COMENTÁRIO LITÚRGICO
– DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE – TRINDADE IMENSA E UNA -
26.05.2013
Caros Confrades,
A liturgia celebra hoje
a festa da Santíssima Trindade, encerrando o núcleo temático do
tempo pascal iniciado com o domingo da Ressurreição e passando pelo
domingo de Pentecostes. A partir do próximo domingo, retornam os
domingos do tempo comum. O hino litúrgico cantado hoje no ofertório
começa com esta invocação: ó Trindade imensa e una, que foi o
tema que escolhi para este comentário.
A fé na Santíssima
Trindade é o dogma fundamental do cristianismo, o grande mistério
revelado por Cristo, aquele que deu mais trabalho para os apóstolos
e as primeiras comunidades cristãs de assimilá-lo. Antes da vinda
de Cristo, o conhecimento da divindade era unipessoal pessoal apenas,
o Deus dos patriarcas. Jesus Cristo veio então revelar que a
divindade é trina. Foi preciso gastar muita catequese para que os
apóstolos aceitassem essa ideia. Compreendê-la era impossível,
tanto para eles quanto para nós, porque somente pela revelação
divina esta verdade nos foi confiada e é nela que se fundamenta a
nossa fé.
Conforme já tive
oportunidade de esclarecer anteriormente, os conceitos de revelação
e mistério se atraem mutuamente. O mistério é aquela verdade que a
nossa razão não consegue alcançar, mas que nos é esclarecida pela
revelação. A discussão sobre a Trindade ocupou muito tempo nas
primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas
doutrinas depois consideradas heréticas, porque não admitiam a
mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas
doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o
arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de
nome Ario, ensinava que Cristo é filho de Deus, mas não é igual a
ele, seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que
Cristo tinha apenas uma natureza, a divina, e a sua humanidade era
apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível.
Essas doutrinas, além de outras menos divulgadas, dividiam os
primeiros núcleos do cristianismo e eram motivo de muitas
discussões. Tudo porque os teólogos de então tentavam compreender
racionalmente a fé na Trindade.
A preocupação com as
divisões internas nas comunidades era tamanha que a questão levou à
convocação de um concílio para discuti-la, tendo isto sido
definido no Concílio de Nicéia, em 325, quando os padres
conciliares redigiram o “símbolo dos apóstolos”, a oração do
Credo, sintetizando a doutrina oficial, para que ficasse mais fácil
de ensiná-la ao povo cristão. Esta oração foi depois melhorada no
Concílio de Constantinopla, em 381, porque no concilio anterior não
ficara definida claramente a natureza do Espírito Santo. Assim é
que o Credo é também chamado de símbolo
niceno-constantinopolitano, porque sua redação passou pelos dois
concílios. Em relação ao Filho, o Concílio de Nicéia definiu que
o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras
até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença
para explicar que o mundo, o ser humano, as coisas em geral foram
criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual
acentua que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele
gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do
Criador. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de
Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não
utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de
uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente,
afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão
poderosa, torna-se outra pessoa divina. A “palavra” se fez carne,
diz o evangelista João. Observemos que João afirmou isso lá pelo
ano 100, ou seja, esse entendimento sobre a natureza do Filho como
Verbo de Deus já era conhecido naquela época. E também afirma-se
que o Espírito é o Amor do Pai pelo Filho que, de tão poderoso,
torna-se também outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente
este grande mistério, que a nossa potência racional não consegue
alcançar, mas apenas a fé nos dá esta certeza.
