domingo, 30 de junho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SÃO PEDRO E SÃO PAULO - O BOM COMBATE - 30.06.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – SÃO PEDRO E SÃO PAULO – O BOM COMBATE – 30.06.2013

Caros Confrades:

A liturgia dominical desta data celebra a festa dos santos Pedro e Paulo, baluartes dos inícios do cristianismo e da igreja primitiva, cada um de acordo com o seu carisma. Pedro liderou a igreja em Roma, que além de ser a capital do império romano, era uma espécie de capital do mundo daquela época. Paulo desenvolveu intensa e fecunda catequese nas comunidades gregas, contribuindo de forma decisiva para a divulgação do cristianismo e para a sua consolidação doutrinária.

À parte as polêmicas sobre o primado de Pedro, que não é aceito pelas igrejas católicas orientais, Pedro e Paulo tiveram uma atuação muito importante nos primeiros tempos do cristianismo, desde aquele célebre discurso de Pedro no dia de Pentecostes, ouvido por centenas de pessoas que estavam em Jerusalém e o ouviram nas suas próprias línguas, apesar de Pedro ter falado em aramaico, que era o seu idioma pátrio, até o miraculoso episódio da sua liberação de dentro da prisão do rei Herodes, pela mão do anjo do Senhor. Paulo teve o seu Pentecostes particular e dedicou todas as suas forças à pregação da mensagem cristã, de modo que, encontrando-se preso e sendo levado para Roma, onde sabia que aconteceria o final de sua tarefa, resumiu a sua missão na conhecida frase: combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. (2Tim 4, 7)

A libertação de Pedro de dentro da prisão do rei Herodes é um episódio minuciosamente narrado por Lucas, nos Atos dos Apóstolos, com o intuito de demonstrar o tamanho da fé da comunidade romana no seu lider. O rei Herodes sabia da importância hierárquica de Pedro e o mantinha na prisão com um esquema especial de segurança: quatro grupos de quatro soldados cada um, além dos guardas que ficavam na porta da prisão. E ainda por cima, Pedro ainda estava amarrado com duas correntes, mas nada disso adiantou naquela ocasião em que Deus mandou o anjo para libertá-lo. O escritor sagrado destaca, neste episódio, a importância da oração da comunidade pelo seu pastor, fato que deve servir de exemplo para todos nós também nos dias de hoje. É muito comum as pessoas falarem mal dos padres e bispos quando, em certas ocasiões, se comportam de um modo não esperado ou até não condizente com o seu estado clerical. A narração de Lucas procura mostrar a integração entre a comunidade e Pedro, destacando que a oração dos fiéis foi decisiva para que Deus mandasse o seu anjo para libertar Pedro da prisão. Ao invés de criticarmos os nossos pastores, devemos rezar por eles, para que Deus os ilumine e liberte, como fez com Pedro.

Sobre esta figura do anjo, é interessante fazer um observação. É frequente encontrarem-se nos textos bíblicos referências ao “anjo do Senhor” como uma expressão metafórica para indicar algum fato extraordinário que indica uma intervenção divina no mundo humano. Por causa dessas referências e também por causa do agilidade de sua atuação, os artistas medievais criaram aquela figura de um ser com forma humana e dotada de asas, que é a imagem clássica do anjo. Também com fundamento nessas descrições bíblicas, os teólogos medievais criaram o conceito do anjo como um ser inteligente, tal como o ser humano, porém com uma inteligência privilegiada pelo fato de não ter a limitação da matéria corporal. Os anjos teriam, desse modo, um intelecto potencializado, que lhes permitiria compreender melhor os fatos e também contemplar a face divina, podendo agir seguindo diretamente as ordens do Pai. É desse conceito de anjo que deriva também o conceito do demônio, enquanto anjo desobediente, que tenta seduzir os seres humanos para fazerem o mal.

No caso da narração da libertação de Pedro, Lucas nos diz (At 12, 9) que Pedro estava sem saber se aquilo acontecia na realidade ou se ele estava apenas tendo uma visão. Imaginemos a cena: Pedro dormia e despertou com uma luz, que no entanto, não despertou os soldados que dormiam ao lado dele; as correntes que o prendiam se soltaram e o barulho delas não despertou os soldados nem chamou a atenção dos demais guardas; os portões abriram-se sozinhos diante dele e os guardas nada perceberam. Pedro via tudo aquilo acontecendo, mas não sabia se era apenas um sonho ou realidade. Somente quando se viu do lado de fora e livre foi que tomou consciência da sua libertação miraculosa. Diz o texto que isso aconteceu quando “o anjo o deixou”. Não é necessário grande esforço mental para compreender que, a rigor, não havia a necessidade de que um ser incorpóreo estivesse com ele para que a força divina se operasse. Podemos muito bem substituir a expressão “anjo do Senhor” por “mão do Senhor” e deixar todo o restante do texto sem alteração, para que o mesmo sentido se mantivesse. Não estou, com isso, querendo afirmar que os anjos não existem. A teologia ensina até uma hierarquia entre eles (arcanjos, querubins, serafins, tronos, dominações, potestades), uma descrição que imita, na esfera celeste, uma certa ordem que havia nas cortes reais desde os tempos antigos. Por outras palavras, são formas metafóricas de simbolizar umas espécies de “soldados” divinos que obedecem as ordens do Criador, assim como os soldados humanos executam as ordens dos soberanos terrestres. Ao meu ver, a teologia católica faria bem se deixasse de representar os seres celestes com categorias conceituais ligadas a reino, trono, majestade, conceitos esses típicos da sociedade medieval, que já não encontram eco nos modelos da organização das sociedades contemporâneas.

