COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 11º DOMINGO COMUM – A JUSTIÇA E A LEI – 16.06.2013
Caros Confrades,
Neste 11º domingo
comum, destaco um tema das leituras para a nossa reflexão: a lição
de Paulo aos Gálatas (2, 16) - fomos
justificados pela fé em Cristo, não pela prática da Lei.
Este tema está presente ainda no evangelho de Lucas (7, 36-50), no
conhecido episódio da pecadora que lavou os pés de Cristo com suas
lágrimas. É um tema que o Papa Francisco tem repetidamente
insistido em suas prédicas diárias, que são noticiadas pela
internet, sobretudo quando se refere à Cúria Romana.
A lição de Paulo aos
Gálatas é taxativa e fundamental: não é pela prática da lei que
somos salvos, mas pela adesão ao compromisso proposto por Cristo. A
expressão “justificados pela fé em Cristo” não pode ser
entendida ao pé da letra, como se a fé intelectualmente considerada
fosse bastante. Esse foi o equívoco de Lutero, quando afirmou que
“sola fides”, “sola scriptura” garantem a salvação. A fé
em Cristo implica o cumprimento dos seus mandamentos, ou seja,
precisa se refletir em atitudes práticas, em gestos concretos de
caridade e não pode ser apenas uma atitude subjetiva, interior. Esta
é, sem dúvida, necessária, porém, insuficiente.
Para entendermos melhor
a catequese de Paulo aos Gálatas, devemos recordar o fato já
abordado no domingo anterior, a respeito do que aconteceu naquela
comunidade. Depois que Paulo havia pregado o evangelho para eles,
havia conferido o batismo e fundado a comunidade na cidade, saiu para
pregar o evangelho em outros locais. Então chegaram à Galácia os
judaizantes, ou seja, os judeus convertidos que deram muito trabalho
a Paulo, defendendo a necessidade de continuar cumprindo a Lei de
Moisés, para que a mensagem de Cristo tivesse efetividade. Desse
modo, era necessário manter a circuncisão, os jejuns públicos, as
práticas exteriores tão do gosto dos fariseus, mesmo depois de
haverem aderido ao cristianismo. E Paulo dizia a eles que o
ensinamento de Cristo havia deixado tudo isso pra trás. Sobre si
mesmo, Paulo diz: “foi
em virtude da Lei que eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus.”
(Gl 2, 19), isto é, depois do evangelho de Cristo, a Lei de Moisés
cumpriu o seu objetivo e caducou. Em seguida, Paulo faz a afirmação
de maior força e peso: se o cumprimento da lei é que nos garante a
salvação, então o sacrifício de Cristo foi vão. E complementa:
“ ninguém
é justificado por observar a Lei de Moisés, mas por crer em Jesus
Cristo, nós também abraçamos a fé em Jesus Cristo.”
Trata-se, como podem observar, do conflito entre a lei e a justiça.
Não é a lei que salva, mas a justiça de Deus. E esta justiça vem
a nós através da fé em Cristo, não pelo cumprimento formal da
lei.
Na leitura do evangelho
(Lc 7, 36-50), temos a muito conhecida cena da pecadora lavando os
pés de Cristo, na casa do fariseu Simão. Vamos tentar imaginar a
cena. Um fariseu convida Jesus para almoçar com ele. Ora, esse
convite tinha tudo para ser mais uma cilada a fim de apanhar Jesus em
algum flagra desrespeitando a lei, como era comum nas atitudes dos
fariseus daquele tempo, para assim poderem denunciá-lo formalmente.
Na casa de um fariseu, certamente estariam presentes vários outros
fariseus, assim a cena teria inúmeras testemunhas. Observem que
Lucas, embora seja um escritor muito detalhista, não fez comentários
sobre esse aspecto da visita, porque para ele o mais importante era
narrar a atitude de Jesus na ocasião. Mas nós podemos fazer um
cenário mental da situação. Na minha opinião, foi algo parecido
com aquele episódio em que perguntaram a Jesus se era devido pagar o
tributo ao imperador romano e ele, como de outras vezes, teve uma
saída de mestre: dai a César o que é de César e a Deus o que é
de Deus. Neste caso da pecadora, Jesus sabia que algo estava sendo
tramado dos bastidores, mas ele não poderia perder aquela
oportunidade de, novamente, dar uma lição nos fariseus.
Vejam só. Jesus estava
numa casa cheia de convidados, na casa de um fariseu importante na
cidade, evidentemente, só podiam entrar ali pessoas autorizadas.