Na primeira leitura
deste domingo, lemos uma espécie de autobiografia da sabedoria: “Fui
gerada quando não existiam os abismos, quando não havia os
mananciais das águas, antes que fossem estabelecidas as montanhas,
antes das colinas fui gerada. ”
(Provérbios 8, 24-25). Lembremo-nos de que o livro dos Provérbios
faz parte do Antigo Testamento, quando ainda não se falava da
Trindade, então a Sabedoria se confundia com o próprio Javeh, ela
está com Ele desde o início dos tempos. A sabedoria era como o
“mestre de obras” divino, por ela Javeh fez todas as coisas. A fé
dos antigos Patriarcas não tinha elementos para associar a Sabedoria
ao Filho e ao Espírito, por isso a concentrava totalmente na figura
de Javeh, mas com uma plenitude absoluta. O
Senhor me possuiu como primícia de seus caminhos, antes de suas
obras mais antigas, continua o
Livro dos Provérbios, então podemos associar a Sabedoria como a
própria Palavra (Verbo), que também estava junto do Pai desde o
princípio dos séculos. O Filho não foi gerado para tornar-se
humano. Ali aconteceu a encarnação da Palavra, mas esta já existia
desde toda a eternidade. Daí o Concilio de Nicéia ter afirmado que
Cristo foi gerado, não criado. Antes que o mundo existisse, o Filho
já existia. E com a existência do Filho, deu-se também a
existência do Espírito. Portanto, a Trindade já existia desde toda
a eternidade. O conceito “gerado” foi inspirado no próprio texto
do evangelho de João, que se diz em latim “Verbo caro factum est”
(o Verbo se fez carne), mas no grego, a mesma frase está escrita
assim: “Logos sarx eghénneto”. Eghénneto é a voz passiva do
verbo “ghennaô”, que significa “gerar”. Aí o Concilio de
Nicéia foi buscar o vocábulo correto para enunciar a origem do
Filho.
Na segunda leitura, de
Paulo aos Romanos (5, 1-5), o Apóstolo ensina que “estamos
em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo...
porque
o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado. ” Paulo
escreveu isso nos primeiros anos após a morte de Cristo, a doutrina
da Trindade ainda estava em fase de elaboração, daí o seu
ensinamento acerca da Trindade não ser tão direto como no evangelho
de João, escrito muitos anos depois. Porém, vê-se o modo como
Paulo demonstra a interligação entre as três pessoas divinas: o
Pai criador, o Filho mediador, o Espírito que nos inunda. A
comunidade de Roma, a quem Paulo se dirigia, era a mais eclética de
todas pela própria condição da cidade, que era então a verdadeira
capital do mundo e onde viviam pessoas das mais diversas
procedências, costumes, idiomas e também crenças. Sem deixar de
considerar que também, naquela época, o cristianismo era uma
religião proscrita, perseguida, e só podia ser ensinada e praticada
às escondidas. Paulo precisou utilizar a sua sabedoria para
apresentar a fé na Trindade aos romanos de uma maneira que fosse
mais apropriada para ser aceita. Por isso, ele explica da forma mais
didática possível esta doutrina. Em Roma, havia muita influência
da cultura grega nas classes sociais mais elevadas, que eram o
público preferencial da pregação de Paulo, dada a sua formação
acadêmica. Paulo atendia às pessoas mais cultas, enquanto Pedro e
os outros atendiam às outras comunidades.
O cântico litúrgico,
de autoria da Irmã Miria Kolling, sintetiza de forma bem
compreensível esta complexa doutrina: “Ó Trindade
imensa e uma, vossa força tudo cria, vossa mão
que rege os tempos, antes deles existia.” A Trindade é
imensurável, maior que o mundo, sabemos que o mundo não tem
tamanho, a Trindade é ainda maior. A Trindade criou o mundo com sua
força potentíssima e existe antes de tudo isso. Belo verso que nos
serve de inspiração para meditar sobre a Trindade santa. Não é
sem propósito que todas as coisas que iniciamos, sempre o fazemos em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Foi na fé desta Trindade
que fomos batizados, é na fé da Trindade que a nossa religiosidade
se sustenta. Sempre que fizermos o sinal da cruz, estaremos renovando
a nossa fé na Trindade imensa e una. E, para concluir, uma breve
lição de S. Tomás de Aquino: “A
fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a
trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a
substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a
do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna
a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.”