A leitura do evangelho de Mateus (Mt 16, 13-19) traz aquele célebre diálogo de Jesus com Pedro, no qual ele lhe dá as “chaves do reino do céu”, apelidando-o ainda de “pedra” sobre a qual se construirá a igreja, texto que serve de fundamento para a controversa doutrina do primado de Pedro. Com efeito, os outros evangelistas trazem esse diálogo de Jesus com Pedro, porém sem todos esses detalhes. Nem mesmo Lucas, que era um escritor muito minucioso, faz referência tão detalhada, limitando-se a dizer que Ele é o Cristo de Deus. (Lc 9, 18). E Mateus completa o discurso de Cristo dizendo que “o poder do inferno nunca poderá vencer” a Igreja. O texto latino é um pouco diferente, ao dizer “portae inferi non praevalebunt adversus eam”, ou seja, as portas infernais não prevalecerão contra ela. Essa frase me faz lembrar uma historinha que contam, envolvendo Napoleão Bonaparte. Quando ele foi coroado imperador da França, após a Revolução Francesa, ele promoveu um movimento de desmoralização da Igreja francesa, que passava por um período de grande dificuldade, quando muitos dos seus membros haviam se envolvido com a Revolução e os bens eclesiásticos haviam sido confiscados, parecia que a Igreja iria sucumbir. Napoleão teria dito, então, ao Bispo de Paris, que um dos objetivos dele (Napoleão) seria acabar com a Igreja. Ao que o Bispo teria respondido: Majestade, há séculos alguns padres e bispos vêm tentando isso e não conseguiram... De fato, o que se vê, ao estudar o desenvolvimento histórico do cristianismo, é que a instituição eclesial já experimentou inúmeras crises, algumas gravíssimas, mas sempre conseguiu superar a todas. Inclusive, na nossa época, mais uma dessas graves crises está ameaçando a Igreja, mas quando menos se pensa, o Espírito manda um Papa do tipo de Francisco, para dar andamento a um processo de restauração, como este Papa vem fazendo, sem alardes mas com muita segurança e firmeza. Que Deus o ajude a cumprir o seu propósito.

Bem, voltando ao tema, podemos concluir que Pedro e Paulo são exemplos para nós de combatentes do bom combate, cada um na sua especificidade. Os estudiosos comentam sobre divergências doutrinárias entre Pedro e Paulo, que eram pessoas de culturas bem diferentes e também de formação diversa, no entanto, dentro dessa diversidade de abordagens o cristianismo, desde o início, tem se desenvolvido e se afirmado. Este é mais um ponto para nossa reflexão,quando nos deparamos com a existência de tendências e grupos até rivais dentro do catolicismo, cada qual querendo se destacar como o mais autêntico. Acima da rivalidade dos grupos e ao lado de qualquer divergência de compreensão está o evangelho de Cristo com a sua mensagem divina e verdadeira, aberta à compreensão de cada um de nós, dentro das peculiaridades de cada época. Independente deste ou daquele grupo, o que nos deve guiar sempre deverá ser a fiel e esclarecida compreensão da mensagem de Cristo, que tem a característica divina de uma perene atualidade. Que o Espírito nos ajude a encontrar sempre o melhor caminho para seguir a Cristo com fidelidade.


domingo, 23 de junho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - O CRISTO DE DEUS - 23.06.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O CRISTO DE DEUS – 23.06.2013

Caros Confrades,

Neste 12º domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas destacam a relação entre a cruz e o batismo, através da ação salvífica do Cristo de Deus, como assim Jesus foi definido por Pedro, pela inspiração do Espírito. Pela cruz, Jesus nos abriu as portas da salvação e pelo batismo, nós fomos incorporados a Cristo para, através dEle, termos acesso às bem aventuranças que a Sua cruz conquistou para nós.

A primeira leitura traz um texto que é bastante raro na liturgia, escolhido do livro do profeta Zacarias. Este profeta é o pai de João Batista, cuja festa é celebrada amanhã, 24 de junho, e é também aquele que ficou mudo durante toda a gestação do menino, por haver duvidado da gravidez de sua esposa idosa, quando isto lhe foi anunciado pelo anjo do Senhor. No texto lido neste domingo, temos a profecia de Zacarias acerca do futuro Messias (Zc 12, 10), quando ele diz que os mesmos que causaram a morte deste irão pranteá-lo com tão profunda dor, quanto alguém pranteia a morte de um filho único ou primogênito. Este texto é reproduzido na liturgia do tríduo pascal, onde se lê que “contemplarão aquele a quem traspassaram”. Trata-se de um prenúncio do Messias sofredor, uma longínqua antecipação do sacrifício de cruz, bem antes do nascimento do próprio precursor, João Batista.

No versículo seguinte (Zc 12, 11), o profeta faz referência a um dia tão calamitoso quanto aquele em que o Messias irá ser imolado, recordando que “haverá um grande pranto em Jerusalém, como foi o de Adadremon, no campo de Magedo.” Os exegetas não têm certeza sobre qual fato o Profeta se refere, mas com certeza teria sido algo que ocasionou grande comoção naquela época, algo que teria vitimado alguém inocente de forma injusta e que, por esse motivo, teria havido muita tristeza entre o povo. Este mártir inocente era a prefiguração do futuro Messias, que também seria inocentemente imolado. Esta primeira leitura, portanto, traz uma alusão direta ao sofrimento pelo qual o Messias teria de passar e também à reação de arrependimento que ocorreria entre aqueles mesmos que causaram os sofrimentos. A começar por Judas e pelos soldados responsáveis pela crucifixão.