Como foi que surgiu aquela pecadora ali ajoelhada diante dele,
chorando a seus pés? Obviamente, aquilo foi uma armação, uma
“convidada” especial, para colocar Jesus numa sinuca. Digamos que
ela houvesse entrado sem ser convidada, não teria sido expulsa pelos
empregados do anfitrião? Aquilo não era uma festa pública, era uma
ceia reservada para convidados. Então, a presença da pecadora, sem
dúvida, era uma intimidação, para ver que reação Jesus teria.
Lucas até revela o que estaria se passando na mente do fariseu
Simão: Se
este homem fosse um profeta, saberia que tipo de mulher está tocando
nele, pois é uma pecadora.' Ora,
se um fariseu tivesse contato físico com um(a) pecador(a), teria que
ir, logo em seguida, se purificar com as lavagens recomendadas pela
Lei de Moisés, assim como eles não se aproximavam da mulher
menstruada e também não sentavam na mesa da refeição sem ter
antes lavado as mãos. Ter um contato físico, por mínimo que fosse,
com uma pecadora pública, era motivo para inúmeros procedimentos
purificatórios, a fim de se limpar da impureza.
Pois bem. Este
pensamento de Simão devia ser o mesmo dos demais fariseus que se
encontravam na sala, só esperando pra ver o que Jesus faria. Se ele
afastasse a pecadora, então estaria contradizendo os seus próprios
ensinamentos; se ele a deixasse continuar o que estava fazendo,
estaria descumprindo a Lei de Moisés, ou seja, de um modo ou de
outro, Jesus estaria se colocando numa tremenda “saia justa”.
Sabendo do que se passava nos pensamentos dos presentes, Jesus tomou
a iniciativa de travar um diálogo com o anfitrião sobre o credor
que perdoou os devedores. Simão facilmente concluiu o que Jesus
queria ouvir: amará mais o credor aquele que teve o perdão da
dívida maior. Apenas para recordar, a palavra “dívida”, naquele
contexto, não era somente uma obrigação a ser paga com dinheiro,
mas o devedor que não tivesse com que pagar, se tornaria escravo do
credor e iria trabalhar para ele até que tivesse pago toda a dívida.
Isto é, o próprio corpo do devedor passaria a ser propriedade do
credor. Assim era que os fariseus consideravam o pecador em relação
a Javeh, era um devedor inadimplente, portanto, Javeh poderia matá-lo
ou transformá-lo em escravo de alguém.
Mais uma vez, a
estratégia de Jesus foi fantástica, reverteu totalmente uma
situação que, à primeira vista, parecia ser-lhe desfavorável. E
ainda ironizou na cara do fariseu: tu não me ofereceste água para
lavar os pés (como mandava a lei), tu não me deste o ósculo da paz
(como mandava a lei), tu não me ungiste com unguento perfumado (como
mandava a lei), ou seja, se havia ali alguém descumprindo a lei, era
o fariseu, não Jesus. E disse, referindo-se à pecadora: esta mulher
lavou os meus pés, deu muitos beijos, ungiu-os com perfume, tudo
isso sem dizer uma palavra sequer, apenas chorando e demonstrando
arrependimento. Os fariseus ficaram todos de queixo caído, jamais
esperavam ouvir aquilo. Jesus “passou na cara” deles que aquela
pecadora, além de ter cumprido o que prescrevia a lei, ainda fez
tudo aquilo com o coração arrependido e essa atitude interior de
conversão, de confissão da sua culpa, de demonstração da fé em
Cristo era muito mais importante do que tudo que ela havia praticado
externamente. Por isso, os muitos pecados dela tinham sido perdoados.
Lucas não continua a história, mas certamente, depois dessa
bordoada, os fariseus presentes literalmente perderam a fome.
Meus amigos, convém
ainda esclarecer um equívoco que algumas pessoas têm: essa pecadora
que lavou os pés de Jesus com lágrimas não é Maria Madalena. Uma
tradição machista, surgida logo nos primeiros tempos, divulgou essa
ideia, que os biblistas procuram esclarecer. Provavelmente, esse
boato teve origem de uma rixa que havia entre Maria Madalena e os
apóstolos Pedro e Paulo, por divergências doutrinárias, no início
do cristianismo e isso perpassou diversas gerações de leitores,
sendo dissipada com os estudos mais recentes. E uma conclusão que
podemos fazer sobre o tema da justiça e a lei é que o evangelho é
superior ao direito canônico. Existe, entre alguns padres e fiéis
católicos, uma mentalidade burocrática de seguir à risca os
preceitos canônicos. Sem tirar o valor destes preceitos, não
podemos voltar a incorrer no mesmo equívoco em que incorriam os
fariseus no tempo de Cristo. A lei existe para o favor do cristão,
não é o cristão que vive para a lei.
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