COMENTÁRIO LITÚRGICO
– DOMINGO DE PENTECOSTES – 19.05.2013 – DONS DO ESPÍRITO
Caros Confrades,
O ano litúrgico nos
traz novamente à celebração do domingo de Pentecostes. A vinda do
Paráclito confirma as promessas de Cristo aos apóstolos e marca o
início oficial da 'ekklesia', a comunidade das pessoas de boa
vontade, que acreditam n'Ele e se responsabilizam por levar adiante a
sua doutrina, ou seja, essas pessoas somos nós. Do seu início em
Jerusalém, cujo anúncio público se deu nesta efeméride, até sua
chega a Roma, então capital do mundo, especialmente por obra de
Paulo, o cristianismo passou de uma religião perseguida à religião
predominante no mundo romano. Na semana passada, foi celebrado o
aniversário de 1.700 anos do Edito de Milão, pelo qual o imperador
romano Constantino decretou a liberdade religiosa no seu império,
contribuindo dessa forma para a divulgação aberta da religião
cristã, que até aquela ocasião se disseminava à boca miúda e em
lugares escondidos, sobretudo nas conhecidas catacumbas. Essa
hegemonia social e política do cristianismo no mundo romano trouxe
efeitos positivos e negativos sobre os mais diversos setores da vida
cotidiana, ultrapassando os limites da pura convicção religiosa e
passando para a dimensão da cultura geral – ética, política,
jurídica, econômica. Somente um estudo desapaixonado da história
pode mostrar a evolução desse contexto complexo, que nós recebemos
através da colonização dos portugueses.
Não podemos esquecer,
portanto, que o fenômeno Pentecostes vai muito além da 'fundação'
oficial da Igreja de Cristo, pois todos os desdobramentos inerentes a
isso vieram como consequência inelutável e inevitável, marcando
para sempre a história da humanidade. Refletir sobre Pentecostes não
é apenas uma tarefa de cunho religioso missionário, mas penetra
necessariamente no íntimo da nossa consciência coletiva, que foi
formada sob as fortes influências dos movimentos eclesiais, desde a
primeira missa do Frei Henrique de Coimbra. O Papa Francisco, nesta
festa de Pentecostes, celebrou a missa campal para centenas de
milhares de peregrinos presentes na Praça de São Pedro,
representantes dos vários movimentos eclesiais de todo o mundo, uma
festa ao mesmo tempo una e plural. Os movimentos eclesiais são o
mais nítido resultado da ação concreta dos dons do Espírito. O
mesmo Papa Francisco, que não perde a capacidade de a cada dia nos
surpreender com algo novo, fez uma advertência numa homilia da missa
que celebrou, alguns dias atrás, para os estudantes da Pontifícia
Universidade Lateranense e abordou o tema da fofoca na Igreja. Vejam
o que disse este inspirado Papa: “"Como se fofoca na
Igreja! Quanto fofocamos, nós cristãos! A fofoca é precisamente
esfolar-se, certo? É maltratar-se mutuamente. Como se se quisesse
diminuir o outro, não? Em vez de crescer eu, faço que o outro seja
diminuido e me sinto bem. Isso não está bem! Parece agradável
fofocar... Não sei porque, mas a pessoa se sente bem. Como uma bala
de mel, não é? Você come uma – Ah, que bom! – E depois outra,
outra, outra, e ao final fica com dor de barriga. E por quê? A
fofoca é assim: é doce no começo e depois acaba contigo, acaba com
a tua alma! As fofocas são destrutivas na Igreja, são
destrutivas... É um pouco como o Espírito de Caim: matar o irmão,
com a sua língua; matar o seu irmão!” ”
Vejam que maravilha,
nada de linguagem teológica acadêmica, nada de palavrório erudito,
mas linguagem simples, facilmente compreensível. E direta. Sabem a
quem eu acho que o Papa estava se dirigindo? Aos diversos movimentos
eclesiais que já estavam se reunindo em Roma e que criticam uns aos
outros, cada um querendo ser o melhor e achando que o outro é
inferior; ou que o seu próprio está correto e o outro está errado.
Movimento X quer se sobressair nas atividades paroquiais, para assim
ganhar mais adesões e vangloriar-se de ser um grupo majoritário,
tendo como consequência mais poder dentro da paróquia. Meus amigos,
isso é o anti-pentecostes, é o desconhecimento total dos dons do
Espírito, é a negação da liberdade do Espírito, que sopra onde
quer. Eu entendi dessa forma o sermão do Papa. Ele não iria falar
isso na Praça de São Pedro, porque seria indelicado. Mas ele sabe
das fofocas que existem nas sacristias e corredores eclesiásticos,
então ele fez este pronunciamento num outro evento, mas ele sabia
que a mensagem terminaria chegando aos seus destinatários. Com essa
atitude, eu entendo que o nosso Papa considera a unidade na
diversidade a grande marca da Igreja contemporânea. Por muitos
séculos, a Cúria Romana se aboletou no Direito Canônico para
obrigar todos os fiéis a seguirem seus rigorosos preceitos, tentando
a qualquer custo produzir, à força, a unidade dos cristãos no
mundo inteiro. O que conseguiu foi mais desunião. Ninguém comparece
a uma sessão de diálogo portando armas, é o contrassenso mais
funesto e insano. Ninguém chega a uma reunião onde estão presentes
pessoas com ideias diferentes e diz: vamos dialogar, mas todos terão
de concordar comigo. Pois bem, infelizmente, foi assim que as nossas
autoridades eclesiásticas fizeram, muitas vezes, quando promoviam
reuniões com as diversas divisões religiosas. O Concílio Vaticano
II veio chamar a atenção no sentido de que não é assim, contudo,
muitos pastores pós-conciliares continuaram a agir do modo antigo.