Na segunda leitura, novamente de Paulo aos Gálatas (3. 26-29), lemos o ensinamento do apóstolo acerca da consequência mais importante que o batismo nos traz, que é o fato de sermos inseridos em Cristo e, com isso, nos tornamos herdeiros de toda a promessa que Javeh fez aos Patriarcas, desde os tempos antigos. “Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. … Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa.” Pelo batismo, nós nos tornamos um em Cristo e isso nos unifica também entre nós, de modo que já não há mais distinção de raça, cor, sexo, origem, classe social, a adesão a Cristo nos torna membros de um só corpo e nos faz todos irmãos. Pela cruz, Cristo abriu para nós o acesso à casa do Pai. Pelo batismo, nos revestimos de Cristo e nos tornamos merecedores de sua graça. Observem que o batismo não apenas nos une a Cristo, mas nos reveste dEle, é muito mais profundo. Daí porque Paulo pôde dizer aquilo que lemos na leitura do domingo passado: “Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim.” (Gl 2, 20) O batismo não apenas nos aproxima de Cristo, mas nos torna “outros Cristos” porque nos insere no seu corpo místico e glorioso. Se formos fiéis a isso, poderemos também repetir com Paulo que é Cristo que vive em nós.

A leitura do evangelho está divida em dois blocos bem distintos. Na primeira parte (Lc 9, 18-21), temos aquela conhecida passagem em que Pedro faz a definição mais perfeita de Jesus, quando responde à interrogação dEle próprio sobre “quem vós pensais que eu sou?” Pedro se antecipa aos demais e responde com determinação: Tu és o Cristo de Deus. Antes, Jesus havia perguntado o que o povo falava a respeito dEle. Talvez algum dos antigos profetas que ressuscitou, era essa a opinião popular a Seu respeito. Quando o evangelista Mateus narra esse mesmo episódio (Mt 16, 13), ele acrescenta outros detalhes que Lucas omite. Lucas diz apenas que Jesus proibiu os apóstolos de dizerem isso para as outras pessoas. Segundo Mateus, nesse momento, Jesus disse ainda que Pedro havia falado aquilo por revelação do Espírito, ou seja, Pedro não teria chegado sozinho àquela conclusão. E é também neste momento que Jesus teria dado a Pedro o primado sobre os demais apóstolos, com aquela famosa frase: Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. Este trecho de Mateus será utilizado posteriormente, no século IV, para fundamentar a tese teológica do trono de Pedro, transformando o Bispo de Roma no chefe supremo de toda a cristandade. Conforme podemos ver na leitura deste domingo, Lucas, que é conhecido por ser um escritor detalhista, não colocou este diálogo no seu texto. Esta tese teológica foi uma das mais polêmicas de toda a história do cristianismo, sendo a responsável direta pela cisão dos Padres gregos, que não admitiam submeter-se à chefia do Bispo de Roma. Lucas é bem mais objetivo e sintético: és o Cristo de Deus, o ungido de Deus, o cordeiro de Deus. E aí encerra o seu discurso.

No segundo núcleo temático deste texto (Lc 9, 22-24), o evangelista mostra Jesus falando sobre a sua paixão aos apóstolos. O Cristo de Deus irá sofrer perseguição pelos chefes do povo, morrerá e depois ressuscitará. Foram várias as vezes em que os apóstolos ouviram Jesus dizendo algo semelhante: sofrer, morrer, ressuscitar, mas provavelmente eles só vieram a entender isso depois que esses fatos aconteceram, depois do fenômeno da cruz. Judas foi um que ficou esperando, até o último momento, que Jesus fizesse uma grande demonstração de poder e liquidasse todos os inimigos de Israel. Este foi o único que expressou o que tinha na mente. Quanto aos demais, não se sabe ao certo. Pedro O negou por três vezes porque não tinha compreendido o alcance daquelas palavras (sofrer, morrer, ressuscitar). João foi outro que se aproveitou do conhecimento que tinha com pessoas do palácio de Pilatos e conseguiu entrar no pretório para tentar ver o que estava acontecendo com Jesus, pois ele também não tinha entendido o sentido daquelas palavras. Aqueles dois discípulos que iam para Emaús também estavam encucados, sem entender o que havia acontecido. De fato, eles estavam desistindo do projeto de seguir a Cristo, porque parecia que tudo tinha terminado. Eles também não entenderam aquelas palavras. Dos demais, não se sabe, porque as reações não ficaram registradas. O certo é que, após a ressurreição e as seguidas aparições de Jesus no meio deles, foi que começaram a juntar as ideias e compreender o que Ele havia dito.

E no final deste discurso, Jesus diz ainda palavras mais incompreensíveis para eles: “quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lc 9, 24). Se eles já não tinham entendido a primeira parte, esse final era ainda mais enigmático. Quem veio trazer a explicação desse enigma foi Paulo, na epístola aos Gálatas, lida no domingo passado (Gl 2, 20): “Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou.” Quem quer salvar a sua vida, isto é, quem quer viver segundo seus próprios desígnios, sem seguir os ensinamentos de Cristo, vai ao final se perder, se destruir. Mas quem se deixar guiar pelos ensinamentos de Cristo, pode parecer que está perdendo o seu tempo e a sua vida, mas pela fé alcançará a salvação. A vida na carne, a vida material não pode fechar-se sobre si mesma, buscando angariar cada vez mais, possuir cada vez mais, desfrutar cada vez mais, porque quem age assim vai perdê-la. A vida material deve ser vivida na fé e na caridade, crendo no Filho de Deus e seguindo os seus ensinamentos. O cristão não abandona a vida material, a vida na sociedade, não recusa a posse dos bens materiais, mas vive tudo isso, possui tudo isso com espírito de solidariedade, utilizando esses bens a serviço dos irmãos. Isso é possível porque, pelo batismo, nos revestimos de Cristo e assim a nossa vida material se constrói numa vivência de fé, sabendo administrar os bens materiais em vista do bem de todos. Que a lição de Paulo aos Gálatas possa se transformar no lema da nossa vida cristã.


