COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 6º DOMINGO DA PÁSCOA – GUARDAR A PALAVRA – 05.05.2013
Caros Confrades,
As leituras deste 6º
domingo da Páscoa nos trazem para reflexão um tema muito
importante: guardar a palavra de Cristo. Quem a guarda, o Pai ama e,
neste guardador, o Pai e o Filho fazem morada. Como é “guardar a
palavra”? Será segui-la à risca, como queriam os judeus
convertidos que não abandonavam a lei de Moisés? Será andar com
ela embaixo do braço, como fazem muitos dos nossos irmãos? Será
'decorar' passagens para ficar passando lição de moral nos outros?
Bem, desde os primeiros tempos do cristianismo, a Igreja cristã de
Jerusalém já deu ensinamento e exemplo do que significa guardar a
palavra, ser fiel a ela.
Temos na primeira
leitura, retirada do livro dos Atos (15, 1-2) a narração do
cronista sagrado Lucas acerca da grande polêmica que se instalou
entre os recém-convertidos judeus e pagãos, acerca da observância
da lei de Moisés. Os judeus afirmavam que “Vós
não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a
Lei de Moisés”,
ensinando isso em Antioquia e conturbando a pregação de Paulo e
Barnabé naquela região. Vimos, no domingo passado, o trecho da
leitura em que Paulo foi até apedrejado nesta cidade, provavelmente
em decorrência dessas divergências. Para que não ficasse apenas no
entendimento deles dois, resolveram levar a questão para ser
discutida com os demais apóstolos e os anciãos da Igreja de Cristo
em Jerusalém, onde de fato o cristianismo teve início. A resposta
foi enviada através dos porta vozes Judas e Silas, em nome da
comunidade hierosolimitana: “Porque
decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo,
além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas
aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões
ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas.”
(Atos 15, 28-29)
Permitam-me fazer uma
análise gramatical desta frase, cuja tradução me pareceu confusa.
Fui conferir nos originais grego e latino e passo a comentar. Com
meus parcos conhecimentos do idioma grego antigo, eu entendi que são
duas as exigências da Igreja de Jerusalém aos pagãos
recém-convertidos: abster-se das carnes sacrificadas aos ídolos,
seja por meio de sangramento ou de sufocação, e das uniões
ilegítimas (São Jerônimo usa o termo fornicatione e no grego a
palavra é pornéias.) Pois bem, do modo como está traduzido no
texto da CNBB, parece que são coisas diferentes as carnes
sacrificadas e as carnes de animais sufocados... com todo respeito,
não foi assim que eu entendi. Pareceu-me mais coerente o modo como
apresentei acima. Mas, repito, é a minha compreensão pessoal, eu
não sou especialista na língua grega, faço uma compreensão dentro
do contexto. Enfim, a igreja de Jerusalém entendeu que não havia
necessidade de circuncisão, pois afinal, esta exigência faz parte
da aliança antiga e a nova aliança celebrada por Cristo reformulou
toda a lei e os profetas.
Vemos aqui nesta
discussão dos judaizantes um modo de “guardar a palavra” sendo
obediente a ela, mas sem aquele rigorismo da observância literal.
Sabiamente, a Igreja de Jerusalém entendeu que não devia exigir dos
novos cristãos nada além do necessário, ou seja, do essencial. E
este essencial se resumia ao abandono da religião pagã (idolatria)
e à recusa do adultério (fornicatione). E diz isso de uma forma bem
contundente: “decidimos, o Espírito Santo e nós...” Não foi
uma decisão assim na base das opiniões pessoais e do apego à
tradição, mas após a invocação das luzes do Espírito Santo. A
autêntica guarda da palavra não ocorrerá se não soubermos, a todo
momento, deixar o Espírito falar e manter os ouvidos atentos para
ouvi-Lo. Guardar a palavra é ser fiel preferencialmente ao seu
sentido, do que à sua literalidade. Guardar a palavra é ter
discernimento para distinguir o que é essencial e deve ser
obedecido, do que é acidental e pode ser comutado em diversas formas
de proceder. Em suma, guardar a palavra é agir com sabedoria. E
sendo a sabedoria um dos dons do Espírito, somente o Espírito pode
conferir ao crente esta verdadeira sabedoria, para que ele seja
sempre um fiel guardador da palavra, que é o próprio Verbo de Deus.
