domingo, 2 de junho de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 9º DOMINGO COMUM - A FÉ UNIVERSAL - 02.06.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO COMUM – A FÉ UNIVERSAL – 02.06.2013

Caros Confrades,

No domingo depois da Santíssima Trindade, a liturgia retoma o ciclo dos domingos comuns. Neste nono domingo, as leituras da liturgia trazem um tema interessante, que foi até objeto de uma das homilias recentes do Papa Francisco, que foi depois “corrigido” pela burocracia vaticana. O Papa disse no sermão: “O Senhor redimiu a nós todos, a todos, pelo sangue de Cristo: todos nós, não apenas católicos. Todos! “Padre… os ateus também? Mesmo os ateus?” Todos!” O que ele quis mostrar foi que a fé é universal e não é propriedade de uma ou outra religião.

A primeira leitura, do livro dos Reis (1Rs 8, 41-43), nos traz a oração de Salomão, quando terminou a construção do grande templo de Jerusalém, o qual ele foi inaugurar. No meio desta oração, Salomão “interroga” Javeh do seguinte modo: pode ser que algum estrangeiro, que não Te conhece, vendo a beleza deste templo, entre aqui e faça-Te um pedido. Então, diz Salomão, 'do céu onde moras atende a todos os pedidos desse estrangeiro, para que todos os povos da terra conheçam o teu nome e o respeitem, como faz o teu povo Israel, e para que saibam que o teu nome é invocado neste templo que eu construí'. O que vemos aí é a preocupação do sábio rei Salomão com a fé dos estrangeiros. Ninguém entraria num templo, sabendo que se trata de um local religioso, sem o espírito de fé, deve ter ele imaginado. Então, este estrangeiro não deve ser expulso do templo, apenas porque não professa a nossa fé, mas Javeh que conhece os corações de todos saberá se ele está ali com o espírito de fé e deve atendê-lo, mesmo ele não sendo crente. Foi isso que aconteceu com o sírio Naaman, conforme relatado em 2Rs 5,10. Naaman não era crente, no entanto, seguiu o ritual descrito pelo profeta Eliseu, com espírito de fé, e ficou curado de sua enfermidade.

É interessante observarmos que, desde o Antigo Testamento, já existem situações exemplares em que se destaca o caráter universal da fé, no entanto, cada denominação religiosa se considera proprietária desse tesouro e usa isso como um instrumento de barganha para conseguir mais adeptos. Aquele episódio do sermão do Papa Francisco, no dia 14.03.2013, acima referido, foi logo depois “corrigido” pelos assessores do Vaticano, para “explicar” o que o Papa quis dizer. Disse o porta voz que as pessoas não entenderam, o que o Papa quis dizer foi que as pessoas que não conhecem a Igreja Católica e fazem boas ações alcançam a salvação, mas quem conhece a Igreja Católica e se recusa a se engajar nela, mesmo que pratique boas ações, não alcança a salvação. Assim é que a teologia oficial ensina. Em sua reconhecida humildade franciscana, o Papa deixou a coisa assim ficar, mas eu sei que, em outra oportunidade, ele irá novamente retomar o assunto.

Ora, o que o Papa disse é o que está em diversas passagens da Bíblia, como as acima citadas, do livro dos Reis. Este é o tema também da leitura do evangelho, na narração de Lucas, o mais detalhista dos evangelistas, acerca do episódio muito conhecido, envolvendo o centurião romano, que solicitou um milagre a Jesus. Ele não era um crente professo mas, diz Lucas, ele era um homem bom, até tinha mandado construir uma sinagoga na cidade de Cafarnaum, mesmo sem ser israelita. Os anciãos que o conheciam deram testemunho a Jesus da sua personalidade. E Jesus estava, de bom grado, se deslocando para a casa do militar, quando teve seu trajeto interrompido. Aqui há uma pequena divergência entre os evangelistas. Mateus (8, 5) afirma que o próprio centurião foi pedir isso a Jesus; Lucas (7,6) diz que o centurião mandou amigos dele fazerem o pedido a Jesus. Ainda segundo Mateus, foi o próprio centurião quem disse a Jesus que não precisava ir até a casa dele. Segundo Lucas, foram amigos do centurião que fizeram isso, o centurião não esteve na presença de Jesus. Bem, estou destacando esses detalhes apenas para que todos, mais uma vez, observem que não podemos ler a Bíblia de uma maneira fundamentalista, porque muitas vezes os textos conduzem a situações complicadas.