domingo, 16 de junho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 11º DOMINGO COMUM - A JUSTIÇA E A LEI - 16.06.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – A JUSTIÇA E A LEI – 16.06.2013

Caros Confrades,

Neste 11º domingo comum, destaco um tema das leituras para a nossa reflexão: a lição de Paulo aos Gálatas (2, 16) - fomos justificados pela fé em Cristo, não pela prática da Lei. Este tema está presente ainda no evangelho de Lucas (7, 36-50), no conhecido episódio da pecadora que lavou os pés de Cristo com suas lágrimas. É um tema que o Papa Francisco tem repetidamente insistido em suas prédicas diárias, que são noticiadas pela internet, sobretudo quando se refere à Cúria Romana.

A lição de Paulo aos Gálatas é taxativa e fundamental: não é pela prática da lei que somos salvos, mas pela adesão ao compromisso proposto por Cristo. A expressão “justificados pela fé em Cristo” não pode ser entendida ao pé da letra, como se a fé intelectualmente considerada fosse bastante. Esse foi o equívoco de Lutero, quando afirmou que “sola fides”, “sola scriptura” garantem a salvação. A fé em Cristo implica o cumprimento dos seus mandamentos, ou seja, precisa se refletir em atitudes práticas, em gestos concretos de caridade e não pode ser apenas uma atitude subjetiva, interior. Esta é, sem dúvida, necessária, porém, insuficiente.

Para entendermos melhor a catequese de Paulo aos Gálatas, devemos recordar o fato já abordado no domingo anterior, a respeito do que aconteceu naquela comunidade. Depois que Paulo havia pregado o evangelho para eles, havia conferido o batismo e fundado a comunidade na cidade, saiu para pregar o evangelho em outros locais. Então chegaram à Galácia os judaizantes, ou seja, os judeus convertidos que deram muito trabalho a Paulo, defendendo a necessidade de continuar cumprindo a Lei de Moisés, para que a mensagem de Cristo tivesse efetividade. Desse modo, era necessário manter a circuncisão, os jejuns públicos, as práticas exteriores tão do gosto dos fariseus, mesmo depois de haverem aderido ao cristianismo. E Paulo dizia a eles que o ensinamento de Cristo havia deixado tudo isso pra trás. Sobre si mesmo, Paulo diz: “foi em virtude da Lei que eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus.” (Gl 2, 19), isto é, depois do evangelho de Cristo, a Lei de Moisés cumpriu o seu objetivo e caducou. Em seguida, Paulo faz a afirmação de maior força e peso: se o cumprimento da lei é que nos garante a salvação, então o sacrifício de Cristo foi vão. E complementa: “ ninguém é justificado por observar a Lei de Moisés, mas por crer em Jesus Cristo, nós também abraçamos a fé em Jesus Cristo.” Trata-se, como podem observar, do conflito entre a lei e a justiça. Não é a lei que salva, mas a justiça de Deus. E esta justiça vem a nós através da fé em Cristo, não pelo cumprimento formal da lei.

Na leitura do evangelho (Lc 7, 36-50), temos a muito conhecida cena da pecadora lavando os pés de Cristo, na casa do fariseu Simão. Vamos tentar imaginar a cena. Um fariseu convida Jesus para almoçar com ele. Ora, esse convite tinha tudo para ser mais uma cilada a fim de apanhar Jesus em algum flagra desrespeitando a lei, como era comum nas atitudes dos fariseus daquele tempo, para assim poderem denunciá-lo formalmente. Na casa de um fariseu, certamente estariam presentes vários outros fariseus, assim a cena teria inúmeras testemunhas. Observem que Lucas, embora seja um escritor muito detalhista, não fez comentários sobre esse aspecto da visita, porque para ele o mais importante era narrar a atitude de Jesus na ocasião. Mas nós podemos fazer um cenário mental da situação. Na minha opinião, foi algo parecido com aquele episódio em que perguntaram a Jesus se era devido pagar o tributo ao imperador romano e ele, como de outras vezes, teve uma saída de mestre: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Neste caso da pecadora, Jesus sabia que algo estava sendo tramado dos bastidores, mas ele não poderia perder aquela oportunidade de, novamente, dar uma lição nos fariseus.

Vejam só. Jesus estava numa casa cheia de convidados, na casa de um fariseu importante na cidade, evidentemente, só podiam entrar ali pessoas autorizadas. Como foi que surgiu aquela pecadora ali ajoelhada diante dele, chorando a seus pés? Obviamente, aquilo foi uma armação, uma “convidada” especial, para colocar Jesus numa sinuca. Digamos que ela houvesse entrado sem ser convidada, não teria sido expulsa pelos empregados do anfitrião? Aquilo não era uma festa pública, era uma ceia reservada para convidados. Então, a presença da pecadora, sem dúvida, era uma intimidação, para ver que reação Jesus teria. Lucas até revela o que estaria se passando na mente do fariseu Simão: Se este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando nele, pois é uma pecadora.' Ora, se um fariseu tivesse contato físico com um(a) pecador(a), teria que ir, logo em seguida, se purificar com as lavagens recomendadas pela Lei de Moisés, assim como eles não se aproximavam da mulher menstruada e também não sentavam na mesa da refeição sem ter antes lavado as mãos. Ter um contato físico, por mínimo que fosse, com uma pecadora pública, era motivo para inúmeros procedimentos purificatórios, a fim de se limpar da impureza.