Na segunda leitura, do
Apocalipse (21, 10-14), o apóstolo João faz um interessante
trocadilho com o numero doze, em relação à cidade de Jerusalém,
conforme a visão que teve. A nova Jerusalém, que desceu do céu, de
junto de Deus, imagem da Igreja de Cristo, brilhava como uma pedra
preciosíssima e estava cercada com uma alta muralha, que possuía
doze portas, cada uma com o nome de uma das tribos de Israel. E esta
muralha se assentava sobre doze alicerces e em cada um destes estava
escrito um nome dos doze apóstolos de Cristo. Vejamos que curiosa
imagem João nos apresenta, comparando a Jerusalém antiga com a
nova, transmitindo a ideia de que a lei antiga prevalecia,
simbolizada esta com as doze portas com os nomes dos filhos de Jacó,
no entanto, a muralha onde estavam estas portas estava construída
sobre os doze alicerces, estes representados pelos doze apóstolos.
Os doze apóstolos representam, portanto, a nova aliança, que
sustenta a antiga e que lhe confere uma nova funcionalidade. A Igreja
de Cristo é o alicerce desta nova aliança.
Podemos ver, nesta
imagem, uma outra forma de guardar a palavra, qual seja, colocando a
lei antiga sobre novos fundamentos, compreendendo a lei antiga de
acordo com os novos ensinamentos deixados por Cristo, através dos
seus apóstolos. Cristo disse mais de uma vez que não veio revogar a
lei de Moisés, e sim cumpri-la. Mas esse cumprimento se faz em um
novo estilo, não mais naquele rigor vazio do formalismo dos
fariseus, para quem a realização dos atos exteriores bastava para
significar o cumprimento da lei. Um exemplo disso está na resposta
de Cristo, quando alguém lhe perguntou se era necessário ir até
Jerusalém para adorar o Senhor. Respondeu Ele: “está chegando a
hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão
o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai
procura.” (Jo 4, 23) Guardar a palavra, portanto, é observar o seu
comando intrínseco, não meramente fantasiar-se externamente para
que os outros vejam. O que está escrito servirá sempre de guia e
referência, porém pelo Espírito a nossa mente orante irá
compreender aquilo que a palavra escrita requer de nós que
realizemos.
O corolário disso está
na pregação de Cristo, recolhida pelo evangelista João (14, 23),
quando diz: “'Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e
nós viremos e faremos nele a nossa morada.”
E prossegue explicando isso: “E
a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou. […]
o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará
tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito.”
(14, 24-26). Aqui está, meus amigos, o ponto máximo da guarda da
palavra: o guardador se torna a própria morada da Santíssima
Trindade. O guardador não é um simples custódio, aquele que detém
a guarda da coisa. Guardador é o executor, aquele que conhece a
palavra e a pratica. É isso que Deus quer de nós. Teoricamente, é
para isso que existe a Igreja de Cristo, com o seu corpo de pastores,
sucessores dos apóstolos, que ficaram com o papel de conduzir a
comunidade da fé na autêntica guarda da palavra, alicerces que são
do seu conteúdo. Lamentavelmente, ao longo do tempo, essa missão
sublime e fundamental dos sucessores dos apóstolos teve seus
momentos de incerteza e de vacilação, deixando a comunidade leiga
numa situação de insegurança e de fácil cooptação por falsos
pastores. Quantos irmãos afastam-se da Igreja por não sentirem, da
parte das lideranças eclesiásticas, a necessária sabedoria que
provém do Espírito, enveredando por detalhes circunstanciais e
falaciosos, deixando de repassar aos fiéis os verdadeiros alicerces
da sua fé.
Talvez alguns de vocês
estejam se lembrando, nesse contexto, do recente episódio ocorrido
na Igreja de Bauru. Não quero fazer análise de mérito do fato, até
porque tudo o que sei é resultado da divulgação pela imprensa. Mas
certas atitudes da nossa hierarquia eclesiástica nos deixam
seriamente preocupados, porque, num momento, funciona o
“laissez-faire”; noutro, entra em ação a guilhotina
revolucionária. Onde fica o espaço para ação da sabedoria que
provém do Espírito? Será esse o tipo de guarda da palavra que
Cristo espera dos seus seguidores? Deixo apenas a referência para
reflexão.
Que o Espírito ilumine
sempre e cada vez mais as autoridades eclesiais e todos nós, para
sermos fiéis guardadores da palavra, mantendo sempre nossos ouvidos
atentos à Sua sabedoria.
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