COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 9º DOMINGO COMUM – A FÉ UNIVERSAL – 02.06.2013
Caros Confrades,
No domingo depois da
Santíssima Trindade, a liturgia retoma o ciclo dos domingos comuns.
Neste nono domingo, as leituras da liturgia trazem um tema
interessante, que foi até objeto de uma das homilias recentes do
Papa Francisco, que foi depois “corrigido” pela burocracia
vaticana. O Papa disse no sermão: “O Senhor redimiu a nós todos,
a todos, pelo sangue de Cristo: todos nós, não apenas católicos.
Todos! “Padre… os ateus também? Mesmo os ateus?” Todos!” O
que ele quis mostrar foi que a fé é universal e não é propriedade
de uma ou outra religião.
A primeira leitura, do
livro dos Reis (1Rs 8, 41-43), nos traz a oração de Salomão,
quando terminou a construção do grande templo de Jerusalém, o qual
ele foi inaugurar. No meio desta oração, Salomão “interroga”
Javeh do seguinte modo: pode ser que algum estrangeiro, que não Te
conhece, vendo a beleza deste templo, entre aqui e faça-Te um
pedido. Então, diz Salomão, 'do
céu onde moras atende a todos os pedidos desse estrangeiro, para que
todos os povos da terra conheçam o teu nome e o respeitem, como faz
o teu povo Israel, e para que saibam que o teu nome é invocado neste
templo que eu construí'. O
que vemos aí é a preocupação do sábio rei Salomão com a fé dos
estrangeiros. Ninguém entraria num templo, sabendo que se trata de
um local religioso, sem o espírito de fé, deve ter ele imaginado.
Então, este estrangeiro não deve ser expulso do templo, apenas
porque não professa a nossa fé, mas Javeh que conhece os corações
de todos saberá se ele está ali com o espírito de fé e deve
atendê-lo, mesmo ele não sendo crente. Foi isso que aconteceu com o
sírio Naaman, conforme relatado em 2Rs 5,10. Naaman não era crente,
no entanto, seguiu o ritual descrito pelo profeta Eliseu, com
espírito de fé, e ficou curado de sua enfermidade.
É interessante
observarmos que, desde o Antigo Testamento, já existem situações
exemplares em que se destaca o caráter universal da fé, no entanto,
cada denominação religiosa se considera proprietária desse tesouro
e usa isso como um instrumento de barganha para conseguir mais
adeptos. Aquele episódio do sermão do Papa Francisco, no dia
14.03.2013, acima referido, foi logo depois “corrigido” pelos
assessores do Vaticano, para “explicar” o que o Papa quis dizer.
Disse o porta voz que as pessoas não entenderam, o que o Papa quis
dizer foi que as pessoas que não conhecem a Igreja Católica e fazem
boas ações alcançam a salvação, mas quem conhece a Igreja
Católica e se recusa a se engajar nela, mesmo que pratique boas
ações, não alcança a salvação. Assim é que a teologia oficial
ensina. Em sua reconhecida humildade franciscana, o Papa deixou a
coisa assim ficar, mas eu sei que, em outra oportunidade, ele irá
novamente retomar o assunto.
Ora, o que o Papa disse
é o que está em diversas passagens da Bíblia, como as acima
citadas, do livro dos Reis. Este é o tema também da leitura do
evangelho, na narração de Lucas, o mais detalhista dos
evangelistas, acerca do episódio muito conhecido, envolvendo o
centurião romano, que solicitou um milagre a Jesus. Ele não era um
crente professo mas, diz Lucas, ele era um homem bom, até tinha
mandado construir uma sinagoga na cidade de Cafarnaum, mesmo sem ser
israelita. Os anciãos que o conheciam deram testemunho a Jesus da
sua personalidade. E Jesus estava, de bom grado, se deslocando para a
casa do militar, quando teve seu trajeto interrompido. Aqui há uma
pequena divergência entre os evangelistas. Mateus (8, 5) afirma que
o próprio centurião foi pedir isso a Jesus; Lucas (7,6) diz que o
centurião mandou amigos dele fazerem o pedido a Jesus. Ainda segundo
Mateus, foi o próprio centurião quem disse a Jesus que não
precisava ir até a casa dele. Segundo Lucas, foram amigos do
centurião que fizeram isso, o centurião não esteve na presença de
Jesus. Bem, estou destacando esses detalhes apenas para que todos,
mais uma vez, observem que não podemos ler a Bíblia de uma maneira
fundamentalista, porque muitas vezes os textos conduzem a situações
complicadas.
No caso específico, o
que interessa não é se o próprio centurião dialogou com Jesus ou
se mandou amigos fazerem isso. O que interessa é a forma como o
centurião demonstrou sua fé em Jesus, mesmo não sendo israelita,
mesmo não sendo um seguidor seu. Este texto tornou-se um clássico
exemplo de fé irrestrita e foi até inserido no cânon da missa:
“Domine, non sum dignus ut intres sub tectum meum, sed tantum dic
verbum et sanabitur puer meus”. E Jesus se admirou muitíssimo, a
ponto de exclamar: não encontrei tanta fé em Israel (Lc 7,9).