Pois bem. Este pensamento de Simão devia ser o mesmo dos demais fariseus que se encontravam na sala, só esperando pra ver o que Jesus faria. Se ele afastasse a pecadora, então estaria contradizendo os seus próprios ensinamentos; se ele a deixasse continuar o que estava fazendo, estaria descumprindo a Lei de Moisés, ou seja, de um modo ou de outro, Jesus estaria se colocando numa tremenda “saia justa”. Sabendo do que se passava nos pensamentos dos presentes, Jesus tomou a iniciativa de travar um diálogo com o anfitrião sobre o credor que perdoou os devedores. Simão facilmente concluiu o que Jesus queria ouvir: amará mais o credor aquele que teve o perdão da dívida maior. Apenas para recordar, a palavra “dívida”, naquele contexto, não era somente uma obrigação a ser paga com dinheiro, mas o devedor que não tivesse com que pagar, se tornaria escravo do credor e iria trabalhar para ele até que tivesse pago toda a dívida. Isto é, o próprio corpo do devedor passaria a ser propriedade do credor. Assim era que os fariseus consideravam o pecador em relação a Javeh, era um devedor inadimplente, portanto, Javeh poderia matá-lo ou transformá-lo em escravo de alguém.

Mais uma vez, a estratégia de Jesus foi fantástica, reverteu totalmente uma situação que, à primeira vista, parecia ser-lhe desfavorável. E ainda ironizou na cara do fariseu: tu não me ofereceste água para lavar os pés (como mandava a lei), tu não me deste o ósculo da paz (como mandava a lei), tu não me ungiste com unguento perfumado (como mandava a lei), ou seja, se havia ali alguém descumprindo a lei, era o fariseu, não Jesus. E disse, referindo-se à pecadora: esta mulher lavou os meus pés, deu muitos beijos, ungiu-os com perfume, tudo isso sem dizer uma palavra sequer, apenas chorando e demonstrando arrependimento. Os fariseus ficaram todos de queixo caído, jamais esperavam ouvir aquilo. Jesus “passou na cara” deles que aquela pecadora, além de ter cumprido o que prescrevia a lei, ainda fez tudo aquilo com o coração arrependido e essa atitude interior de conversão, de confissão da sua culpa, de demonstração da fé em Cristo era muito mais importante do que tudo que ela havia praticado externamente. Por isso, os muitos pecados dela tinham sido perdoados. Lucas não continua a história, mas certamente, depois dessa bordoada, os fariseus presentes literalmente perderam a fome.

Meus amigos, convém ainda esclarecer um equívoco que algumas pessoas têm: essa pecadora que lavou os pés de Jesus com lágrimas não é Maria Madalena. Uma tradição machista, surgida logo nos primeiros tempos, divulgou essa ideia, que os biblistas procuram esclarecer. Provavelmente, esse boato teve origem de uma rixa que havia entre Maria Madalena e os apóstolos Pedro e Paulo, por divergências doutrinárias, no início do cristianismo e isso perpassou diversas gerações de leitores, sendo dissipada com os estudos mais recentes. E uma conclusão que podemos fazer sobre o tema da justiça e a lei é que o evangelho é superior ao direito canônico. Existe, entre alguns padres e fiéis católicos, uma mentalidade burocrática de seguir à risca os preceitos canônicos. Sem tirar o valor destes preceitos, não podemos voltar a incorrer no mesmo equívoco em que incorriam os fariseus no tempo de Cristo. A lei existe para o favor do cristão, não é o cristão que vive para a lei.

  

domingo, 9 de junho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 10º DOMINGO COMUM - NASCER DE NOVO - 09.06.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 10º DOMINGO COMUM – NASCER DE NOVO – 09.06.2013

Caros Confrades,

As leituras deste décimo domingo do tempo comum trazem três passagens bíblicas, nas quais um mesmo tema se repete: nascer de novo. Dois desses episódios aconteceram antes da ressurreição de Cristo e o terceiro, após. O primeiro episódio, contado no 1º livro dos Reis (17, 17), narra o milagre operado por Elias, ressuscitando o filho da viúva de Sarepta. O segundo episódio, narrado por Lucas (7, 11), fala de Jesus ressuscitando o filho de outra viúva, a de Nahim. O terceiro episódio é narrado pelo apóstolo Paulo, falando de si mesmo, como ele renasceu após o seu encontro com Cristo, transmudando-se literalmente em outra pessoa (Gal 1, 11).

Numa coincidência interessante, dois desses casos envolvem mulheres viúvas e ambas haviam perdido seu único filho. No caso do profeta Elias, este não foi o único milagre operado por ele em favor daquela viúva que o hospedava. Embora a leitura litúrgica não contenha o milagre anterior, este é um episódio também muito conhecido. O profeta estava em missão na região norte da Palestina e, ao chegar na cidade de Sarepta, pediu hospedagem a uma mulher, que colhia lenha no mato. Ela não recusou, porém avisou a ele que não podia oferecer-lhe uma refeição, porque tudo que ela possuía era uma pequena porção de trigo e de óleo, com a qual faria o último pão para alimentação dela e do filho e depois iriam aguardar a morte. Foi quando o profeta lhe disse: dá-me este pão e nunca faltará farinha na tua vasilha. E assim aconteceu. Porém, algum tempo depois, o filho da sua anfitriã contraiu grave enfermidade e veio a falecer. Então, a mãe se queixou para Elias: por que vieste aqui trazer a morte, eu que te forneci hospedagem. E Elias ficou deveras desapontado e cobrou de Javeh uma atitude: por que vens afligir a viúva da casa onde habito, atingindo o seu filho? Rogo-te que devolvas a vida a essa criança. E assim Elias operou o segundo milagre em favor daquela mulher. É importante esclarecer que o profeta Elias estava naquela região pregando a fé em Javeh, enquanto as pessoas do local homenageavam o ídolo Baal, que era considerado uma divindade poderosa. Com este milagre, o profeta demonstrou para o povo que Javeh tinha mais poder do que Baal.