As últimas notícias demonstram que o Papa Francisco está tentando
modificar isso e tem valorizado muito o diálogo inter-religioso.
Basta acompanhar as notícias eclesiásticas para se perceber isso.
Meus amigos, a teologia
ensina que os dons do Espírito são 7: sabedoria, entendimento,
conselho, fortaleza, ciência, piedade, temor de Deus. Eu me atrevo a
dizer que são muito mais e me firmo numa questão bem simples:
ninguém pode limitar o poder do Espírito, não se pode reduzir toda
a atividade própria do Espírito em sete ações. A fé é o
principal dom do Espírito. Diz São Paulo na carta aos Coríntios,
lida hoje (1Cor 12, 3): ninguém pode dizer “Jesus é o Senhor”
senão pelo Espírito. São Paulo não ousou quantificar os dons do
Espírito, como fizeram depois os teólogos medievais. Ele diz que há
diversidade de dons, diversidade de ministérios, diferentes
atividades, mas um mesmo é o Espírito. É a presença dos diversos
carismas (kharisma, em grego, é um substantivo derivado do verbo
khairôw = estar alegre, ter motivo de alegria; kharisma é obséquio,
dom, marca de felicidade). É isso que o Espírito proporciona.
Carismático não é apenas um movimento que desse modo se
autodenomina, carismáticos somos todos nós que sentimos na alma a
felicidade que provém do Espírito. Carismático é todo aquele que
serve a Deus com alegria, realizando na fé e na caridade as ações
que o Espírito lhe inspira a fazer.
Referindo-me agora às
leituras deste domingo, gostaria de comentar que é algo interessante
o fato de que nos evangelhos não há menção àquela cena
cinematográfica do vendaval e das línguas de fogo pairando sobre os
apóstolos. O próprio Lucas, autor dos Atos e do terceiro evangelho,
menciona isso apenas nos Atos, não o incluiu no evangelho. E o
apóstolo João, dos evangelistas o único presente em corpo e
espírito naquela ocasião, silencia a respeito disso. João menciona
apenas que Cristo “soprou” sobre eles e disse: recebei o Espírito
Santo (Jo 20, 22). A explicação que vejo para este fato é a
seguinte. Os evangelhos foram escritos com base em textos esparsos,
que circulavam pelas primeiras comunidades cristãs, cuja autoria não
foi preservada. É consenso entre os exegetas o fato de que houve
fontes comuns para os três primeiros evangelhos, chamados por isso
de “sinóticos”, o que significa “resumo”, porque eles foram
redigidos com base em textos já existentes, os quais foram por eles
compilados. Os estudiosos chamam a essa “fonte” desconhecida de
“fonte Q” (inicial da palavra alemã “Quelle” que significa
fonte, assim me ensinou o Padre Uchoa). Depois de ter escrito o seu
evangelho, Lucas passou a viajar acompanhando as missões de Paulo e
Barnabé pelas várias comunidades nos arredores de Jerusalém e,
provavelmente, deve ter ouvido outros relatos de tradições orais,
que ele incluiu nessa espécie de “relatório” de viagem, que tem
o nome de Atos dos Apóstolos. Aliás, o título grego desse livro é
bem mais sugestivo do que a palavra “atos” significa em
português. Em grego diz-se “práxis”, palavra que tem o sentido
de costume, vida cotidiana, modo de vida. A “praxis” era o relato
do dia a dia dos apóstolos em missão, suas lutas e vitórias, mas
também seus fracassos e problemas, porque a vida não é composta
apenas de sucessos.
Eu gosto quando o meu
dia de cantar na missa dominical da paróquia coincide com a festa de
Pentecostes. Foi assim no ano passado e também neste ano. Novamente,
eu não perdi a oportunidade de incluir no roteiro dos cânticos o
Veni Creator Spiritus, em latim mesmo, original, gregoriano, aquele
que nós conhecemos. E lá estavam cantando conosco o nosso confrade
Helder (Frei Jacinto) e sua esposa Julieta, compartilhado a emoção.
Que o Espírito venha mesmo visitar nossas mentes e infundir o amor
em nossos corações.
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