uma
descrição metafórica de uma realidade sobrenatural, que não pode
ser interpretada literalmente. O que está ali descrito representa um
modo cultural de repassar a ideia do julgamento a que cada um irá se
submeter, ao terminar o seu curso terreno, quando deverá prestar
contas dos talentos recebidos. Não significa um 'roteiro' antecipado
do que irá suceder. Alguém poderia contestar dizendo que foi Jesus
quem afirmou aquilo. Ora, na verdade, Jesus falou tudo o que está
nos evangelhos, é o que a Igreja crê, e Jesus não poderia falar
diferentemente, porque aquelas pessoas não iriam entender. Mas Jesus
também disse que falava sempre em parábolas, portanto, devemos
compreender essas afirmações parabolicamente.
Vamos imaginar como
seria este episódio conforme está escrito, literalmente. Jesus virá
em sua glória sentado no seu trono. Em que local ele iria aparecer?
Na Palestina, onde ele veio um dia? Na Europa, onde está o Papa? No
Brasil, a maior nação católica do mundo? Em qualquer lugar que
seja, como será possível fazer filas com tanta gente? E as pessoas
que residem em outras localidades, como iriam se deslocar? A
população atual da terra é da ordem de 6 bilhões de pessoas e
está sempre crescendo. Se isso fosse hoje, contando ainda com os
mortos que iriam sair dos sepulcros, haveria espaço para caber tanta
gente? Só por essas breves indagações, dá pra perceber que é
inviável a realização do juízo final exatamente da forma como
está descrito no evangelho, ou seja, a narrativa de Mateus é
simbólica, não fatual. Então, temos que imaginar alternativas de
como será esse 'dia'.
Seguindo a linha de
raciocínio que expus acima, no sentido de que a eternidade é o
oposto da temporalidade, então devemos imaginar que o julgamento
final não ocorrerá num 'certo dia no futuro', como o texto bíblico
literalmente dá a entender. Isso porque na eternidade, não há
hora, nem dia, nem mês, nem ano, portanto, o mais razoável de se
pensar é que logo em seguida à morte, cada um se apresenta diante
de Deus e recebe a sua sentença, pois Deus já nos terá julgado,
como de fato, Ele nos julga constantemente. Não há 'um dia' para
isso, pois essa expressão, nesse contexto, deve ser compreendida
como o agora permanente da eternidade.
Há ainda outra
consideração a fazer, uma reflexão feita pelo Padre que celebrou a
missa hoje na Igreja da Glória (Padre Julio César), com a qual em
concordo plenamente. Lembremo-nos das referências sobre os critérios
de julgamento, quando Jesus disse: eu tive fome e me deste (ou não
me deste) de comer; eu tive sede e me deste (ou não me deste) de
beber, etc... e conclui: todas as vezes que fizestes (ou deixastes de
fazer) isso a um desses pequeninos, foi a mim que fizeste (ou que
negaste), dependendo se está se referindo às ovelhas ou aos
cabritos. Sobre isso, disse o Padre: Deus não vai perguntar quantas
missas você assistiu, quantos terços você rezou, quantas vezes
você comungou, quantas orações por dia você fez, quantas
confissões você fez, etc... todas essas práticas são ótimas e
recomendadas, no entanto, elas devem se complementar com a prática
da caridade. Em resumo, Deus vai nos perguntar como foi a nossa
caridade para com o próximo. Isso significa que milhares de missas,
milhares de comunhões, milhares de terços e orações rezadas
durante a vida, se não forem acompanhadas da ação caritativa, de
nada adiantaram.
Meus amigos, isso é
muito sério, isso nos põe um questionamento sobre o 'modelo' de
prática religiosa que adotamos. Estamos olhando apenas para o alto?
A nossa religião é exclusivamente uma comunicação com Deus? Ou
olhamos para a frente e vemos Deus nos irmãos, e nos comunicamos com
Deus através dos irmãos? Houve uma prática pedagógica religiosa
do passado, que ainda está na cabeça de muitas pessoas que se dizem
católicas, que compreende a religião apenas como uma devoção a
Deus, a Maria, aos santos, aos anjos e arcanjos e termina por aí. A
piedade só existe dentro do templo, a religião só é vivida
individualmente, eu e Deus e isso basta. Vejamos bem que Jesus foi
muito duro quando os 'cabritos' perguntaram: Mestre, quando foi que
te vimos com fome e não te demos de comer, com sede e não te demos
de comer, enfermo e não te visitamos? E ele respondeu: foi quando
deixastes de fazer isso com os irmãos.
Portanto, meus amigos,
esqueçamos essa teatralização do juízo final, procurando
descobrir a verdadeira mensagem de Cristo transmitida através dessa
encenação simbólica, pois o que Ele nos diz pode ser resumido em
duas verdades: 1. Todos irão prestar contas ao Pai daquilo que
receberam e do modo como fizeram uso disso. 2. O critério pelo qual
nós seremos julgados é exatamente aquilo que Ele ensinou no novo
mandamento, a saber, amar a Deus e aos irmãos. Nós seremos julgados
pela medida do amor. Se vai haver um troar de trombeta no céu, se
Ele vai aparecer brilhante e majestoso, se os mortos sairão das
tumbas, se haverá duas grandes filas, etc... tudo isso é a
roupagem metafórica da verdade mais elevada que Ele quis transmitir:
o julgamento pela medida do amor. Ou seja, ele já disse qual é a
Lei suprema e todos nós já a conhecemos. Não haverá surpresas de
última hora, não haverá improvisações ou enganações. Tudo já
está estabelecido.
A nossa grande
esperança é que o Pai, conhecendo as nossas fraquezas, como justo
Juiz irá avaliar não o que dizemos e fazemos, mas a nossa
consciência, a nossa personalidade mais profunda. Nós até podemos
enganar os outros, mas a Deus ninguém engana. E na Sua infinita
misericórdia, Ele saberá atribuir a cada um a merecida recompensa.
Certo dia, eu li uma mensagem escrita por um Padre, a qual me trouxe
uma luz intelectual muito importante. Ele disse que a Igreja afirma
que existe o inferno, mas não afirma que existe alguém lá, porque
isso é mistério que só a Deus cabe conhecer. Já disse São Paulo:
onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5, 20). Por que
haveríamos de temer Aquele que sabe tudo de nós desde sempre? A
incerteza é apenas da nossa parte, porque para Ele, tudo já está
perfeitamente esclarecido.
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