No outro caso, narrado no evangelho de Lucas, não houve nenhum pedido, o próprio Jesus tomou a iniciativa de ressuscitar o filho da outra viúva, sabendo tratar-se de seu filho único. E aquela notícia se espalhou por toda a região: um grande profeta está entre nós. Obviamente, isso causara um terrível ódio nos fariseus, que acompanhavam os passos de Jesus. Tal como no episódio do profeta Elias, Jesus demonstrava aos fariseus que era, de verdade, o filho de Deus, tanto assim que podia fazer tamanha demonstração de poder. Porém, nem assim eles acreditaram. Mas o que é mesmo importante observar nesses dois episódios?

Primeiro, o nosso Deus é o Deus da vida. Ele vem para restituir a vida aos que a perderam. Isso deve ser entendido tanto no sentido literal quanto no sentido figurado. O nosso Deus é maior do que a morte, Ele pode fazer os mortos ressuscitarem. O exemplo que ocorreu com esses dois jovens é o prenúncio do que acontecerá com todos os mortais. Até para os não crentes, como é o caso das leituras, a ressurreição ocorrerá. Mais ainda para os que acreditam. Vejam que estamos falando de ressurreição, não de salvação. A ressurreição virá para todos; a salvação, para os que praticam o evangelho de Cristo. E o que é o evangelho de Cristo? É o amor. No domingo passado, eu comentei aqui o sermão do Papa Francisco, quando ele falou que mesmo os ateus, que fazem o bem, serão salvos. Os exemplos das leituras de hoje, reforçam o que foi dito no domingo passado, acerca do milagre praticado por Cristo na pessoa do servo do centurião, também um não crente, no sentido de que a salvação é oferecida a todos e mesmo os não crentes terão o seu prêmio, se praticarem a caridade de Cristo. Como isso é possível? Ora, meus amigos, Jesus disse mais de uma vez: não é aquele que diz: Senhor, Senhor... que entrará no céu, mas o que cumpre a palavra de Deus. Ou seja, cumprir a palavra de Deus equivale a uma crença mais forte do que a daquele que diz e não faz. Por isso, mesmo os não crentes, de bom coração, terão a salvação.

Em segundo lugar, podemos observar que o nosso Deus tem uma predileção pelos mais necessitados. Imaginemos a situação de uma viúva, ou seja, uma mulher que já havia perdido o marido e que depois perde também o seu único filho. Numa época em que as mulheres eram consideradas economicamente inativas, como elas iriam sobreviver? Cristo, que não veio negar a lei antiga, mas cumpri-la com perfeição, repetiu o mesmo gesto do profeta Elias, que vivera cerca de mil anos antes d'Ele, restituindo a vida ao filho único de uma viúva. Apenas para esclarecer, a situação das mulheres viúvas, na antiguidade, era desesperadora, pois devido à prevalência da linhagem masculina (patriarcalismo), a herança do falecido era distribuída entre os filhos e estes não tinham obrigação de sustentar a viúva, que muitas vezes nem era a mãe deles e também porque tinham as próprias famílias. Resultado: a viúva ficava numa situação deplorável. Somente na época do imperador Justiniano (século VI depois de Cristo) esta situação mudou, quando este sábio governante determinou que 25% dos bens do falecido seriam destinados à viúva, isso era chamada a “quarta da viúva pobre”. Atualmente, a regra jurídica é mais benéfica, a viúva herda metade dos bens do casal, no caso do regime da comunhão universal dos bens. Sabendo daquela condição, Cristo ressuscitou o filho da viúva sem que ela Lhe pedisse, obviamente também com o objetivo de reforçar a fé dos Seus seguidores. Diz Lucas que aquela notícia se espalhou por toda a região.

O terceiro episódio, contido na epístola aos Gálatas (1, 11-19), é ainda mais comovente, porque é narrado em primeira pessoa. Paulo fala de si próprio, de como perseguia com todas as forças o cristianismo e ganhava pontos no farisaísmo com isso. Mas depois que Cristo o chamou, aquele Paulo perseguidor morreu e surgiu um novo Paulo evangelizador. Eu já tive oportunidade de confessar aqui que uma das razões mais fortes para se acreditar na divindade de Cristo está na conversão de Paulo. Cristo sabia que os outros apóstolos eram pessoas incultas e, para a propagação do cristianismo no mundo greco-romano, era preciso uma pessoa de cultura. Ele não encontrou essa pessoa na Galiléia, então foi buscá-la noutro meio e numa situação bastante emblemática: arrebatou o seu maior perseguidor e o tornou o seu mais fiel seguidor. E nessa carta aos Gálatas, Paulo proclama: o evangelho que eu prego a vocês, eu não recebi de homem algum, mas por revelação de Cristo (Gal 1, 12). Nos Atos dos Apóstolos (cap 9), Lucas narra com detalhes o episódio. Mas a narração do próprio Paulo, apesar de sucinta, é demasiado forte para se perceber como ele “nasceu de novo”. Diz ele: “Quando, porém, aquele que me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça se dignou revelar-me o seu Filho, para que eu o pregasse entre os pagãos, não consultei carne nem sangue nem subi, logo, a Jerusalém para estar com os que eram apóstolos antes de mim.” (Gal 1, 15-17) Foi um verdadeiro batismo de luz, pelo qual Paulo recebeu toda a revelação diretamente de Cristo, nem precisou que os outros apóstolos lhe repassassem o que haviam aprendido. A catequese que Paulo teve foi recebida por iluminação, pois Cristo sabia que os pescadores da Galiléia não iriam saber transmitir toda a profundidade da doutrina que Paulo alcançou com as suas reflexões teológicas. Os evangelistas transmitiram a tradição popular do que se contava a respeito de Jesus, seus ensinamentos, seus milagres. Mas Paulo produziu na verdade uma primeira reflexão teológica, unindo o conhecimento que tinha da mensagem de Cristo com a sua formação na cultura grega, surgindo daí as primeiras lições da teologia cristã, que veio a se desenvolver também no evangelho de João e depois, com os Padres gregos dos primeiros séculos (a chamada Patrística). O cristianismo é fruto dessa conjugação entre a mensagem cristã e o pensamento culto grego, daí porque Sto Tomás de Aquino, anos mais tarde, adotou o pensamento de Aristóteles como suporte teórico para desenvolver a Summa Theológica. A matriz grega estava presente na doutrina cristã desde o início, portanto, combinou perfeitamente com a filosofia aristotélica predominante na Idade Média.

Meus amigos, vejam isso: Paulo utilizou a cultura grega para ensinar o cristianismo aos povos gregos. Sto Tomás utilizou a filosofia medieval para ensinar o cristianismo no medioevo. Para ensinar o cristianismo na nossa cultura, é preciso que saibamos compreender a mensagem de Cristo dentro do nosso meio cultural. Este é o nosso desafio como pessoas cultas: transmitir a mensagem de Cristo de acordo com a nossa cultura. Fazer teologia não é repetir simplesmente o pensamento de Sto Tomás, como se nós fôssemos europeus e vivêssemos na Idade Média. Muitos católicos, infelizmente, não compreendem isso.


domingo, 2 de junho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 9º DOMINGO COMUM - A FÉ UNIVERSAL - 02.06.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO COMUM – A FÉ UNIVERSAL – 02.06.2013

Caros Confrades,

No domingo depois da Santíssima Trindade, a liturgia retoma o ciclo dos domingos comuns. Neste nono domingo, as leituras da liturgia trazem um tema interessante, que foi até objeto de uma das homilias recentes do Papa Francisco, que foi depois “corrigido” pela burocracia vaticana. O Papa disse no sermão: “O Senhor redimiu a nós todos, a todos, pelo sangue de Cristo: todos nós, não apenas católicos. Todos! “Padre… os ateus também? Mesmo os ateus?” Todos!” O que ele quis mostrar foi que a fé é universal e não é propriedade de uma ou outra religião.

A primeira leitura, do livro dos Reis (1Rs 8, 41-43), nos traz a oração de Salomão, quando terminou a construção do grande templo de Jerusalém, o qual ele foi inaugurar. No meio desta oração, Salomão “interroga” Javeh do seguinte modo: pode ser que algum estrangeiro, que não Te conhece, vendo a beleza deste templo, entre aqui e faça-Te um pedido. Então, diz Salomão, 'do céu onde moras atende a todos os pedidos desse estrangeiro, para que todos os povos da terra conheçam o teu nome e o respeitem, como faz o teu povo Israel, e para que saibam que o teu nome é invocado neste templo que eu construí'. O que vemos aí é a preocupação do sábio rei Salomão com a fé dos estrangeiros. Ninguém entraria num templo, sabendo que se trata de um local religioso, sem o espírito de fé, deve ter ele imaginado. Então, este estrangeiro não deve ser expulso do templo, apenas porque não professa a nossa fé, mas Javeh que conhece os corações de todos saberá se ele está ali com o espírito de fé e deve atendê-lo, mesmo ele não sendo crente. Foi isso que aconteceu com o sírio Naaman, conforme relatado em 2Rs 5,10. Naaman não era crente, no entanto, seguiu o ritual descrito pelo profeta Eliseu, com espírito de fé, e ficou curado de sua enfermidade.

É interessante observarmos que, desde o Antigo Testamento, já existem situações exemplares em que se destaca o caráter universal da fé, no entanto, cada denominação religiosa se considera proprietária desse tesouro e usa isso como um instrumento de barganha para conseguir mais adeptos. Aquele episódio do sermão do Papa Francisco, no dia 14.03.2013, acima referido, foi logo depois “corrigido” pelos assessores do Vaticano, para “explicar” o que o Papa quis dizer. Disse o porta voz que as pessoas não entenderam, o que o Papa quis dizer foi que as pessoas que não conhecem a Igreja Católica e fazem boas ações alcançam a salvação, mas quem conhece a Igreja Católica e se recusa a se engajar nela, mesmo que pratique boas ações, não alcança a salvação. Assim é que a teologia oficial ensina. Em sua reconhecida humildade franciscana, o Papa deixou a coisa assim ficar, mas eu sei que, em outra oportunidade, ele irá novamente retomar o assunto.