Trata-se daquela fé universal, o centurião não conhecia Jesus,
apenas ouvira falar nos milagres que ele fazia, no entanto, entendeu
que nem seria necessária a presença d'Ele para que operasse um
prodígio. Bastava que ele mandasse, ordenasse mesmo que fosse de
longe. E Jesus nem colocou qualquer condição para atendê-lo, por
exemplo, converta-se, pratique a minha doutrina, venha me seguir, vá
batizar-se, vá fazer penitência... para que isso? Aquela
demonstração irrestrita de fé era bastante por si só.
A essas alturas, pode
ser que alguém esteja conjeturando: então, para que serve a Igreja,
se a fé é bastante. Foi este o equívoco em que incidiu Lutero. Ele
achava que apenas a fé (sola fides) na escritura (sola scriptura)
era suficiente para o crente se salvar, não precisava pertencer a
uma comunidade eclesial, não precisava obedecer aos regulamentos
baixados pelo Papa e pelas demais autoridades religiosas, bastava
apenas crer na escritura. Neste equívoco, nós não devemos nos
deixar iludir. A Igreja é a estrutura dentro da qual nós
vivenciamos a nossa fé. A fé na sua dimensão pessoal está no
íntimo de cada um. Ocorre que a salvação, como corolário da fé,
é uma realização comunitária. Deus não nos quis solitários,
isolados, individualistas. O próprio Deus é Trindade, é comunhão,
então a nossa fé não se expressa por completo isoladamente,
solitariamente, porque a fé tem duas vertentes: a dimensão
vertical, pela qual fazemos nossa comunhão com Deus, e a dimensão
horizontal, pela qual praticamos a nossa comunhão com os irmãos e
as duas extremidades se tocam: a comunhão com Deus leva à comunhão
com os irmãos e esta leva à comunhão com Deus. É para tal
vivência que precisamos engajar-nos na comunidade eclesial. O Papa
Francisco foi mais ousado, ele disse: “Fomos criados filhos à
semelhança de Deus e o sangue de Cristo redimiu a nós todos! E
todos temos o dever de fazer o bem. E esse mandamento para todos
fazermos bem, penso ser um belo caminho para a paz. Se nós, cada um
fazendo a sua parte, fizermos o bem uns aos outros, se nos
encontrarmos lá, fazendo o bem, então iremos gradualmente criando
uma cultura de encontro. Devemos nos encontrar na prática do bem.”
A prática do bem é construtora da comunidade. O ambiente eclesial
existe para nos proporcionar, de uma maneira orientada e mais
facilitada, esta cultura do encontro. Pelo menos, é assim que
deveria ser. A comunidade eclesial tem essa característica de ser
uma união de irmãos de fé, em que uns estimulam, orientam, ajudam
os outros a vivenciarem autenticamente a sua, na dimensão da oração
(vertical) e na dimensão da caridade (horizontal), propiciando desse
modo a realização completa da nossa fé. A salvação não é um
ato individual, mas uma produção coletiva e, embora seja possível
fora da comunidade, é dentro desta que as condições são mais
favoráveis para o seu desenvolvimento.
Infelizmente, o que
observamos na prática religiosa de hoje é a grande quantidade de
divisões de artigos de fé em diversas “igrejas” com diferentes
denominações e, o que é ainda mais grave, são as divisões
internas em grupos que se autorrotulam com crachás ideológicos
próprios, cada um querendo ser “mais fiel” ou “mais autêntico”
e por isso digladiando-se mutuamente e destruindo com os pés aquilo
que tentam construir com as mãos. Começa com as grandes
instituições (igreja romana x igrejas orientais), passando pelas
diferentes culturas regionais e chegando até os grupos internos
dentro do catolicismo. Vou falar apenas no movimento liderado pelo
Monsenhor Lefébvre, que recusou as reformas aprovadas no Concílio
Vaticano II, os demais, posso deixar subentendidos. Cabe aqui a
exortação de Paulo aos Gálatas, na segunda leitura de hoje (Gl 1,
7): “...algumas
pessoas vos estão perturbando e querendo mudar o evangelho de
Cristo. Pois bem, mesmo que nós ou um anjo vindo do céu vos
pregasse um evangelho diferente daquele que vos pregamos, seja
anátema.” O mandamento
de Cristo é tão simples e direto, nós é que complicamos
desnecessariamente.
Meus amigos, que a
demonstração de fé do centurião nos sirva de exemplo e motivação
para repensarmos os nossos atos de fé e nos inspire a vivenciar, de
forma mais completa, esta fé nas nossas comunidades.
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