COMENTÁRIO LITÚRGICO
20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 18.08.2013
Caros Confrades,
Mais uma vez, como sói
acontecer, o calendário litúrgico do domingo abre espaço para a
celebração da festa da Assunção de Maria, uma concessão especial
para o Brasil, autorizada pela CNBB, dentro do acordo com o Governo
brasileiro acerca dos feriados religiosos. Visto que o dia próprio
da festa, 15 de agosto, cai no meio da semana, transfere-se a
celebração para o domingo seguinte. Mesmo no caso específico de
Fortaleza, que celebra a festa da Assunção na data própria, por
causa do feriado municipal, a festa litúrgica é transferida para o
domingo, seguindo a orientação nacional da CNBB.
As leituras litúrgicas
deste domingo referem-se, portanto, à figura de Maria, destacando a
sua função única e inigualável no plano salvífico do Pai, o que
mereceu a elevação de verdade teológica fundamental (dogma de fé)
o fato de Maria ter sido elevada ao céu em corpo e alma. Esta
verdade, proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950, foi o último dogma
de fé instituído pela Igreja Católica. Naquela época, de acordo
com uma visão triunfalista do catolicismo que imperava, tal
proclamação era uma demonstração de poder religioso e de
autoafirmação do catolicismo perante as outras religiões. Devemos
considerar que a humanidade, sobretudo a população européia, vivia
ainda atordoada com o pesadelo da segunda guerra mundial,
recém-terminada, sofrendo as duras consequências do caos oriundo
dos dezesseis anos de destruição das suas principais cidades e da
morte de milhares de inocentes. Sob o aspecto interno da convivência
com as demais religiões, o catolicismo tentava se proteger do
modernismo e das correntes teológicas reformistas, sobretudo a
teologia bíblica, movimentada por recentes descobertas
arqueológicas, que revolucionaram os estudos das escrituras. A
Igreja Católica, até então, tentava abrir caminho no meio desse
conturbado ambiente teológico, procurando apoio na sua tradição
mais antiga. Assim é que o dogma da Assunção de Maria foi
proclamado pelo Papa sem uma fundamentação bíblica direta, mas de
forma indireta e louvando-se na tradição que vinha do tempo dos
Apóstolos.
Certa vez, o Monsenhor
Landim, sacerdote que exerceu importantes funções na Arquidiocese
de Fortaleza, já falecido, me contou que era recém-ordenado na
época das discussões teológicas que antecederam a proclamação do
dogma. Ele me disse que o professor de teologia do Seminário da
Prainha (agora não me recordo do nome desse professor) era contrário
àquela proclamação, por achar desnecessário e por falta de
fundamentação bíblica. As opiniões dos professores eram
divididas, uns a favor, outros contra. Então, houve a proclamação
papal e os alunos foram perguntar a esse professor que tinha opinião
contrária o que ele tinha a dizer. O professor respondeu
simplesmente: agora, não tenho mais nada a dizer, só devo aceitar
aquilo que a Igreja proclamou.
O mesmo Monsenhor
também me disse que o Papa Pio XII teria ficado muito em dúvida
acerca da proclamação, pois embora houvesse tido o parecer
favorável do Órgão competente da Cúria Romana, ele (o Papa) não
estava bastante convencido. Então, durante um momento em que o Papa
passeava e rezava pelos jardins da sua residência, no Vaticano, ele
teria recebido uma espécie de “visão”, que não explicou com
exatidão o que tinha sido, mas que esse fato foi decisivo para que o
Papa, então, tivesse se convencido de fazer a proclamação. Eu
estou comentando aqui esses detalhes para levar à seguinte
conclusão. As verdades teológicas, tanto quanto as demais verdades
produzidas em linguagem humana, são resultado de circunstâncias
históricas determinadas. Alguém poderia até argumentar que as
verdades religiosas diferem das verdades científicas porque são
inspiradas por Deus e assim não podem ser equiparadas umas às
outras. Mas eu responderia que, mesmo sendo inspiradas por Deus, elas
são transcritas em linguagem humana e, assim como ocorre com os
textos bíblicos, precisam ser interpretadas. Não há linguagem
humana com blindagem de tempo, nem mesmo aquelas que transmitem
ensinamentos religiosos.