Ora, o que o Papa disse é o que está em diversas passagens da Bíblia, como as acima citadas, do livro dos Reis. Este é o tema também da leitura do evangelho, na narração de Lucas, o mais detalhista dos evangelistas, acerca do episódio muito conhecido, envolvendo o centurião romano, que solicitou um milagre a Jesus. Ele não era um crente professo mas, diz Lucas, ele era um homem bom, até tinha mandado construir uma sinagoga na cidade de Cafarnaum, mesmo sem ser israelita. Os anciãos que o conheciam deram testemunho a Jesus da sua personalidade. E Jesus estava, de bom grado, se deslocando para a casa do militar, quando teve seu trajeto interrompido. Aqui há uma pequena divergência entre os evangelistas. Mateus (8, 5) afirma que o próprio centurião foi pedir isso a Jesus; Lucas (7,6) diz que o centurião mandou amigos dele fazerem o pedido a Jesus. Ainda segundo Mateus, foi o próprio centurião quem disse a Jesus que não precisava ir até a casa dele. Segundo Lucas, foram amigos do centurião que fizeram isso, o centurião não esteve na presença de Jesus. Bem, estou destacando esses detalhes apenas para que todos, mais uma vez, observem que não podemos ler a Bíblia de uma maneira fundamentalista, porque muitas vezes os textos conduzem a situações complicadas.

No caso específico, o que interessa não é se o próprio centurião dialogou com Jesus ou se mandou amigos fazerem isso. O que interessa é a forma como o centurião demonstrou sua fé em Jesus, mesmo não sendo israelita, mesmo não sendo um seguidor seu. Este texto tornou-se um clássico exemplo de fé irrestrita e foi até inserido no cânon da missa: “Domine, non sum dignus ut intres sub tectum meum, sed tantum dic verbum et sanabitur puer meus”. E Jesus se admirou muitíssimo, a ponto de exclamar: não encontrei tanta fé em Israel (Lc 7,9). Trata-se daquela fé universal, o centurião não conhecia Jesus, apenas ouvira falar nos milagres que ele fazia, no entanto, entendeu que nem seria necessária a presença d'Ele para que operasse um prodígio. Bastava que ele mandasse, ordenasse mesmo que fosse de longe. E Jesus nem colocou qualquer condição para atendê-lo, por exemplo, converta-se, pratique a minha doutrina, venha me seguir, vá batizar-se, vá fazer penitência... para que isso? Aquela demonstração irrestrita de fé era bastante por si só.

A essas alturas, pode ser que alguém esteja conjeturando: então, para que serve a Igreja, se a fé é bastante. Foi este o equívoco em que incidiu Lutero. Ele achava que apenas a fé (sola fides) na escritura (sola scriptura) era suficiente para o crente se salvar, não precisava pertencer a uma comunidade eclesial, não precisava obedecer aos regulamentos baixados pelo Papa e pelas demais autoridades religiosas, bastava apenas crer na escritura. Neste equívoco, nós não devemos nos deixar iludir. A Igreja é a estrutura dentro da qual nós vivenciamos a nossa fé. A fé na sua dimensão pessoal está no íntimo de cada um. Ocorre que a salvação, como corolário da fé, é uma realização comunitária. Deus não nos quis solitários, isolados, individualistas. O próprio Deus é Trindade, é comunhão, então a nossa fé não se expressa por completo isoladamente, solitariamente, porque a fé tem duas vertentes: a dimensão vertical, pela qual fazemos nossa comunhão com Deus, e a dimensão horizontal, pela qual praticamos a nossa comunhão com os irmãos e as duas extremidades se tocam: a comunhão com Deus leva à comunhão com os irmãos e esta leva à comunhão com Deus. É para tal vivência que precisamos engajar-nos na comunidade eclesial. O Papa Francisco foi mais ousado, ele disse: “Fomos criados filhos à semelhança de Deus e o sangue de Cristo redimiu a nós todos! E todos temos o dever de fazer o bem. E esse mandamento para todos fazermos bem, penso ser um belo caminho para a paz. Se nós, cada um fazendo a sua parte, fizermos o bem uns aos outros, se nos encontrarmos lá, fazendo o bem, então iremos gradualmente criando uma cultura de encontro. Devemos nos encontrar na prática do bem.” A prática do bem é construtora da comunidade. O ambiente eclesial existe para nos proporcionar, de uma maneira orientada e mais facilitada, esta cultura do encontro. Pelo menos, é assim que deveria ser. A comunidade eclesial tem essa característica de ser uma união de irmãos de fé, em que uns estimulam, orientam, ajudam os outros a vivenciarem autenticamente a sua, na dimensão da oração (vertical) e na dimensão da caridade (horizontal), propiciando desse modo a realização completa da nossa fé. A salvação não é um ato individual, mas uma produção coletiva e, embora seja possível fora da comunidade, é dentro desta que as condições são mais favoráveis para o seu desenvolvimento.

Infelizmente, o que observamos na prática religiosa de hoje é a grande quantidade de divisões de artigos de fé em diversas “igrejas” com diferentes denominações e, o que é ainda mais grave, são as divisões internas em grupos que se autorrotulam com crachás ideológicos próprios, cada um querendo ser “mais fiel” ou “mais autêntico” e por isso digladiando-se mutuamente e destruindo com os pés aquilo que tentam construir com as mãos. Começa com as grandes instituições (igreja romana x igrejas orientais), passando pelas diferentes culturas regionais e chegando até os grupos internos dentro do catolicismo. Vou falar apenas no movimento liderado pelo Monsenhor Lefébvre, que recusou as reformas aprovadas no Concílio Vaticano II, os demais, posso deixar subentendidos. Cabe aqui a exortação de Paulo aos Gálatas, na segunda leitura de hoje (Gl 1, 7): “...algumas pessoas vos estão perturbando e querendo mudar o evangelho de Cristo. Pois bem, mesmo que nós ou um anjo vindo do céu vos pregasse um evangelho diferente daquele que vos pregamos, seja anátema.” O mandamento de Cristo é tão simples e direto, nós é que complicamos desnecessariamente.

Meus amigos, que a demonstração de fé do centurião nos sirva de exemplo e motivação para repensarmos os nossos atos de fé e nos inspire a vivenciar, de forma mais completa, esta fé nas nossas comunidades.