No caso específico, o que interessa não é se o próprio centurião dialogou com Jesus ou se mandou amigos fazerem isso. O que interessa é a forma como o centurião demonstrou sua fé em Jesus, mesmo não sendo israelita, mesmo não sendo um seguidor seu. Este texto tornou-se um clássico exemplo de fé irrestrita e foi até inserido no cânon da missa: “Domine, non sum dignus ut intres sub tectum meum, sed tantum dic verbum et sanabitur puer meus”. E Jesus se admirou muitíssimo, a ponto de exclamar: não encontrei tanta fé em Israel (Lc 7,9). Trata-se daquela fé universal, o centurião não conhecia Jesus, apenas ouvira falar nos milagres que ele fazia, no entanto, entendeu que nem seria necessária a presença d'Ele para que operasse um prodígio. Bastava que ele mandasse, ordenasse mesmo que fosse de longe. E Jesus nem colocou qualquer condição para atendê-lo, por exemplo, converta-se, pratique a minha doutrina, venha me seguir, vá batizar-se, vá fazer penitência... para que isso? Aquela demonstração irrestrita de fé era bastante por si só.

A essas alturas, pode ser que alguém esteja conjeturando: então, para que serve a Igreja, se a fé é bastante. Foi este o equívoco em que incidiu Lutero. Ele achava que apenas a fé (sola fides) na escritura (sola scriptura) era suficiente para o crente se salvar, não precisava pertencer a uma comunidade eclesial, não precisava obedecer aos regulamentos baixados pelo Papa e pelas demais autoridades religiosas, bastava apenas crer na escritura. Neste equívoco, nós não devemos nos deixar iludir. A Igreja é a estrutura dentro da qual nós vivenciamos a nossa fé. A fé na sua dimensão pessoal está no íntimo de cada um. Ocorre que a salvação, como corolário da fé, é uma realização comunitária. Deus não nos quis solitários, isolados, individualistas. O próprio Deus é Trindade, é comunhão, então a nossa fé não se expressa por completo isoladamente, solitariamente, porque a fé tem duas vertentes: a dimensão vertical, pela qual fazemos nossa comunhão com Deus, e a dimensão horizontal, pela qual praticamos a nossa comunhão com os irmãos e as duas extremidades se tocam: a comunhão com Deus leva à comunhão com os irmãos e esta leva à comunhão com Deus. É para tal vivência que precisamos engajar-nos na comunidade eclesial. O Papa Francisco foi mais ousado, ele disse: “Fomos criados filhos à semelhança de Deus e o sangue de Cristo redimiu a nós todos! E todos temos o dever de fazer o bem. E esse mandamento para todos fazermos bem, penso ser um belo caminho para a paz. Se nós, cada um fazendo a sua parte, fizermos o bem uns aos outros, se nos encontrarmos lá, fazendo o bem, então iremos gradualmente criando uma cultura de encontro. Devemos nos encontrar na prática do bem.” A prática do bem é construtora da comunidade. O ambiente eclesial existe para nos proporcionar, de uma maneira orientada e mais facilitada, esta cultura do encontro. Pelo menos, é assim que deveria ser. A comunidade eclesial tem essa característica de ser uma união de irmãos de fé, em que uns estimulam, orientam, ajudam os outros a vivenciarem autenticamente a sua, na dimensão da oração (vertical) e na dimensão da caridade (horizontal), propiciando desse modo a realização completa da nossa fé. A salvação não é um ato individual, mas uma produção coletiva e, embora seja possível fora da comunidade, é dentro desta que as condições são mais favoráveis para o seu desenvolvimento.

Infelizmente, o que observamos na prática religiosa de hoje é a grande quantidade de divisões de artigos de fé em diversas “igrejas” com diferentes denominações e, o que é ainda mais grave, são as divisões internas em grupos que se autorrotulam com crachás ideológicos próprios, cada um querendo ser “mais fiel” ou “mais autêntico” e por isso digladiando-se mutuamente e destruindo com os pés aquilo que tentam construir com as mãos. Começa com as grandes instituições (igreja romana x igrejas orientais), passando pelas diferentes culturas regionais e chegando até os grupos internos dentro do catolicismo. Vou falar apenas no movimento liderado pelo Monsenhor Lefébvre, que recusou as reformas aprovadas no Concílio Vaticano II, os demais, posso deixar subentendidos. Cabe aqui a exortação de Paulo aos Gálatas, na segunda leitura de hoje (Gl 1, 7): “...algumas pessoas vos estão perturbando e querendo mudar o evangelho de Cristo. Pois bem, mesmo que nós ou um anjo vindo do céu vos pregasse um evangelho diferente daquele que vos pregamos, seja anátema.” O mandamento de Cristo é tão simples e direto, nós é que complicamos desnecessariamente.

Meus amigos, que a demonstração de fé do centurião nos sirva de exemplo e motivação para repensarmos os nossos atos de fé e nos inspire a vivenciar, de forma mais completa, esta fé nas nossas comunidades.


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