O fato é que a
proclamação do dogma de fé da Assunção de Maria, conquanto tenha
sido muito bem aceito pelos católicos, aprofundou mais ainda as
divergências entre a Igreja Católica e as outras igrejas cristãs,
sobretudo pelo fato de não ter um fundamento bíblico explícito. Os
irmãos separados entenderam isso como mais uma 'invenção' da
Igreja romana, principalmente porque se apóia em outra proclamação
que também sempre foi motivo de críticas, que é o dogma da
infalibilidade papal. Tenho conhecimento de alguns grupos teológicos
atuais que tentam formar uma corrente de adeptos para que Maria seja
proclamada “corredentora” da humanidade, dado o seu papel
fundamental na economia da salvação. Na minha opinião, uma tal
pretensão não deverá ser apoiada pelo Papa, ou seja, não deverá
ser proclamada oficialmente como verdade de fé, afirmo isso
baseando-me nas razões que acima desenvolvi acerca do dogma da
Assunção.
Uma coisa e outra,
porém, de modo algum desmerecem a função precípua e incomparável
de Maria no plano salvífico de Deus, materializado na pessoa
humano-divina de Jesus Cristo. A jovem Maria era instruída nas
escrituras, seu pai servia no templo e sendo homem muito piedoso,
pusera Maria na escola do Templo de Jerusalém onde, desde criança,
ela recebia formação na Torah. Portanto, Maria conhecia a promessa
e, como todas as jovens hebréias, sabia que tinha a possibilidade
ser vir a ser a mãe do Messias, até porque seu pai Joaquim era
descendente do ramo familiar de Davi. A vida detalhada do casal
Joaquim e Ana é contada no evangelho de Tiago, um escrito apócrito,
mas que serve de referência histórica, pois é citado por alguns
dos antigos padres, embora não esteja catalogado no cânon bíblico.
Por isso, ao receber o mensageiro (em grego, anghelos significa
mensageiro), Maia tinha ciência de toda a situação, aquilo não
foi propriamente uma surpresa para ela. A surpresa está no fato de
ela ter perguntado para si mesma: “eu? Então, sou eu? Como isso
será possível, nem casada eu sou?” Isto é, Maria sabia que isso
aconteceria com alguma jovem de Israel, mas talvez não esperasse que
fosse logo ela a escolhida. Quando o mensageiro esclareceu tudo, ela
não teve mais dúvidas: eis-me aqui, faça-se segundo a tua palavra.
Supõe-se que Maria tinha, na época, entre 16 a 18 anos de idade,
porém com maturidade suficiente para entender as consequências da
sua decisão. Maria assumiu ali um projeto de vida no qual o seu
futuro já estava determinado, e ela sabia disso. Evidentemente, não
foi por acaso que Deus a escolheu, mas por tratar-se de quem ela era.
Por isso, a visita do mensageiro foi um mero detalhe no contexto
desses fatos. A plenitude dos tempos chegara e Maria foi o símbolo
desse tempo de graça, da qual ela ficou repleta. Pensando assim,
independentemente da proclamação como verdades de fé a sua
assunção ou a sua função de corredentora, a aceitação da missão
divina por Maria terá sempre um destaque primordial e decisivo,
sendo isso o suficiente para justificar todas as homenagens que ela,
merecidamente, recebe dos fiéis cristãos.
Meus amigos, o
celebrante de hoje na Igreja da Glória, padre Júlio Cesar, fez um
comentário interessante, ao referir-se à visita de Maria à sua
prima Isabel, que também estava grávida, só que com gravidez mais
adiantada. Disse ele que a visita de Maria a Isabel representou o
encontro do antigo testamento com o novo testamento, representados na
figura de duas mulheres. Então, em fiquei a pensar por que motivo a
Igreja Católica continua a deixar à margem das suas funções
prioritárias a figura feminina? Trata-se de um contrassenso, uma
postura discriminante e uma atitude de desconhecimento das origens do
próprio cristianismo. Se em uma mulher (Isabel) encerrou-se uma
etapa da história da salvação e em outra mulher (Maria) teve
início um novo tempo de graça e de salvação, por que razão
deixar de reconhecer às mulheres uma função de destaque nos
rituais religiosos e nas funções eclesiais? Por que as mulheres
podem, no máximo, distribuir a eucaristia, como ministras
“extraordinárias”? Há uma grande incoerência entre todo o
destaque que a teologia católica atribui à figura de Maria e o
menosprezo que a mesma teologia tem para com as outras marias, que
com fé e dedicação sem limites, atuam nas comunidades e vivem
exemplarmente os ensinamentos do evangelho de Cristo.
Que Maria assunta
inspire as nossas autoridades para que estas entendam que a
mariologia teológica não pode ficar concentrada apenas na figura da
Mãe de Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário